Na história dos quadrinhos, poucas revistas causaram tanto impacto quanto Batman: The Dark Knight Returns, lançada pela DC Comics em 1986. Apresentando um herói cinquentão e obstinado que luta para salvar uma caótica Gotham City do futuro, esta minissérie em quatro edições ajudou a transformar o mercado norte-americano, abrindo caminho para as graphic novels e minisséries de luxo. A partir dela, os editores perceberam que quadrinhos de super-heróis voltados para um público mais maduro poderiam ser um bom negócio. Escrita e desenhada por Frank Miller, arte-finalizada por Klaus Janson e pintada por Lynn Varley, Batman: O Cavaleiro das Trevas (título que a HQ recebeu no Brasil em 1987) também inauguraria um novo padrão artístico para os quadrinhos de super-heróis.
Ao iniciar a história, Miller sabia que estava lidando com importantes ícones culturais, sem falar nos milhões de dólares que giram em torno do “bat-símbolo” e do “super-S”. E o que ele fez, ao longo das 200 páginas da história, foi justamente resgatar o caráter original dos personagens, recuperando sua força arquetípica, minada por décadas de plágios e HQs estereotipadas. Mas o sucesso avassalador da minissérie não se deveu apenas à qualidade do roteiro, narrativa e desenhos. Miller já era um dos artistas mais valorizados do mercado norte-americano e, graças ao seriado de tevê dos anos 60, Batman era um fenômeno cultural que extrapolava os quadrinhos (lembremos inclusive que muitos dos jornalistas e críticos que saudaram efusivamente a minissérie, em 1986, eram crianças ou jovens nos anos 60).
Contudo, a hilária série de tevê estrelada por Adam West estava muito distante da abordagem pretendida por Miller, que contou com outros referenciais para sua versão séria dos super-heróis. Ainda nos anos 70, os quadrinistas Denny O’Neill e Neal Adams haviam produzido boas HQs buscando o caráter mais sombrio de Batman, e já nos anos 80 Alan Moore tinha feito a primeira recriação racionalista de um antigo super-herói, com a série Marvelman (que Miller homenageia, desenhando um garoto vestido como o herói britânico, na página 11 do último capítulo de sua minissérie).
Em O Cavaleiro das Trevas, os personagens são o elemento fundamental de um politizado roteiro. Batman aparece como um guerreiro imbatível movido por um único propósito: combater o crime, mesmo que para isso seja necessário infringir a Lei. Já o Super-Homem apresenta-se como o defensor da Lei, mesmo que isso signifique ser um mero “garoto de recados” