30/11/2007

Caraíba, a última obra inédita de Flavio Colin.


Algum tempo após o falecimento de Flavio Colin, sua família disponibilizou para venda desenhos originais e páginas de quadrinhos a lápis. Na ocasião, tive a oportunidade de adquirir algumas dessas páginas, que eram os esboços de uma série de HQs inéditas no Brasil, intitulada “Caraíba”. Aquelas páginas intensamente desenhadas e corrigidas são alguns dos originais mais magníficos que já vi. Por isso mesmo, desde então eu vinha me perguntando como uma obra tão bela poderia permanecer inédita. Mas agora, para felicidade dos quadrinhos brasileiros, Caraíba finalmente chega às livrarias, numa cuidada edição pela Desiderata, ao preço de R$32,00.

Com impressão especial na capa, formato álbum e 128 páginas em P&B, Caraíba traz três histórias escritas e desenhadas por Colin. A primeira e a última, com 48 páginas cada, surgiram do projeto original do autor, que ainda contaria com mais dois capítulos. Já a segunda HQ da edição tem apenas 10 páginas, sendo uma história de apresentação que havia sido publicada na revista Metal Pesado n°4. Três textos completam o livro: no primeiro, Colin faz uma apresentação do herói Caraíba, no segundo ele faz um apanhado de sua carreira até 1997, enquanto no último o produtor gráfico Odyr Bernardi fala do estilo e processo de criação do mestre. Sendo a coletânea parcial de uma obra maior e inacabada, Caraíba não deixa, porém, nada a desejar no que diz respeito aos pontos altos do trabalho de Colin. Estão presentes o forte caráter brasileiro dos temas e a incomparável capacidade de recriar ambientes e personagens de nosso país, tudo permeado de humor e uma autêntica preocupação ecológica.

Na primeira história, a melhor do livro, encontramos Caraíba, um exímio caçador que ganha a vida na Amazônia vendendo animais vivos e peles de onça. Mas um dia ele cruza caminho com o matreiro Curupira, recebe de presente uma lança mágica e acaba se tornando um defensor da floresta. Esta história em si não é original e vários detalhes de seu enredo estão presentes no conto “O Curupira e o caçador” do livro Lendas do índio brasileiro, organizado por Alberto da Costa e Silva. De certa forma, isso ressalta o que parece ser o projeto de Colin com a série Caraíba: compor uma rapsódia em quadrinhos, das lendas e contos amazônicos, atualizada com temas e questões de hoje. Já na segunda história, a mais dinâmica do volume, Caraíba se une ao Curupira para combater o desmatamento da floresta. Por fim, na história que fecha o livro, caçadores sem consciência, comerciantes inescrupulosos, turistas estrangeiros e a poluição industrial são as ameaças que o herói tem que enfrentar, contando com a ajuda de uma voluptuosa Iara, da cobra-grande Boiúna e de um jacaré gigante. Nas três HQs, Colin mistura termos eruditos e populares, deixa espaço para um pouquinho de erotismo e aplica boas doses de humor.

Mas o melhor mesmo fica por conta dos desenhos! Em termos temáticos e estilísticos, o livro pertence à mesma fase de Mapinguari e O Curupira, lançados pelas editoras Opera Graphica e Pixel. Contudo, as HQs reunidas na edição da Desiderata são mais detalhadas e elaboradas. Assim, no traço conciso e dinâmico do mestre, figuras e ambientes brasileiros ganham vida quadro a quadro, página a página, numa narrativa visual eficiente. Caraíba, Curupira, Iara e um pajé são os destaques na criação de personagens. Só que nada se compara aos bichos, desenhados no livro com um apreço e uma força ímpares. Numa página de quadro único, que já havia sido publicada na revista Bundas, Colin faz um pequeno catálogo da fauna brasileira, em que não faltam onças, macacos, jaguatiricas e papagaios, araras, porcos do mato, tucanos, ciganas e cutias. Caraíba é, em suma, um deleite para os olhos e uma aula de brasilidade em quadrinhos. Por tudo isso, é um livro que merece ser lido e um item indispensável para os fãs do autor.

Tendo uma trajetória conturbada, que envolveu mal-fadadas publicações na Europa e perda de originais, esta série, que trata de temas importantes e atuais, ficará incompleta. Na época em que Colin trabalhava no projeto, os editores brasileiros não se interessavam tanto por seus quadrinhos. Desiludido com o mercado editorial brasileiro, no texto escrito em 1997, ele afirma: “Talvez seja este o último trabalho importante de minha vida”. Felizmente, neste ponto o saudoso mestre se enganou, pois no ano seguinte ele desenharia outro importante trabalho de sua carreira, o álbum Estórias Gerais.

Flavio Colin, um artista único e sua arte original.


Há 5 anos faleceu Flavio Colin, o maior desenhista da história dos quadrinhos no Brasil. Embora este mestre de nossas HQs seja pouco conhecido pelo grande público, seu traço original e inovador o coloca ao lado de gênios fundadores como Jack Kirby, Hugo Pratt e Osamu Tezuka. É tentador imaginar que, caso tivesse nascido nos Estados Unidos, Europa ou Japão, Colin seria hoje um artista reconhecido e aclamado internacionalmente. Por outro lado, é impossível deixar de constatar que o traço mais característico de seu trabalho é justamente seu caráter intensamente brasileiro.

Desde muito jovem, Colin gostava de ler e desenhar quadrinhos, mas só a partir de 1959 ele pôde se dedicar mais profissionalmente a essa paixão. Em maio daquele ano, foi lançada a primeira edição de As Aventuras do Anjo, a adaptação quadrinística de um popular seriado da Rádio Nacional. Já nessa primeira série, o desenhista exibia um traço sintético que valoriza os contrastes entre massas de preto e espaços em branco. Admirador confesso de mestres como Milton Caniff (Terry e os Piratas) e Chester Gould (Dick Tracy), Colin não se limitava a copiá-los. Apresentando um estilo quase cartunístico e uma ambientação cotidiana, ele imprimiu ao Anjo um visual moderno, povoado de tipos bem brasileiros. Curiosamente, naqueles primeiros anos, seus desenhos receberam críticas de editores por serem “estilizados demais”, não correspondendo ao “gosto dos leitores”, que supostamente tenderiam a preferir o realismo tradicional. Nas últimas décadas, porém, à medida que o Brasil se modernizava, passamos a gostar e nos identificar cada vez mais com o estilo moderno de seu traço. Colin estava à frente de seu tempo!

No início dos anos 60, Flavio Colin firmou de vez sua técnica, em trabalhos como a adaptação do seriado televisivo O Vigilante Rodoviário e a saga regionalista Sepé, além de suas primeiras HQs de terror e da série de tirinhas Vizunga. Mas em 1964, com a derrota do movimento de valorização dos quadrinhos nacionais e o fechamento das editoras a desenhistas brasileiros, o artista teve que interromper sua carreira quadrinística, indo trabalhar como ilustrador publicitário. Apesar de “detestar” o desenho publicitário, Colin só retornaria aos quadrinhos quinze anos mais tarde. Felizmente, ao invés de sufocar o quadrinista, os anos na publicidade apenas fizeram aumentar sua vontade de desenhar HQs. Quando retornou à sua grande paixão em 1978, ele realizou alguns de seus trabalhos mais conhecidos, em colaborações para revistas de terror como a Calafrio ou nos desenhos para álbuns épicos como A Guerra dos Farrapos.

Contudo, nos anos 80, os altos e baixos do mercado editorial novamente afastaram Colin das bancas de revistas. Ainda assim, nas duas décadas seguintes, o grande mestre presenteou-nos com seu traço inconfundível, em revistas de tiragem limitada ou edições independentes, como Hotel do Terror, A Mulher-diaba no rastro de Lampião, O boi das aspas de ouro, Fawcett, Estórias Gerais e Fantasmagoriana (obras-primas do desenho em quadrinhos, que poderiam constar de qualquer antologia internacional). Mais uma vez, a força de seu traço se destacava como a expressão simbólica de uma verdade sociocultural e ambiental: a poética de um Brasil que se revela vivo e único, a despeito de todas as adversidades e influências estrangeiras.

Flavio Colin faleceu na manhã de 13 de agosto de 2002, aos 72 anos, de problemas respiratórios agravados por um enfarte. Artista único, apesar dos vários prêmios que recebeu, em vida ele não teve o merecido reconhecimento, talvez justamente por ter se dedicado com tanto amor à desprestigiada arte dos quadrinhos. Para justificar sua própria insistência em desenhar HQs, o velho mestre costumava dizer: “quadrinho é minha cachaça”. Após sua morte, o talento de Colin começou a ser valorizado pelos editores brasileiros, que lançaram seus últimos trabalhos inéditos, reunidos nos volumes: Mapinguari, O Curupira e Caraíba.
O grande desenhista deixou saudades nos amigos e camaradas de quadrinhos, além dos muitos fãs que aprenderam a admirar seu estilo originalíssimo. Ficou também a triste certeza de que Flavio Colin foi um daqueles raros talentos geniais que o Brasil produz, mas não sabe valorizar devidamente.

29/11/2007

20 anos de uma Liga inesquecível.


Após o quase “marco-zero” de Crise nas Infinitas Terras e das origens recontadas a seguir, os diretores da DC Comics viram que era hora de redefinir a interação de seus principais personagens. Como parte desse processo, foi lançada em 1986 a minissérie Lendas, com a qual a editora aproveitou para incorporar à sua “continuidade” heróis que estavam meio à margem. Mas foi só nas últimas páginas que a minissérie produzida por John Ostrander, Len Wein e John Byrne deixou claro um de seus principais objetivos: abrir caminho para uma nova Liga da Justiça.

Em meados dos anos 80, a Liga da Justiça da América era composta por um elenco de segundo e terceiro escalões, que tinha heróis tão inexpressivos quanto Gládio, Vibro, Cigana e Vixen. Com isso, nas edições interligadas a Lendas, os editores e roteiristas aproveitaram para se livrar deles, deixando vago o título de principal grupo de super-heróis da DC. Para alegria dos leitores, o que veio a seguir foi uma das melhores e mais engraçadas versões que qualquer equipe de super-heróis já teve. Liderada por um soturno Batman, contando com o insuportável Guy Gardner e com o engraçado Besouro Azul, a nova Liga da Justiça conquistou os leitores e marcou época.

Lançada nos Estados Unidos em maio de 1987, a nova série era escrita por Keith Giffen e J.M. DeMatties, trazendo os expressivos desenhos do novato Kevin Maguire. Além dos já citados Batman, Guy Gardner e Besouro Azul, o elenco de estréia trazia Ajax o Marciano, Doutor Destino, Senhor Milagre, Canário Negro e Doutora Luz, além do faz-tudo Oberon e do empresário Maxwell Lord IV. Até aí nada demais, se não fosse a inteligente abordagem proposta pelos autores, que não se apoiava em lutas contra vilões, mas sim nos “bastidores” de um grupo de super-heróis, enfocando os conflitos gerados por suas diferentes personalidades. O sucesso foi imediato!

Já na capa do número 1, os carrancudos heróis encaram o leitor, enquanto o lanterna verde Guy Gardner dispara algo como: “e aí, tá achando ruim?”. A ilustração em si tornou-se célebre, não apenas pelo bom desenho, mas em especial pela forma inusitada de apresentar um grupo de super-heróis, sem nenhuma ação ou poses gloriosas. Com o crescente sucesso da série e as novas revistas surgidas dela, a capa de Maguire seria reeditada algumas vezes por ele próprio e por outros desenhistas. Dois bons exemplos são as capas apresentando a versão ampliada da Liga da Justiça Internacional e outra com a estréia da Liga da Justiça da Europa.

Às voltas com problemas de infra-estrutura, disputas pela liderança e brigas de egos, a nova Liga trouxe para os grupos de super-heróis a abordagem mais racionalista e psicológica dos anos 80. Porém, ao contrário do tom sombrio e pessimista presente em O Cavaleiro das Trevas e Watchmen, na série de Giffen, DeMatties e Maguire o tom predominante era o humor, pontuado por diálogos espirituosos e cenas ridículas. O egocentrismo de Guy Gardner, a infantilidade do Capitão Marvel e as crises da Canário Negro renderam sequências engraçadas, sem falar nas conversas nonsense entre Besouro Azul e Batman, que incluíam até alusões ao seriado Jornada nas Estrelas. Por seu clima mais “leve”, a revista passou a ser um contraponto aos quadrinhos de super-heróis, que se tornavam então cada vez mais violentos.

Mas certamente as HQs da nova Liga da Justiça não teriam o mesmo efeito sem seus excelentes desenhos. Capaz de criar cenas detalhadas e personagens com bastante identidade visual, Kevin Maguire era, antes de mais nada, um brilhante desenhista de rostos, esmerando-se nas “caras e bocas” dos personagens. Ainda desconhecido quando produziu as primeiras edições com a nova Liga, seu traço autêntico e inovador logo o projetaria como um dos melhores artistas do mercado norte-americano. Com o sucesso da série, o elenco de heróis foi se multiplicando e o desenhista acabou fazendo versões para praticamente todos os heróis de primeira linha da DC. Super-Homem, Mulher-Maravilha, Gavião Negro e Flash foram alguns dos felizardos que ganharam personalidade em traço.

A fase inteligente e bem-humorada da Liga chegou ao Brasil em janeiro de 1989, substituindo a revista Superamigos. Lembro-me que Liga da Justiça foi a última série de super-heróis que acompanhei ansiosamente, lendo cada novo número tão-logo ele saía. Ao longo dos anos 90, porém, os quadrinhos de super-heróis foram ficando mais e mais violentos, menos e menos interessantes. Felizmente, as sete primeiras HQs da série produzida por Giffen, DeMatties e Maguire estão disponíveis no volume Justice League: The New Beginning. Com um filme estrelado por esse grupo de heróis em pré-produção, há alguma possibilidade de a Panini relançar essas HQs no Brasil. Para quem não quiser esperar, as primeiras edições de Liga da Justiça ainda podem ser encontradas em sebos e lojas virtuais. Vale conferir, pois podemos dizer que aquela foi mesmo uma Liga inesquecível!

27/11/2007

A insana relação entre Batman e Coringa.


Sou de uma época em que os personagens dos quadrinhos eram tratados em primeiro lugar como “personagens”, e não como “franquias” a serem exploradas em novos sucessos de vendas ou bilheterias. Assim, pelo menos para nós leitores, heróis e vilões pareciam ter uma personalidade e uma trajetória que se transformava ao longo do tempo. Batman e Coringa são bons exemplos disso. Nos quadrinhos dos anos 80 e 90, seus encontros foram marcados por um "jogo de gato e rato", em que cada vez se tornava mais difícil distinguir qual dos dois era o mais insano.

Foi com O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller que o estranho relacionamento entre o Homem-Morcego e seu principal inimigo adquiriu uma dimensão mais "doentia". De um lado, o soturno vigilante obcecado por sua missão; do outro, o psicopata excêntrico e homicida. Em seu embate final, ao passarem por uma Casa dos Espelhos, a dialética que os movia tornou-se evidente: herói e vilão apresentavam-se como figuras complementares, a existência de um justificava a do outro. Não é por menos que o desfecho da história acontece com um abraço mortal, dentro do Túnel do Amor.

Essa abordagem “psicológica” foi retomada em A Piada Mortal dos ingleses Alan Moore e Brian Bolland, edição na qual a origem do Coringa é contada. Sendo o personagem central da história, ele aparece como um vilão sádico e amoral que desconhece quaisquer limites, enquanto Batman só se preocupa em desempenhar o papel de guardião de Gotham City, a ponto de seu único elo com a vida cotidiana ser o mordomo Alfred. Buscando uma abordagem mais realista dos super-heróis, a HQ é marcada por cenas de violência explícita. O próprio Alan Moore chegou a admitir que teria ido um pouco além da conta, num roteiro em que o Coringa aleija e abusa de Bárbara Gordon, além de torturar seu pai, para no fim acabar às gargalhadas, num quase abraço com o Batman.

O Cavaleiro das Trevas e A Piada Mortal colocaram Batman na linha de frente da renovação que caracterizou os comics na década de 1980, além de transformarem o Coringa no vilão mais famoso e cultuado dos quadrinhos. Não é à toa que as duas obras foram a base para o roteiro e temática do badalado filme Batman de 1989, que teve o ator Jack Nicholson no papel do Coringa. Mas é preciso não nos esquecermos de que foi o seriado de tevê dos anos 60, com a ótima atuação de Cesar Romero no papel do “palhaço do crime”, que tornou Batman um personagem tão popular, até mesmo entre aqueles que não liam quadrinhos. Contudo, foi mesmo a abordagem mais adulta dos roteiros de Miller e Moore que estabeleceu um novo patamar a partir do qual outros autores puderam criar suas histórias.

Um bom exemplo é Asilo Arkham, criada por Grant Morrison e Dave McKean, que tem como tema central a história da própria instituição para loucos criminosos. Ao longo das páginas dessa exuberante graphic novel, o Homem-Morcego faz um tour pelo manicômio onde estão internados seus principais inimigos. Porém, a viagem acaba se revelando um mergulho na própria alma do herói, torturado pela dor e culpa da morte de seus pais. O mestre de cerimônias não poderia ser outro, é claro, senão o Coringa. Mas a HQ enfrentou censura por parte dos editores da DC Comics, que temiam a possibilidade de ela prejudicar a imagem de um de seus principais personagens. O motivo principal: a sequência em que o Coringa, mais afetado e abusado do que nunca, faz uma alusão perniciosa ao relacionamento entre Batman e Robin.

Do ponto de vista técnico e temático, Asilo Arkham é um bom exemplo do avanço qualitativo dos quadrinhos de super-heróis nos anos 80. Produzida por autores britânicos, a HQ tem um texto que lida com assuntos pouco comuns nos quadrinhos norte-americanos, sem falar num visual impressionante que mistura desenho, pintura, fotografia e colagem. Após essa elaborada obra, parecia que nada de novo poderia ser acrescentado ao relacionamento entre Batman e Coringa. Mas então surgiu Arlequina!

Nascida na série de animações do Batman lançada em 1992, Arlequina revelou-se uma das vilãs mais sensuais e espirituosas dos últimos tempos. Na HQ especial “Louco Amor”, publicada no Brasil nas revistas Batman - O Desenho da TV nºs 14 e 15, sua origem e seu relacionamento amoroso com o Coringa são mostrados de forma inteligente e até ousada. Contratada para trabalhar no Asilo Arkham, a psiquiatra Harley Quinzel acaba se apaixonando por um paciente. Só que o paciente em questão é ninguém menos que o Coringa, e isso leva Harley a iniciar uma carreira no crime, provando que "de médico e louco todo mundo tem um pouco". Para Frank Miller, a HQ produzida por Paul Dini e Bruce Timm foi a melhor história do Batman na década de 1990, opinião com a qual concordo plenamente.

Em 2008, será lançado The Dark Night, um novo filme do Homem-Morcego, que terá o Coringa como vilão principal. Com ele, a insana relação entre os personagens ganhará um novo capítulo e certamente também se intensificará nos quadrinhos. Enquanto o filme não chega, as ótimas HQs citadas neste texto valem ser lidas ou relidas. Com alguma pesquisa, O Cavaleiro das Trevas, A Piada Mortal, Asilo Arkham e “Louco Amor” podem ser encontradas em lojas virtuais, nas edições originais ou em português. Por sua qualidade artística e importância para a história dos quadrinhos, essas HQs não podem faltar na coleção de nenhum bat-fã.

24/11/2007

O retorno do Cavaleiro das Trevas.


Na história dos quadrinhos, poucas revistas causaram tanto impacto quanto Batman: The Dark Knight Returns, lançada pela DC Comics em 1986. Apresentando um herói cinquentão e obstinado que luta para salvar uma caótica Gotham City do futuro, esta minissérie em quatro edições ajudou a transformar o mercado norte-americano, abrindo caminho para as graphic novels e minisséries de luxo. A partir dela, os editores perceberam que quadrinhos de super-heróis voltados para um público mais maduro poderiam ser um bom negócio. Escrita e desenhada por Frank Miller, arte-finalizada por Klaus Janson e pintada por Lynn Varley, Batman: O Cavaleiro das Trevas (título que a HQ recebeu no Brasil em 1987) também inauguraria um novo padrão artístico para os quadrinhos de super-heróis.

Ao iniciar a história, Miller sabia que estava lidando com importantes ícones culturais, sem falar nos milhões de dólares que giram em torno do “bat-símbolo” e do “super-S”. E o que ele fez, ao longo das 200 páginas da história, foi justamente resgatar o caráter original dos personagens, recuperando sua força arquetípica, minada por décadas de plágios e HQs estereotipadas. Mas o sucesso avassalador da minissérie não se deveu apenas à qualidade do roteiro, narrativa e desenhos. Miller já era um dos artistas mais valorizados do mercado norte-americano e, graças ao seriado de tevê dos anos 60, Batman era um fenômeno cultural que extrapolava os quadrinhos (lembremos inclusive que muitos dos jornalistas e críticos que saudaram efusivamente a minissérie, em 1986, eram crianças ou jovens nos anos 60).

Contudo, a hilária série de tevê estrelada por Adam West estava muito distante da abordagem pretendida por Miller, que contou com outros referenciais para sua versão séria dos super-heróis. Ainda nos anos 70, os quadrinistas Denny O’Neill e Neal Adams haviam produzido boas HQs buscando o caráter mais sombrio de Batman, e já nos anos 80 Alan Moore tinha feito a primeira recriação racionalista de um antigo super-herói, com a série Marvelman (que Miller homenageia, desenhando um garoto vestido como o herói britânico, na página 11 do último capítulo de sua minissérie).

Em O Cavaleiro das Trevas, os personagens são o elemento fundamental de um politizado roteiro. Batman aparece como um guerreiro imbatível movido por um único propósito: combater o crime, mesmo que para isso seja necessário infringir a Lei. Já o Super-Homem apresenta-se como o defensor da Lei, mesmo que isso signifique ser um mero “garoto de recados” do governo norte-americano. Alfred continua sendo o fiel e espirituoso escudeiro de Batman. O Coringa representa tudo que ele mais abomina, enquanto o comissário Gordon, os valores morais que o herói quer defender. E há a Robin, uma adolescente que conquista o afeto do herói cinquentão. Isso sem falar numa plêiade de personagens coadjuvantes.

Ao longo da história, o que une personagens tão diversos é o fato de todos estarem à sombra de Batman, servindo-lhe de contraponto e sempre reforçando sua figura quase monolítica. Neste sentido, o Cavaleiro das Trevas criado por Miller é uma reação ao que vinha acontecendo desde os anos 70, quando a indústria dos comics foi afetada pela crise econômica e moral nos Estados Unidos. Naquele momento, os super-heróis clássicos (depositários do otimismo e nacionalismo norte-americanos) perderam sua credibilidade. Afinal, enquanto o antes imbatível Capitão América era derrotado no Vietnã, nem mesmo o quase onipotente Super-Homem era capaz de superar a recessão econômica e os escândalos políticos.

Ambientada num futuro próximo, no qual um senil Ronald Reagan é o presidente do país, a obra de Miller reflete o novo clima político e social da década de 1980. Na Gotham City do futuro, a redução dos fundos destinados à assistência social, a corrupção e incompetência dos políticos, o efeito estufa e uma eminente guerra nuclear contra a União Soviética são algumas das causas da violência e insegurança que tomam conta da sociedade. Nessa “terra de ninguém”, dominada por gangues de adolescentes assassinos, Batman é o herói redentor, cujo retorno é aguardado (algo como Rei Arthur ou Jesus Cristo). Entretanto, por mais que Miller critique o governo e os políticos, há algo que é sempre resguardado em suas HQs: um suposto espírito empreendedor norte-americano, incansável em sua busca por justiça. Diante de um governo decadente, as ações ilegais do Cavaleiro das Trevas estariam assim justificadas. Com isso, o Super-Homem, “que sempre diz sim a alguém com um distintivo ou bandeira”, é enviado para deter o subversivo Batman.

Quanto ao visual, o estilo rebuscado dos desenhos de Frank Miller e Klaus Janson, somado às cores de Lynn Varley, dá maior densidade aos personagens e veracidade à história. Mas é em termos de narrativa que O Cavaleiro das Trevas trouxe sua maior contribuição à arte dos quadrinhos. Nas HQs do Demolidor, além de uma narrativa “cinematográfica”, Miller misturou influências de Will Eisner ao mangá Lobo Solitário. Já em Ronin, somaram-se elementos dos europeus Moebius e Bilal. O Cavaleiro das Trevas é uma síntese dessas experiências, acrescentando-se a influência de Hugo Pratt, que recebe citações diretas (a ilha em que se dá o conflito entre EUA e URSS chama-se Corto Maltese e, no segundo capítulo, a página que mostra a bandeira norte-americana transformando-se no “S” do Super-Homem foi adaptada de uma HQ do quadrinista italiano).

Narrativa subjetiva, enquadramentos em pormenor, valorização da sequencialidade, zooms, flashbacks, intercalação de narrativas e imagens de página inteira são alguns dos recursos empregados de forma articulada e original por Miller. Fizeram escola o uso dos quadros em forma de telinha de tevê e a sequência da morte dos pais de Bruce Wayne. Logo no primeiro capítulo, uma lição de como prender a atenção do leitor (ao estilo do filme Tubarão de Steven Spielberg): passam-se 27 das 47 páginas, antes que Batman surja triunfal, numa página inteira. O Cavaleiro das Trevas também influenciou a forma de se abordar os super-heróis, que se tornariam mais violentos nos anos seguintes (como se para imprimir mais “realismo” e atrair o público fosse necessário estar sempre superando a agressividade das edições anteriores). Por outro lado, a obra de Miller abriu caminho para trabalhos que deram continuidade ou reforçaram suas conquistas, como Batman: Ano Um, A Piada Mortal, Asilo Arkham, Batman 1889, além da ótima série de animação lançada pela Warner em 1992.

O fato é que, a partir de O Cavaleiro das Trevas com sua abordagem mais “realista”, os quadrinhos de super-heróis passaram a ser vistos com outros olhos. O caráter politizado da minissérie, mas principalmente a qualidade gráfica, o elaborado roteiro e a narrativa inovadora deram-lhe o título de clássico dos quadrinhos, tornando-a uma referência para novos autores. Com ela, Frank Miller tornou-se um nome reconhecido internacionalmente e o Homem-Morcego viveu novamente uma onda de “batimania”, que incluiu filmes, desenhos animados, brinquedos e várias bugigangas. Sobretudo, esta HQ é uma leitura indispensável para os fãs do Batman, e também do Super-Homem.

Atualmente, O Cavaleiro das Trevas está disponível no Brasil em duas edições (capa dura e brochura) lançadas pela
Panini. O volume inclui extras e também DK2, a coloridinha e dispensável sequência que Miller produziu há alguns anos.

22/11/2007

Recriando "lendas" dos quadrinhos.


Nos anos que se seguiram à publicação de Crise nas Infinitas Terras, a editora DC Comics investiu em novas séries e edições especiais, cujo objetivo era recontar a origem de seus principais heróis. O resultado foram trabalhos de qualidade, que ajudaram a dar vida nova a verdadeiras "lendas" dos quadrinhos.

Super-Homem foi o primeiro e mais popular dos super-heróis. Desde que apareceu em 1938, o Homem de Aço enfrentou todo o tipo de vilões e ameaças: de maléficos nazistas a monstros alienígenas, passando por andróides enlouquecidos e meteoritos radioativos. Mas nem o maior super-herói da DC ficou imune à tendência racionalista dos anos 80. Era preciso tornar o Super-Homem mais verossímil, encontrar explicações para seus poderes e amadurecer seu relacionamento com Lois Lane.

A tarefa ficou a cargo de John Byrne que, com a minissérie The Man of Steel, não só recontou a origem do personagem, mas estabeleceu limites para seus poderes e fraquezas. Nas histórias de Byrne, lançadas em 1986, Clark Kent ganhou uma maior autonomia e personagens como Lex Luthor e Lois Lane tornaram-se algo mais que clichês do “vilão cientista maléfico e louco” e da “linda mocinha a ser salva”. Em outras palavras, Byrne tornou o Super-Homem um personagem atualizado e adaptado ao ambiente e público da época. E ele foi apenas o primeiro da lista!

Com as HQs que criou para o Demolidor no início da década de 1980, Frank Miller tornou-se o desenhista mais inovador dos quadrinhos norte-americanos. Quando a DC resolveu reagir à perda de mercado, apostando em novos projetos, Miller recebeu sinal-verde para produzir Ronin, HQ-laboratório em que ele testou estilos, técnicas e influências. Em seguida veio O Cavaleiro das Trevas: uma das HQs mais impactantes e influentes da história dos quadrinhos norte-americanos. Seguindo o sucesso desta série, Miller foi contratado para recontar a origem do Homem-Morcego, produzindo em 1987 a excelente Batman: Ano Um, feita em parceria com o desenhista David Mazzucchelli.

Mais sombrio do que antes e atormentado pela morte de seus pais, Batman tornou-se o contraponto ideal para o Super-Homem (num antagonismo já presente em O Cavaleiro das Trevas). Por algum tempo, também Byrne e Miller foram identificados pelos leitores como a “luz” e as “trevas” nos quadrinhos de super-heróis, numa percepção alimentada pelos editores (embora talvez seja mais correto dizer, como bem resumiu um amigo, que: “Byrne nos fazia entrar para os quadrinhos, mas era Miller que nos mantinha lá”). Inegavelmente, foram O Cavaleiro das Trevas e Batman: Ano Um que fizeram do Homem-Morcego um personagem interessante e sério novamente (tarefa difícil, se levarmos em consideração a imagem jocosa que se associou a ele após o popular seriado de tevê dos anos 60).

Mesmo com Super-Homem e Batman ganhando uma vida novinha em folha, faltaria ainda a terceira personagem principal da DC Comics. Contudo, todos sabem que desenvolver histórias com super-heroínas não é algo muito fácil. Há obviamente uma tendência à erotização e até mesmo à ridicularização das personagens femininas. E isso se agrava se a super-mulher em questão nasceu numa ilha grega isolada do resto do mundo, mas enfrenta seus inimigos vestindo uma fantasia baseada na bandeira dos Estados Unidos. Assim, podemos dizer que o desenhista George Pérez, auxiliado pelos roteiristas Greg Potter e Len Wein, fez quase um milagre ao recontar a origem da Mulher-Maravilha.

Utilizando deuses e monstros da mitologia grega, os autores redefiniram a origem dos poderes da heroína e até arranjaram uma explicação para seu calção azul com estrelinhas brancas. Além disso, nos desenhos da nova série, Pérez pôde mostrar seu talento e cuidado com os detalhes, ao desenhar as divindades gregas e a arquitetura do próprio Olimpo (pessoalmente, posso dizer que ler aquelas HQs, repletas de deuses e referências mitológicas, aumentou meu interesse pelo campo da História, contribuindo para que alguns anos depois eu escolhesse esse curso na faculdade).

Na trilha do que Alan Moore fizera com Marvelman e Monstro do Pântano, a principal lição que o trabalho de Miller, Byrne e Pérez deixou para as HQs de super-heróis foi mostrar que a literatura, as artes em geral e a própria vida real podem e devem ser fontes de inspiração para os autores de quadrinhos. Tanto é que, com as reformulações de meados dos anos 80, a DC conseguiu reorganizar seu elenco de personagens, tornando-os atrativos para um público mais exigente e maduro. E este trabalho continuaria com outros personagens (como Gavião Negro, Aquaman e Homem-Animal), tendo um ponto central na minissérie Lendas, que contou com os desenhos de John Byrne e abriu caminho para a nova Liga da Justiça.

Infelizmente, nas inúmeras minisséries e edições especiais surgidas nos últimos anos, os temas introduzidos e as contribuições trazidas por aqueles trabalhos foram explorados à exaustão. A indústria dos comics, mais uma vez, não soube se livrar de seu maior defeito: a teimosia em transformar qualquer boa idéia numa “fórmula do sucesso” a ser repetida à exaustão. É claro que, para os antigos e novos leitores, há sempre a opção de rever aquelas ótimas histórias que recriaram alguns dos principais personagens dos quadrinhos.

A verdadeira crise dos super-heróis DC.


No início da década de 1980, o “Universo DC” era amplo, múltiplo e confuso. Várias Terras, diversos heróis e vilões, um verdadeiro caos. Ora o Super-Homem enfrentava sua versão de uma Terra alternativa (em que os heróis são uma imagem invertida e maligna), ora o Flash de uma terra paralela (na qual os heróis já são cinquentões) se encontrava com sua versão mais jovem de “nossa realidade”. Isso sem falar na incrível variedade de kryptonitas, capazes de expor o Homem de Aço a situações ridículas. A necessidade de “colocar ordem na casa” foi a justificativa oficial para a DC Comics lançar em 1985 a série Crise nas Infinitas Terras, “a maior carnificina” da história das HQs.

Anunciada como uma “maxissérie em 12 partes” para celebrar os 50 anos da editora, Crise nas Infinitas Terras foi escrita por Marv Wolfman e desenhada por George Pérez (a dupla responsável pelo sucesso alcançado pelos Novos Titãs na primeira metade daquela década). Mas a princípio a série foi mal-vista pelos leitores mais antigos, pois sabia-se que o objetivo do projeto era reestruturar completamente o Universo DC, e nem os heróis consagrados escapariam ilesos. Ao final da série, as “infinitas terras” e dimensões paralelas foram reduzidas a apenas um mundo, e heróis como o Superboy e a Super-Moça foram apagados do mapa (bom, isso pelo menos até algum tempo atrás).

Contudo, a verdadeira crise que atingia a DC Comics tinha mais a ver com a queda na venda das revistas e a perda de espaço no mercado, do que propriamente com o fato de existirem várias versões do Batman. No início dos anos 80, o grande vilão contra o qual os super-heróis da editora lutavam era a concorrência da Marvel Comics. O avanço de personagens como os X-Men, Demolidor e o próprio Homem-Aranha fizeram com que a DC buscasse se adaptar aos novos tempos. O fato é que seus personagens principais, criados entre os anos 30 e 50, já não correspondiam ao que o público de meados dos anos 80 buscava.

Crise nas Infinitas Terras foi um novo “marco zero”, um novo ponto de partida para os antigos super-heróis da DC. Com seu término, praticamente todo o passado foi apagado e os principais heróis deveriam ter suas origens recontadas. Seguindo o exemplo do trabalho de Alan Moore na reformulação de Marvelman e Monstro do Pântano, a editora passou a recontar a origem de seus principais personagens: Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha. Para esta tarefa, foram contratados os autores mais populares do mercado norte-americano em meados dos anos 80: John Byrne, Frank Miller e George Pérez. Eu, que tive a sorte de começar a colecionar quadrinhos naquele momento, posso dizer que eles fizeram um ótimo trabalho!

Infelizmente, muito do que foi realizado na época acabou se perdendo ou sendo desvirtuado na sequência de erros editoriais e golpes de marketing das duas últimas décadas. O resultado era o esperado: novo esgotamento dos personagens e mais e mais trabalhos que nada acrescentam realmente (basta citarmos a recente Crise Infinita). No final das contas, as grandes editoras norte-americanas parecem não serem aptas a aprender com os erros e acertos do passado, e a verdadeira crise dos super-heróis irá mesmo se prolongar, infinitamente.

20/11/2007

Raízes e frutos de um Monstro do Pântano.


O personagem Monstro do Pântano foi criado pelo roteirista Len Wein e pelo desenhista Berni Wrightson, aparecendo pela primeira vez em junho de 1971, na revista House of Secrets n°92. Sua estréia, uma HQ de 8 páginas ambientada no século 19, teve ótima repercussão entre os leitores, motivando a editora DC Comics a lançar no ano seguinte a revista Swamp Thing, totalmente dedicada ao personagem.

No primeiro número da nova série, o Monstro do Pântano ganhou outra origem e identidade. Transportado para a década de 1970, ele passou a ser Alec Holland, um cientista que pesquisava uma fórmula para acelerar o crescimento das plantas. Vítima de um atentado, Holland é ferido mortalmente, sendo lançado às águas de um pântano. Meses depois, surge uma estranha criatura coberta de lodo e musgo, que passa a se vingar daqueles que causaram o desaparecimento do cientista.

Trazendo elementos tradicionais dos filmes e livros de terror e ficção científica, as dez primeiras edições da revista Swamp Thing foram um sucesso. Os roteiros criativos de Len Wein e os expressivos desenhos de Wrightson renderam à série vários prêmios, e em poucos anos a condição de clássico dos quadrinhos. Porém, com a saída da dupla, a qualidade das HQs caiu e a revista acabou sendo cancelada em 1976. Em 1982, porém, foi lançada uma nova série: The Saga of the Swamp Thing, que também teria desaparecido se não fosse o talento de um pouco conhecido roteirista, chamado Alan Moore.

Convidado pelo então editor Len Wein a assumir a revista, Moore estreou em janeiro de 1984. Como se tornaria comum em seus trabalhos, o brilhante roteirista inglês não se contentou em continuar de onde seu antecessor (Martin Pasko) havia parado. Assim, em sua primeira história (“Pontas Soltas”), Moore literalmente limpou o terreno para implantar as mudanças que planejava. E elas não demoraram, pois na história seguinte (“A Lição de Anatomia”) o roteirista já empregava sua abordagem “desconstrutivista”, reformulando completamente o Monstro do Pântano. Tendo seus poderes e horizontes ampliados, o personagem (que fôra um herói existencialista nos anos 70) transformava-se numa entidade natural que atuaria na conscientização e luta pelo meio-ambiente.

Partindo da origem proposta por Len Wein em 1972, Moore buscou as raízes “frankensteinianas” do personagem, desenvolvendo (como fizera com o herói britânico Marvelman) uma explicação pseudo-científica para sua origem e seus poderes. Porém, à medida que a trama avança, os leitores são levados numa viagem mística que assume os contornos de uma iniciação ao universo do xamanismo. Mas, sem dúvida, a abordagem metafísica proposta por Moore não teria sido tão bem-sucedida sem os competentes desenhos de Steve Bissette e John Totleben (que também colaboravam com idéias e elementos para alguns roteiros). Privilegiando texturas, luzes e sombras, a dupla de artistas conseguia valorizar a ambientação e a carga emocional propostas pelo roteirista, dando às histórias uma expressividade e uma qualidade narrativa raramente vistas nos quadrinhos comerciais.

A verdade é que as primeiras HQs do Monstro do Pântano criadas por Moore, Bissette e Totleben inauguraram uma nova fase nos quadrinhos norte-americanos. Tanto é que Swamp Thing foi a primeira série de uma grande editora a circular sem o selo de aprovação do “Código de Ética dos Quadrinhos", desde sua instauração nos anos 50. Tratando de temas como a devastação do meio ambiente, relações humanas e sexualidade, dependência de drogas ou violência contra a mulher, Alan Moore levou ao extremo o processo de amadurecimento dos comics. Misturando política, misticismo, mistério e poesia, em suas HQs para o Monstro do Pântano, o roteirista inglês deu um importante passo para a revolução qualitativa de meados dos anos 80.

Embora Moore não tenha sido o primeiro quadrinista inglês a trabalhar no mercado norte-americano, sem o sucesso da Swamp Thing provavelmente não aconteceria a chamada “invasão britânica”. Não teria surgido John Constantine, personagem que acabou ganhando uma revista própria, escrita pelo também inglês Jamie Delano. Sem a inspiração da Swamp Thing, o escocês Grant Morrison não teria criado suas HQs para o Homem-Animal, e a dupla inglesa Neil Gaiman e Dave McKean não teria criado a minissérie Orquídea Negra, que possibilitaria o surgimento de The Sandman. E foram os bons desempenhos e a aclamação crítica das revistas com o Monstro do Pântano, John Constantine, Homem-Animal e Sandman que levaram à criação do selo Vertigo, que reúne os “quadrinhos adultos” da DC Comics, sob o comando de Karen Berger (editora que substituiu Len Wein na supervisão de Swamp Thing).

Quando Alan Moore chegou, The Saga of the Swamp Thing estava a caminho de ser cancelada. Quando ele a deixou, três anos depois, a revista havia recebido os principais prêmios do mercado norte-americano e inglês, além de suas vendas terem alcançado o patamar de cem mil exemplares por mês. Criando e reinventando personagens, enriquecendo a narrativa e a temática, Moore e seus colaboradores abriram caminho para a revolução qualitativa que originaria uma das melhores fases dos quadrinhos.

17/11/2007

Warrior: 25 anos de uma revista definitiva.


Em março de 1982, era lançada na Grã-Bretanha a Warrior. Talvez você nunca tenha ouvido falar dessa revista, mas o fato é que com ela teve início uma revolução qualitativa que influenciaria os rumos dos quadrinhos ocidentais nas últimas décadas. Para ilustrar esta afirmação, basta dizer que foram nas páginas da Warrior que estrearam as séries Marvelman (Miracleman) e V for Vendetta (V de Vingança), duas das mais importantes e inovadoras criações de Alan Moore.

A Warrior foi uma cria do editor inglês Dez Skinn, que fizera carreira editando revistas para a sucursal britânica da Marvel, como a Doctor Who Weekly que trazia HQs, bastidores e curiosidades sobre uma popular série da tevê britânica (cuja versão mais recente vem sendo exibida no Brasil desde 2006 pelo canal a cabo People & Arts). Seguindo o padrão britânico, sua nova revista de antologia era publicada em preto & branco, formato magazine (21cm x 30cm), e trazia séries divididas em capítulos de cinco a oito páginas. Na introdução para o número de estréia, o editor propunha: “Se a Warrior representa um progresso na evolução das revistas em quadrinhos britânicas, apenas você [leitor] pode decidir, mas nós definitivamente sentimos que é nosso primeiro passo na estrada da liberdade”.

A liberdade criativa a que se referia Skinn tinha como correlato a manutenção pelos autores de boa parte dos direitos autorais sobre personagens e histórias. Com isso, roteiristas e desenhistas sentiam-se motivados a produzir seus melhores trabalhos, pois estes continuariam a lhes pertencer parcialmente (diferente do que acontecia, por exemplo, com as HQs publicadas na popular e bem-sucedida 2000 AD). Após dez meses de preparativos e ensaios, a Warrior chegou aos pontos de venda com uma incomum mistura de terror, aventura, suspense, ficção científica e super-heróis. E Skinn parecia até antever o efeito que sua publicação teria: “Enquanto as grandes editoras de quadrinhos parecem estar num período de regressão criativa [algo não muito diferente de hoje], nós esperamos que nossa tentativa, nossa pequena revista num mar de outras, acenda bastante interesse para fazer as coisas caminharem de novo”.

Os destaques da primeira edição? Uma bem-bolada HQ de duas páginas criada por Dave Gibbons, uma história medieval desenhada por John Bolton, um anúncio publicitário ilustrado por Brian Bolland e, é claro, as estréias de V for Vendetta com desenhos de David Lloyd e de Marvelman com desenhos de Garry Leach (esta última acompanhada de um texto sobre a trajetória editorial deste que foi o primeiro super-herói britânico). Embora Skinn afirme que o objetivo era “acertar logo de primeira”, a Warrior foi mesmo tomando forma definitiva nas edições seguintes, com o surgimento de novos personagens e substituições de artistas (em especial a entrada de Alan Davis como desenhista de Marvelman, no lugar de Garry Leach que iria desenhar a HQ “Warpsmith: cold war, cold warrior”, capa do número 10).

O auge da Warrior veio com o número 11, que trazia os capítulos finais do "Volume I" de V for Vendetta e do "Livro Um" de Marvelman. Na edição seguinte, a capa marca a estréia de uma nova série escrita por Alan Moore: The Bojeffries Saga (uma versão bastante cáustica de A Família Addams) com desenhos de Steve Parkhouse. Esse número 12 trouxe ainda a HQ "Young Marvelman: 1957", um roteiro de Moore desenhado por John Ridgway, e o capítulo “This Vicious Cabaret” em que o enigmático V canta e toca piano. Já na Warrior n°16 uma atração especial para o Natal de 1983: a HQ “Christmas on Depravity", desenhada por Curt Vile (pseudônimo de Alan Moore) e escrita por Pedro Henry (pseudônimo de seu amigo Steve Moore). Mas, naquele mesmo ano em que a revista firmava sua proposta e começava a conquistar prêmios, seus maiores problemas começaram.

Com o sucesso da versão criada por Alan Moore, Dez Skinn decidiu lançar Marvelman Special n°1, que trazia basicamente reimpressões de HQs dos anos 50, produzidas pela equipe do criador do personagem, Mike Anglo. Contudo, a Marvel Comics (que se considera a dona da palavra “marvel” no ramo dos quadrinhos) interferiu judicialmente, dificultando a continuação da série na Warrior e causando desavenças entre Skinn e Moore (o que levou ao aborto do projeto Nightjar, que teve o primeiro capítulo desenhado por Bryan Talbot e antecipava elementos que Moore utilizaria mais tarde no personagem John Constantine). Como resultado das disputas jurídicas e brigas pessoais, Marvelman foi suspensa no número 21 da Warrior. Sem sua série mais popular e não tendo alcançado um sucesso de vendas avassalador, a publicação chegou ao fim no número 26, em janeiro de 1985. De qualquer forma, sua contribuição para a história dos quadrinhos ocidentais já estava assegurada.

No formato magazine da Warrior, as páginas de V for Vendetta desdobravam-se no contraste em preto & branco dos desenhos de Lloyd (algo que se perde na edição em cores e formato reduzido da DC Comics). Além disso, o texto rebuscado e a trama política compostos por Moore eram então algo muito incomum para quadrinhos de aventura e mistério. Quanto a Marvelman (publicado no Brasil, via edição norte-americana, com o título Miracleman), a série de Moore, Leach e Davis teve um enorme impacto, sendo a primeira recriação racionalista de um super-herói clássico, nos anos 80. Estes dois trabalhos ficariam incompletos até 1989, quando Moore escreveu seus capítulos finais para as editoras DC Comics e Eclipse respectivamente. De qualquer forma, foi após despontar no mercado britânico, com HQs para a Warrior e também a 2000 AD, que Alan Moore acabou contratado pelo editor Lein Wein para assumir os roteiros da revista Swamp Thing (Monstro do Pântano). E aí, como se diz, “o resto é história”!

Para os interessados, todos os números da Warrior ainda podem ser encontrados à venda em lojas virtuais
britânicas e norte-americanas.

15/11/2007

Frank Miller: demolindo padrões dos quadrinhos.


Em 1979, um jovem e desconhecido desenhista chamado Frank Miller assumiu o lápis da revista Daredevil da Marvel Comics. No início, ele apenas desenhava as histórias escritas por Roger McKenzie, mas em pouco tempo passou a colaborar com o roteirista, para em seguida assumir também os roteiros. O fato é que, quando Miller desenhou sua primeira edição da Daredevil, a revista estava em vias de ser cancelada. Quando ele a deixou, em 1983, a publicação havia se tornado uma das mais vendidas e influentes do início dos anos 80, fazendo do Demolidor um personagem de primeira linha da Marvel, e de Frank Miller um nome conhecido e respeitado nos quadrinhos.

As histórias e os desenhos de Miller, complementados pela arte-final precisa de Klaus Janson, trouxeram uma ambientação e um realismo raros nos quadrinhos de super-heróis. Seus enquadramentos mostrando personagens de corpo inteiro, bem como seus “cortes” rápidos, valorizavam as sequências de ação, evidenciando a influência da narrativa cinematográfica moderna. Suas diversificadas e criativas divisões de página sublinhavam o “clima psicológico” dos roteiros, seguindo a risca os ensinamentos do mestre Will Eisner. E, é claro, há o elemento que conquistou os jovens leitores norte-americanos e brasileiros nos anos 80: a influência do mangá Lobo Solitário de Kazuo Koike e Goseki Kojima, do qual Miller pegou emprestado não apenas sequências de quadros, mas também samurais, ninjas, katanas, estrelinhas mortais e toda sorte de elementos japoneses. Não é à toa que, após salvar a revista do desaparecimento, Miller apresentou sua principal criação: a personagem Elektra, uma antiga namorada do Demolidor, que se tornara uma sensual assassina ninja.

Com grande atenção aos detalhes e à construção psicológica dos personagens, Miller se fez valer de narrativas paralelas (em que os leitores seguem ao mesmo tempo duas linhas de ação) e também de enquadramentos subjetivos (em cenas desenhadas a partir do ponto de vista de um personagem). Tornou-se célebre a página em que o Demolidor aponta uma arma para o rosto do Mercenário, com a "câmera" se aproximando do olho do vilão nas passagens de quadro, até o momento extremo, quando a sequência é cortada e aparece o dedo do Demolidor puxando o gatilho. O herói não aparece, mas toda a tensão e a carga emocional que envolve a cena estão presentes nos olhos do vilão. Se não bastasse a inovação narrativa, o tema em si era bastante incomum para os comics, pois mostra o protagonista da história fazendo roleta-russa com o assassino de sua amada. Para os padrões dos quadrinhos de super-heróis, algo revolucionário! Miller tocou em temas nunca vistos em histórias da Marvel, tudo com uma abordagem direta. Ele utilizou a vida cotidiana e o pequeno mundo do crime presente nas grandes cidades. Seus heróis eram tão realistas quanto seus vilões: pessoas com problemas comuns, paixões e medos.

Com a qualidade e a boa repercussão alcançada por suas histórias, Miller tornou-se uma espécie de “autor oficial do Demolidor”, e isso mesmo após sua saída da revista Daredevil. Mas para a alegria dos fãs, ele não demoraria muito a retornar às HQs do “homem sem medo” e da enigmática Elektra. Em parceria com o artista Bill Sienkiewicz, Miller criou em 1986 a Graphic Novel do Demolidor e a minissérie Elektra Assassina (obras que inovaram a estética dos quadrinhos de super-heróis, abrindo espaço para HQs com arte pintada). Ao mesmo tempo, ele retomou os roteiros da revista Daredevil, com a ótima série de histórias que ficou conhecida no Brasil como A queda de Murdock (desenhada pelo talentoso David Mazzucchelli). No início dos anos 90, Miller retornaria aos personagens que fizeram sua fama em duas histórias: Elektra Vive, uma graphic novel que demorou mais de cinco anos para ser concluída (gerando uma enorme expectativa entre os leitores, mas não correspondendo no fim) e Demolidor - O Homem Sem Medo, minissérie desenhada por John Romita Jr. (que repete a fórmula de Batman: Ano Um, mas sem o mesmo resultado).

Tendo sido um marco para os quadrinhos de super-heróis no início dos anos 80, as primeiras histórias de Frank Miller para o Demolidor contribuíram para mostrar aos editores que o público estava pronto e, sobretudo, desejava histórias mais sofisticadas com desenhos mais elaborados. Consideradas hoje um clássico dos quadrinhos de super-heróis, essas histórias foram relançadas no Brasil pela Panini em 2003, sendo recentemente reunidas pela Marvel no volume Daredevil by Frank Miller & Klaus Janson Omnibus HC, um calhamaço de capa dura e 816 páginas, ao preço de $99.99 US. Quando as histórias foram lançadas originalmente, não foi necessária tanta sofisticação editorial: bastaram simples revistinhas em papel-jornal, que custavam apenas cinquenta centavos de dólar e traziam o talento inovador de um jovem desenhista que demoliu velhos padrões dos quadrinhos.

14/11/2007

Meu encontro com Will Eisner.


Em outubro de 1997, Will Eisner visitou Belo Horizonte (MG) como convidado do projeto Conferências do Centenário e da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Para minha felicidade, eu estava “no lugar certo, na hora certa”! Na primeira manhã da visita de Eisner à cidade, fui interprete em sua coletiva para imprensa e tive o prazer de acompanhá-lo numa visita às exposições da Bienal. No dia seguinte, nós nos reencontramos rapidamente, quando pude presenteá-lo com um exemplar da revista SOLAR, em que faço uma pequena homenagem a The Spirit (a foto ao lado registra este momento e foi publicada numa revista da época). O texto a seguir saiu como uma matéria especial para um jornal de BH e foi atualizado para sua veiculação aqui. Ele relata como foi meu encontro com este mestre da "arte sequencial", falecido em janeiro de 2005.

É comum se dizer que as obras de um grande artista refletem sua alma. Essa frase pode não ser uma verdade absoluta, mas ela certamente se aplica a Will Eisner, o criador da série The Spirit e um dos mais importantes autores da história dos quadrinhos. Dedicando-se à criação e estudo das HQs por mais de sete décadas, ele foi um dos responsáveis pelo desenvolvimento da narrativa, estética e temática desta arte. Isso lhe garantiu reconhecimento e deferência não apenas por parte dos amantes dos quadrinhos, mas também daqueles que vêem as artes em geral como formas de expressão pessoal e interação entre as pessoas. Tendo sido um dos grandes artistas do século 20, em sua visita a Belo Horizonte Will Eisner mostrou-se sempre amável e acessível àqueles que se aproximavam para entrevistá-lo, pedir um autógrafo ou simplesmente trocar algumas palavras.

Se The Spirit foi fruto de um processo de desenvolvimento que, segundo seu criador, corresponderia à sua própria evolução enquanto artista, desde que surgiu em 1940 o personagem tornou-se um caso muito especial na galeria de heróis dos quadrinhos norte-americanos. Como o próprio Will Eisner o definia, Spirit é um herói com as fraquezas e limitações, medos e paixões dos seres humanos comuns. E ao introduzir em suas histórias questões da existência humana, Eisner mostrou que os heróis dos quadrinhos podiam ser mais que figuras unidimensionais que se espancam enquanto bradam falas cheias de clichês. Com The Spirit, os comics tornaram-se mais humanos.

De fato, algo inegável nos trabalhos deste grande mestre é a empatia. Da mesma forma que seu autor se mostrou amável e atencioso, suas histórias e desenhos são capazes de cativar a atenção valendo-se de uma simplicidade poética. Partindo de questões concretas do mundo real, seus roteiros criam situações que envolvem o leitor, tornando-o um cúmplice no desenrolar da trama. Afinal, como disse Eisner, “o leitor de quadrinhos jamais é um espectador passivo”.

Em obras-primas como Nova York - A Grande Cidade, o desenhista mostra-nos seu universo pessoal, através de impressões e opiniões sobre o mundo contemporâneo. Com um traço que se vale da precisão e da expressividade para dar vida a personagens e situações únicos, esse verdadeiro cronista da vida nas grandes cidades fazia poesia através de imagens. A “belíssima Belo Horizonte” que ele encontrou em 1997 não tem nada da “pequena cidade provinciana” sobre a qual ouvira falar, aproximando-se mais da clássica Nova York de seus livros, onde as contradições e conflitos da sociedade moderna tornam-se visíveis e o ritmo da vida ainda permite-nos vislumbrar personagens especiais perdidos na multidão.

Para um artista com décadas de atuação, o segredo da permanência de seus personagens e histórias é a simplicidade dos mesmos; é o fato de lidarem com questões básicas da existência que se mantêm ao longo do tempo. Mas, se a vitalidade do artista se refletia na permanência de sua obra, a paixão com que Eisner se referia aos quadrinhos era resultado da contínua renovação desta forma de arte, que a cada convenção ou bienal lhe presenteava com novidades como o “expressivo traço” de Henfil ou as “fortes imagens” dos desenhos de Marcelo Lelis.

Talvez a rápida transformação e superação do mundo que ele interpretava com tanto lirismo tenha sido o fato que levou Eisner a interromper as aventuras de Spirit, nos anos 50. O que ele não poderia prever é que seu personagem continuaria vivo, através de reedições e de uma fiel legião de fãs, ou que quando retornasse aos quadrinhos, na década de 1970, ele fosse o principal responsável pela formação de um novo gênero, as graphic novels. Como era de se esperar, alguém que iniciou duas grandes revoluções qualitativas sabia como poucos identificar os mecanismos de funcionamento e as especificidades dessa linguagem artística, como ele fez nos livros teóricos Quadrinhos e Arte Seqüencial e Narrativas Gráficas.

Se fôssemos comparar os quadrinhos a outras artes, teríamos que comparar Will Eisner a artistas como Picasso ou Fellini. Compreendendo e revolucionando as linguagens que escolheram, cada qual interpretou o mundo a partir de um ponto de vista particular, conciliando personalidade e universalidade. Transformando a estética, reinventando a linguagem, apropriando-se do clássico para popularizar a arte, eles deixaram suas impressões sobre o século 20. Mas é claro que dentre esses artistas, Will Eisner é o que tem menor reconhecimento. A desprestigiada arte por ele escolhida para se expressar continua não sendo tratada com a devida atenção e seriedade.

Se o leitor que percorreu estas linhas ainda não conhece a genialidade de Will Eisner, espero que minhas palavras tenham contribuído para despertar seu interesse. Tendo conhecido pessoalmente o criador, pude perceber que a paixão, vitalidade e grandiosidade de sua obra eram reflexos dele mesmo. Meu encontro com Will Eisner foi um daqueles momentos incomparáveis em que se recupera uma profunda paixão pelo que se faz. Enfim, não é todo dia que se conhece um grande gênio!

Uma entrevista com Will Eisner.


O norte-americano Will Eisner foi um dos grandes mestres da história dos quadrinhos. Nascido em 1917, ele iniciou sua carreira nos anos 30, sendo um dos responsáveis pelo desenvolvimento da narrativa, estética e temática da “arte sequencial” (nome pelo qual ele chamava os quadrinhos). Dominando a arte de contar uma história com imagens, Eisner levou para as páginas de suas HQs o cotidiano e os conflitos pessoais dos habitantes das grandes cidades, representando-os através de um estilo inconfundível. Em suas obras, a subjetividade e o cotidiano são elementos predominantes, evidenciando o trabalho de um observador atento que relata com consciência e lirismo a vida através dos quadrinhos.

Em outubro de 1997, o inventor das graphic novels esteve em Belo Horizonte (MG) para participar da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Na época, eu trabalhava como crítico de quadrinhos para um jornal de BH, e tive a oportunidade de entrevistá-lo pouco antes de sua vinda. O tema de nossa conversa feita por fax foram os quadrinhos como forma de arte.

O senhor já esteve no Brasil antes. Quais são suas expectativas em relação a Belo Horizonte?

Sim, eu já estive no Brasil várias vezes. Falaram-me muito sobre Belo Horizonte, de que é um lugar muito bonito. Espero encontrar colegas aí, para trocar idéias sobre os quadrinhos.

Em 1996, comemorou-se no mundo inteiro o que seria o centenário dos quadrinhos. O senhor concorda com quem diz que Yellow Kid foi a primeira história em quadrinhos? O que nos diz dos trabalhos de Rudolph Töpffer e Wilhelm Bush (considerados por muitos os verdadeiros criadores da linguagem dos quadrinhos)?

Definir a origem dos quadrinhos é muito difícil, pois a utilização literária de imagens data de séculos atrás. A Igreja na Europa usou esta forma de comunicação durante a Idade Média. Creio que podemos considerar Yellow Kid como sendo o começo da publicação em massa dos quadrinhos, ele foi a primeira tira diária a ser publicada. Certamente, Töpffer foi muito importante, mas ele não foi parte da ampla popularização desta mídia.

Qual seria o papel social dos quadrinhos na atualidade, e qual seu significado histórico?

Os quadrinhos são uma forma de literatura popular, como tal, eles refletem as transformações de nossa cultura. Eles continuam proporcionando um veículo narrativo profundamente ligado à sociedade moderna. Historicamente, os quadrinhos têm dado voz às relações sociais. Os quadrinhos de jornal, muitas vezes, lidam com relações étnicas e servem como uma introdução à compreensão de vizinhos que tenham uma origem cultural diferente.

O que o senhor acha dos quadrinhos publicados pelas grandes editoras norte-americanas?

Os quadrinhos publicados pelas grandes editoras nos Estados Unidos geralmente seguem a tendência dominante nos gostos e interesses dos jovens. Super-Heróis, o sustentáculo das grandes editoras, fornecem um suporte mitológico para as fantasias destes jovens. Mas algumas das grandes editoras estão atendendo a gostos mais sofisticados. Um desenvolvimento muito positivo.

Em seus trabalhos, o senhor nos mostrou que as histórias em quadrinhos podem ser muito mais que apenas diversão, assim, eu lhe devolvo uma pergunta de seu último livro The Graphic Storytelling [inédito no Brasil na época da entrevista]: “até onde os quadrinhos podem ir na abordagem de temas sérios”?

Eu sempre acreditei que os quadrinhos são capazes de lidar com um conjunto de temas mais amplo e mais significativo. Enquanto uma linguagem literária, esta mídia deve ser capaz de lidar com todo o conjunto dos conflitos humanos. Como o cinema e o teatro, a Arte Seqüencial também tem certas limitações, como a ausência do som e da música. No caso do cinema, é o fato dos personagens terem pouca profundidade. O futuro dessas artes reside em sua habilidade em superar o estigma de sua forma e trabalhar conteúdos mais sérios.

Suas obras lidam com as dimensões trágica e cômica da vida. Na sua opinião a vida se assemelha mais a uma tragédia ou a uma comédia?

Nossa!... A vida é tragicômica. Em meu trabalho eu lido com o que penso ser a questão fundamental, que é a batalha pela existência. Por isso, crio obras para um público adulto, que tenha mais experiência de vida.

Qual o futuro dos quadrinhos na era da computação?

A nova era do computador não alterará a estrutura básica dos quadrinhos. A história em quadrinhos é fundamentalmente uma narrativa contada com imagens. Ela não está irrevogavelmente ligada à impressão. Quando a tecnologia dos computadores evoluir, os quadrinhos encontrarão um lugar, pois sua linguagem se adequa claramente a ela. As regras da narrativa gráfica ainda se aplicarão.

11/11/2007

30 anos de Heavy Metal.


Em abril de 1977, surgiu nos Estados Unidos uma revista que mudaria a história dos quadrinhos ocidentais. Levando o que havia de mais revolucionário nas HQs européias para um mercado viciado aos padrões de sucesso, a Heavy Metal chegou para transformar e influenciar a produção de quadrinhos em todo o mundo.

Desde a década de 1960, os quadrinhos na Europa passavam por uma verdadeira revolução. Refletindo as transformações históricas e sociais, os trabalhos dos quadrinistas europeus introduziram novas temáticas, narrativas, técnicas e estilos de desenho. Esse movimento de renovação tornou-se mais claro e avassalador a partir do surgimento do grupo Les Humanoïdes Associés. Formado pelos quadrinistas Jean-Pierre Dionnet, Moebius e Phillippe Druillet, o grupo lançou nos anos 70 a revista Métal Hurlant.

Especializada em quadrinhos de ficção científica e fantasia, a Métal Hurlant tornou-se referência para quadrinistas em toda a Europa. Basta dizer que foi em suas páginas que surgiu Arzach, a revolucionária série de HQs sem balões, com as aventuras de um misterioso guerreiro que cavalga um gigantesco pássaro-fóssil. Com roteiros simples e desenhos fabulosos, estas pequenas histórias tiveram o impacto de verdadeiras “bombas” que colocaram o nome Moebius na galeria dos maiores artistas dos quadrinhos mundiais.

O sucesso da revista européia chamou a atenção de editores norte-americanos que, em 1977, decidiram lançar uma versão norte-americana: a Heavy Metal. Tendo como destaque traduções das HQs da Métal Hurlant, como a série Urm de Phillippe Druillet, a nova revista também abriu espaço para artistas norte-americanos, como Richard Corben com sua série Den. Misturando sexo, drogas, violência e ficção científica, trazendo inúmeros estilos e técnicas, as HQs da Heavy Metal conquistaram fãs em todo o mundo, popularizando os quadrinhos de vanguarda e inspirando a criação de várias versões e cópias estrangeiras.

A partir dos anos 80, contudo, a revista trocou a diversidade experimental e a contestação sociocultural por uma posição mais estável no mercado. Nos anos 90, a revista chegou até a ganhar uma breve edição brasileira. Nesse período, passaram por suas páginas ilustres colaboradores, como Simon Bisley, Enki Bilal, Milo Manara, Paolo Serpieri e Miguelangelo Prado. Mas, embora continue influenciando e trazendo um pouco do que há de melhor nos quadrinhos mundiais, a Heavy Metal de hoje não tem a mesma importância de sua versão de 30 anos atrás.

25 anos de um clássico dos mangás e animes.


Em 1990, começou a ser anunciado por aqui um novo longa-metragem de animação que prometia revolucionar o gênero. Com a chegada de Akira às telas de cinema do Ocidente, isso se confirmou, elevando o nome de seu criador, Katsuhiro Otomo, à galeria dos grandes artistas da animação e dos quadrinhos.

O mangá de ficção científica Akira estreou no Japão em 1982, estendendo-se numa série com mais de 2.000 páginas. Sua complexa trama se passa alguns anos após a Terceira Guerra Mundial, que teria se iniciado com a explosão de uma misteriosa bomba que destruiu Tóquio. Na versão ocidental, o ano é 2030 e a capital japonesa está sendo reconstruída para sediar os Jogos Olímpicos, num esforço internacional para consolidar a paz recém-conquistada. Indiferentes a isso, gangues de motoqueiros adolescentes travam batalhas nos subúrbios de Neo-Tóquio, enquanto seitas messiânicas aguardam a vinda de um enigmático salvador, chamado Akira.

Nesse ambiente caótico e sombrio, que nos remete ao filme Blade Runner, entram em cena o valente Kaneda e o inseguro Tetsuo. Por mero acaso, a dupla acaba se envolvendo com o exército, num incidente em que se manifestam os poderes psíquicos de Tetsuo. Levado para ser examinado, o amigo de Kaneda revela-se um poderoso paranormal. Em pouco tempo, seus poderes revelam-se tão incríveis quanto incontroláveis, e todo o poderio bélico das forças armadas japonesas é lançado contra ele. Mas nada consegue vencê-lo, e Tetsuo acaba libertando o enigmático Akira. Em meio a conspirações políticas e fanatismo religioso, Kaneda e sua namorada Kay empreendem uma desesperada tentativa de deter Tetsuo.

Trazendo ainda vários personagens coadjuvantes, o ótimo roteiro de Otomo é quase eclipsado pelos excelentes desenhos. Valendo-se de um preciso senso narrativo, as páginas de Akira trazem como principal destaque as ilustrações dinâmicas e detalhadas. Para aqueles que não acompanharam a série quando lançada no Brasil pela Globo, e enquanto nenhuma editora relança este clássico dos quadrinhos por aqui, uma saída é assistir ao longa-metragem produzido e dirigido por Otomo. O filme é um elaborado resumo da intrincada trama do mangá, não deixando nada a dever em termos técnicos às animações feitas nos últimos anos. Como todo clássico que se preze, Akira resiste ao desafio do tempo!

As histórias de Asterix e Obelix.


De acordo com os livros de História, no ano 50 antes de Cristo, a Gália (região identificada com a França atual) era totalmente dominada pelo Império Romano. Mas isso não é verdade! Afinal, uma pequena aldeia de “irredutíveis gauleses” resistiu bravamente ao avanço das legiões de Júlio César. E o fato é que, desde 1959, as aventuras de Asterix e Obelix saem das páginas dos quadrinhos de René Goscinny e Albert Uderzo direto para a imaginação de leitores em todo o mundo.

Nos anos 50, a Europa ocidental vivia um processo de invasão cultural. O cinema, a música e os quadrinhos norte-americanos tomaram espaços e conquistaram o público. Como uma forma de crítica e sátira a essa invasão “imperialista”, o roteirista René Goscinny e o desenhista Albert Uderzo criaram o herói Asterix (inspirando-se em Vercingétorix, um líder da resistência gaulesa ao Império Romano). Embora Goscinny tenha afirmado que não houve a intenção de se estabelecer uma relação entre os invasores romanos do ano 50 a. C. e os norte-americanos da década de 1950, é difícil não pensarmos nesta identificação, reforçada pelas inúmeras referências ao mundo contemporâneo.

Um dos motivos que levou Asterix a conquistar os franceses e europeus em geral foi, sem dúvida, as caricaturas baseadas nas peculiaridades das diversas nacionalidades. Nas viagens de Asterix, Obelix e seu cãozinho Idéiafix pela Hispânia, Bretânia, Lusitânia ou Roma, Uderzo e Goscinny ressaltaram com humor as idiossincrasias (e esquisitices) dos espanhóis, ingleses, portugueses ou italianos. Assim, sem recorrer ao besteirol e utilizando uma reconstituição histórica precisa, as HQs de Asterix conseguiram agradar a gregos e troianos.

Embora seja comum se dizer que as aventuras dos heróis gauleses perderam em qualidade com a morte de Goscinny em 1977, a verdade é que o desenhista Uderzo conseguiu manter o espírito original nos livros que criou sozinho. De fato, não faltam os elementos que sempre caracterizaram as HQs de Asterix: as lutas contra os romanos, o companheirismo que envolve os heróis, a poção mágica do venerável Druida, as caricaturas dos vários povos europeus, mais lutas contra os romanos e as trapalhadas do ingênuo (mas sincero e sensível) Obelix.

Definido por Uderzo como “um pequeno homenzinho para fazer rir”, ou como a “caricatura do francês médio”, Asterix tornou-se um símbolo da França. Se não bastassem os bonecos, bonés e todo tipo de bugigangas, o herói gaulês e sua turma ganharam até um parque temático, o Parc Astérix, construído próximo a Paris. Além disso, temos os vários desenhos animados e os filmes com a participação de Gerard Depardieu no papel de Obelix.

Por todo o mundo, já foram vendidos dezenas de milhões de exemplares dos 33 livros da série Asterix, com traduções para mais de 100 línguas. Talvez um dos motivos desse sucesso seja o fato de estas HQs serem totalmente identificadas com seus criadores, pois como o próprio Uderzo definiu seus álbuns são “o produto de um trabalho de criação artesanal”. E podemos dizer que, cantando sua aldeia, Goscinny e Uderzo conquistaram o mundo. No Brasil, o álbuns de Asterix são lançados pela editora Record.

07/11/2007

Pererê, uma aventura brasileira.


Em abril de 1964, foi lançado o último número da revista Pererê, uma das mais memoráveis e bem-sucedidas experiências dos quadrinhos brasileiros. Escrita e desenhada por Ziraldo, com arte-final de Paulo Abreu, cores de Heucy Miranda e letras de João Barbosa, em suas 43 edições mensais, a Pererê marcou época e deixou saudades. Saudades de um Brasil que era feliz.

A aventura em quadrinhos de Ziraldo & Cia. começou no fim dos anos 50, quando o cartunista mineiro trabalhava na equipe de produção da revista O Cruzeiro. Sendo a publicação nacional mais importante da época, O Cruzeiro trazia reportagens especiais sobre nossa cultura e sociedade, matérias sobre comportamento e moda, além de colunas políticas e páginas de cartuns (as “piadas desenhadas”).

A equipe de humoristas daquele importante semanário era uma verdadeira constelação: Péricles, Carlos Estêvão, Millôr Fernandes, Borjalo e o próprio Ziraldo, que passou a publicar cartuns silenciosos estrelados por um saci pererê. Timidamente, ocupando meias-páginas, nascia (ainda que em esboço) um dos principais heróis de nossos quadrinhos.

Em meio ao clima nacionalista da época, os editores de O Cruzeiro decidiram lançar revistas em quadrinhos com personagens brasileiros. A primeira e mais duradoura delas foi exatamente a Pererê, lançada em outubro de 1960. Conquistando leitores por todo o país, a primeira revista em quadrinhos brasileira totalmente colorida tinha a impressionante tiragem mensal de 120 mil exemplares. Com um desenho moderno e cores vivas, reinventando a narrativa quadrinística e dialogando com a cultura, a revista do Saci tinha a cara e a alma do Brasil.

Além de seu protagonista de uma perna só, a série trazia os simpáticos personagens da Mata do Fundão: o valente índio Tininim, a onça Galileu Bonifácio, o macaco Allan, o tatu Pedro Vieira, o jabuti Moacir e o coelho Geraldinho. Havia ainda a amorosa Mamãe Docelina e o intelectualizado corujão General Nogueira. Embelezando as páginas, apareciam as meninas Boneca de Piche e Tuiuiu, musas de Saci e Tininim, mas também motivos de disputas dos meninos com os rivais Rufino e Flecha Firme. E por falar nos “vilões” da revista (que na verdade não tinham nada de maus), o onção Galileu não podia dormir no ponto, senão acabava capturado pelos caçadores Compadre Tonico Macedo e Seu Neném Moreira, sempre às voltas com as mais mirabolantes armadilhas.

Passadas num ambiente natural e valorizando a vida no campo, aquelas aventuras tinham muito das memórias da infância de Ziraldo na pacata Caratinga (MG). Mas a Pererê também tinha um pé no mundo moderno, afinal, o Saci e seus amigos costumavam viajar para fazer compras na “cidade” ou para visitar o Rio (de Janeiro). Por dentro das novidades e ligados em eventos importantíssimos como a Copa do Mundo, amigos do Tarzan e admiradores da Arte Modernista, os meninos da Mata do Fundão só não gostavam muito da televisão, preferindo um bom livro de aventuras. E para causar espanto naqueles verdadeiros superamigos, só mesmo a aparição de um disco voador ou de um alienígena em pessoa.

Cultura popular e ficção científica, humor e aventura, cartum e literatura são alguns dos ingredientes de uma mistura de sucesso, uma série em quadrinhos na qual a diversão anda de mãos dadas com a arte. Mostrando um Brasil cheio de vida e orgulho de si próprio, habitado por índios e gente-de-faz-de-conta, animais falantes e heróis camaradas, a revista Pererê acabou no dia da mentira, em 1° de abril de 1964. Começava então uma outra época, triste e sombria, chamada Ditadura Militar, na qual era proibido dizer ou escrever tudo o que se pensava. Amigo da festa e da alegria, o esperto Saci de Ziraldo já não podia viajar livremente, montado em seu fiel redemoinho de vento.

Mas, depois de muita luta, felizmente aquele tempo triste e sombrio virou história. E hoje os antigos leitores da Pererê podem reencontrar o Saci e sua turma, enquanto os novos leitores podem viajar pela deliciosa descoberta daquele Brasil que era feliz. As histórias originais da Turma da Mata do Fundão podem ser encontradas nos álbuns da coleção Todo Pererê da editora Salamandra. Vale conferir!

Texto baseado em meu livro inédito Pererê, uma aventura brasileira.

06/11/2007

Corto Maltese, o último herói romântico.


Segundo Hugo Pratt, o Corto Maltese nasceu na Ilha de Malta, em 1887. Filho de uma cigana e de um marinheiro inglês, o Corto seguiu fielmente sua herança nômade. Da Itália à Somália, passando pela Inglaterra, Brasil e China, este Marco Polo moderno viveu aventuras por todo o mundo. Os álbuns com suas histórias correspondem a um período que vai de 1904 a 1924, durante o qual o herói participou da Guerra da Manchúria e da Primeira Guerra Mundial, tendo encontrado revolucionários irlandeses, piratas do pacífico, índios e cangaceiros.

Porém, em muitas de suas histórias, o Corto Maltese não é o personagem principal, tampouco o herói que salva a mocinha no final. Muitas vezes, a mocinha ou um suposto bandido são os protagonistas, e é o próprio Corto que precisa ser salvo. Sem dúvida, um dos motivos do sucesso dos álbuns do herói cigano é a galeria de personagens que compõem suas histórias: soldados, belas mulheres, feiticeiros, piratas, aventureiros e trapaceiros se encontram em histórias que incluem até o Mago Merlin, a Morte e o Diabo.

Se os roteiros dinâmicos e envolventes remetem à tradição literária de autores como Jack London e Ernest Hemingway, foram as experiências pessoais de Pratt que deram densidade e credibilidade a suas histórias. Com seu grafismo único, o quadrinista reproduzia personagens e paisagens de todo o mundo, sem recorrer aos modelos estereotipados e com a autoridade de quem viu com os próprios olhos, ou de quem tinha o espírito curioso do pesquisador.

Cada aventura do Corto Maltese é um depoimento sobre o mundo. Um depoimento que se faz no expressionismo dos contrastes entre branco e preto, e numa narrativa que se reinventa a cada página. Pratt revelou que o Corto Maltese teria morrido durante a Guerra Civil Espanhola, embora esta aventura final jamais tenha sido desenhada. A identificação entre criador e criatura é inegável: Hugo Pratt foi um verdadeiro “homem do mundo” e seu Corto Maltese o último herói romântico.

80 anos de Hugo Pratt, 40 anos do Corto Maltese.


Na história dos quadrinhos, alguns autores criaram trabalhos inovadores, estabelecendo um estilo que influenciou decisivamente a trajetória desta arte. Como exemplos destes criadores de “escolas” podemos citar Will Eisner, Jack Kirby, Osamu Tezuka, Moebius e, sem dúvida alguma, Hugo Pratt. Se estivesse vivo, o quadrinista italiano teria completado 80 anos em 2007, ao mesmo tempo em que sua maior criação, o personagem Corto Maltese, completa 40 anos.

Hugo Pratt nasceu em 15 de junho de 1927. Seu pai era um militar simpatizante do fascismo, mas Pratt definia a si mesmo como um libertário. E de fato a mensagem de liberdade é o que melhor caracteriza suas histórias e desenhos. A infância passada em Veneza e na Abissínia proporcionaram ao desenhista os primeiros contatos com as fontes de inspiração para seu trabalho: os romances de aventura, os quadrinhos clássicos e o encontro do europeu com outros povos.

Após a morte de seu pai, Pratt retornou à Itália, onde iniciou a carreira de quadrinista em 1945. Suas primeiras HQs renderam-lhe um convite para trabalhar em editoras na Argentina. Para elas, Pratt desenhou várias séries, das quais a mais conhecida é Sargento Kirk, escrita por Héctor Oesterheld. Apaixonado por viagens e descobertas, ele logo se lançaria para outras terras, tendo trabalhado na Inglaterra, França e até no Brasil. Retornando à Itália, no início dos anos 60, o desenhista com espírito cigano trabalhou em adaptações de romances para os quadrinhos. Então, em 1967, Pratt lançou “A Balada do Mar Salgado”, história em que aparece pela primeira vez o herói Corto Maltese.

O sucesso do personagem, que levaria Pratt à consagração internacional, começou na França em 1969. Neste mesmo ano, surgiu Os Escorpiões do Deserto, série que se passa na África durante a Segunda Guerra, reproduzindo uma realidade que o quadrinista conheceu diretamente. Além de ter desenhado centenas de páginas de quadrinhos, Hugo Pratt também escreveu romances e os álbuns Verão Índio e O Gaúcho, ilustrados por Milo Manara. Seus últimos trabalhos foram os álbuns , com a última aparição do Corto Maltese, e O Último Vôo, inspirado na obra O Pequeno Príncipe de Antoine de Saint-Exupéry. Dono de uma poética muito particular, que faz de seus quadrinhos obras inesquecíveis, o mestre italiano faleceu na Suíça em 20 de agosto de 1995.

05/11/2007

Hellboy, uma mistura original.


Incorporando influências de grandes mestres dos quadrinhos, o norte-americano Mike Mignola aprimorou seu estilo narrativo, inventando para si um traço ao mesmo tempo sintético e bastante expressivo. E se a arte dos quadrinhos é contar uma história através de imagens e palavras, Hellboy é uma obra-prima!

Mignola ficou mais conhecido no Brasil após o lançamento de Batman 1889 (revista na qual o Homem-Morcego enfrenta Jack, o Estripador) e da minissérie Odisséia Cósmica (estrelada pelos principais heróis da DC e pelo vilão Darkseid). No primeiro trabalho, fica evidente seu talento e predileção pelo uso de sombras ao estilo do quadrinista italiano Hugo Pratt (Corto Maltese), enquanto no outro o que se destaca é a influência da estética e narrativa do norte-americano Jack Kirby (Novos Deuses). Em seguida, Mignola juntou-se a Howard Chaykin para criar Ironwolf: The Fires of Revolution, minissérie que traz personagens, ambientes e visual inspirados pelos desenhos do francês Moebius (Incal).

Em Hellboy, lançado originalmente pelo selo Legend, Mignola alcançou uma mistura perfeita dessas influências, temperada com uma boa dose de invenção e originalidade. A história começa na Inglaterra em 1944, quando um grupo de agentes anglo-americanos investiga uma conspiração nazista. Há alguns quilômetros dali, numa ilha da Escócia, agentes alemães realizam uma estranha cerimônia que envolve magia negra e bizarras tecnologias. Mas algo sai errado para os seguidores de Hitler, e o bebê Hellboy (o produto do ritual maligno) cai em mãos inimigas, sendo adotado por um pesquisador do sobrenatural norte-americano. Com uma índole bondosa e um gosto por pancadarias, Hellboy acaba se tornando um importante agente que percorre o mundo enfrentando ameaças e resolvendo enigmas sobrenaturais.

Povoada por nazistas, fantasmas, monstros, demônios e ocultistas, a série Hellboy vai muito além do gênero do terror, resgatando a origem mítica e a força cultural de tipos como o lobisomem. Recorrendo freqüentemente à História e à Literatura, as tramas criadas por Mignola dão vida nova a personagens já banalizados pelo cinema e pelos quadrinhos. Acima de tudo, Hellboy nos lembra que para se conquistar o mercado e o grande público não é preciso render-se aos modismos, deixando de lado a qualidade e originalidade.

Legend, um selo de qualidade nos quadrinhos.


Nos anos 80, os quadrinhos de super-heróis da Marvel e DC passaram por uma das melhores fases de sua história. A influência das HQs européias e japonesas, os trabalhos produzidos pelos autores ingleses e uma maior sofisticação das edições deram origem a uma revolução qualitativa nos comics. Em 1993, alguns dos autores responsáveis por aquele excepcional momento decidiram se juntar para lançar o selo Legend.

A idéia de reunir um grupo de quadrinistas (baseando-se na qualidade de seus trabalhos e objetivando a manutenção dos direitos autorais das HQs e personagens) partiu de Frank Miller e John Byrne. Segundo Miller, esta era uma idéia antiga que voltou à tona em 1992, quando Todd McFarlane, Jim Lee e Rob Liefeld criaram a Image Comics (editora que sacudiu o mercado norte-americano de quadrinhos, abalando a hegemonia da Marvel e DC).

No início da década de 1990, Miller e Byrne estavam envolvidos em projetos lançados pela Dark Horse (editora que se tornara conhecida por lançar quadrinhos autorais e adaptações de filmes para as HQs). Miller havia escrito as minisséries Liberdade (desenhada por Dave Gibbons) e Hard Boiled (ilustrada por Geof Darrow), e estava produzindo a série Sin City. Já Byrne começava a desenvolver a série Next Men (que originalmente havia sido planejada para ser a base do universo Marvel 2099).

Motivados pelos resultados alcançados pela Image, Miller e Byrne resolveram reunir um grupo de quadrinistas, que contava com o talento de Mike Mignola, Dave Gibbons, Arthur Adams, Mike Allred, Paul Chadwick e Geof Darrow. Assim nascia o selo Legend, com o qual as histórias e personagens do grupo seriam publicadas pela Dark Horse, mas permanecendo como propriedade de seus autores. Os variados estilos, a originalidade e a identificação do trabalho com seu autor eram elementos marcantes nas revistas do Legend (algo muito diferente de se ter um bando de desenhistas-dublês que copie o estilo de um autor mais famoso).

Através do selo, Miller passou a publicar as novas histórias com a personagem Martha Washington (desenhadas por Dave Gibbons), as novas minisséries de Sin City, além de lançar a HQ The Big Guy and Rusty (desenhada por Geof Darrow). John Byrne levou para Legend a série Next Men, com seus super-heróis de um mundo sombrio. Paul Chadwick chegou com as HQs de Concreto, um introspectivo personagem dividido pelo desejo de ser um herói e os problemas causados por seu corpo monolítico. Arthur Adams lançou a série Monkeyman and O’Brien, com as histórias de um gorila extradimensional e sua companheira fortona. Mike Allred transferiu para o selo seu personagem Madman, uma estranha mistura do Capitão Marvel com o Monstro de Frankenstein. Mike Mignola trouxe Hellboy, uma série de histórias estreladas por um heróico demônio simiesco.

A experiência do selo Legend não durou muito, mas séries como Sin City e Hellboy frutificaram em várias continuações, mesmo após o selo deixar de ser usado (e se hoje as criações de Miller e Mignola alcançam notoriedade internacional através dos filmes de Hollywood, isso em grande parte se deve à semente lançada em 1993). O fato é que as revistas com o selo Legend não seguiam o padrão de produção industrial dos comics em geral, aproximando-se da forma como os artistas europeus criam suas HQs. Sem se preocupar em criar personagens e histórias para serem transformados em brinquedos ou desenhos animados, os integrantes do grupo Legend mostraram como conciliar interesses editoriais e qualidade artística. E esta é uma lição que não deveria ser esquecida!

04/11/2007

Uma imagem distorcida.


Quando surgiu em 1992, a proposta da Image Comics era permitir a independência dos autores em relação às grandes editoras (que em geral mantêm controle direto sobre o material produzido e detêm os direitos autorais sobre o que é publicado). Nesse sentido, a nova editora representou uma revolução na indústria dos comics, já que os desenhistas-fundadores tornaram-se donos de suas criações, mantendo os direitos autorais sobre os personagens e recebendo os rendimentos relativos ao uso de suas marcas e imagens.

A possibilidade de independência e manutenção dos direitos sobre suas criações (e é claro alguns milhares de dólares) acabaram atraindo outros autores para a Image. Nomes consagrados, como Alan Moore (V de Vingança, Watchmen), Frank Miller (Ronin, O Cavaleiro das Trevas), Neil Gaiman (Orquídea Negra, The Sandman), Barry Windsor-Smith (Conan, Arma-X) e Chris Claremont (o pai dos mutantes modernos) produziram edições especiais ou séries com os personagens da Image. Outros autores, como Greg Capullo, Jae Lee ou Marc Teixeira (que despontavam na Marvel como novos talentos) também foram parar na nova editora, multiplicando o número de seus títulos e personagens.

Porém, desde o início, a qualidade dos títulos da Image deixou a desejar (há é claro exceções, como a série The Maxx, criada por Sam Kieth). Rob Liefeld nunca foi um grande desenhista, e mesmo em seus trabalhos para a Marvel os erros de anatomia e as falhas na narrativa eram freqüentes. Quanto a Jim Lee e Todd McFarlane, pode-se dizer que a qualidade de seus trabalhos diminuiu sensivelmente (bastando uma rápida comparação entre seus últimos trabalhos para a Marvel e os primeiros números de Wild C.A.Ts. e Spawn). A verdade é que as “imagens” dizem tudo!

O crescimento da editora (chamada por alguns na época de “cooperativa de desenhistas”) levou a uma situação semelhante à da Marvel, em que um grupo de editores comanda a produção de vários desenhistas e roteiristas. A diferença é que, no caso da Image, a grande editora que tudo controla foi substituída por estúdios que tudo comandam. Com isso, o sonho de liberdade e independência, proposto pela Image em sua origem, revelou-se em pouco tempo apenas mais um desdobramento da política editorial que favorece os mais poderosos, apoiando-se na produção de quadrinhos de baixa qualidade e nenhuma originalidade.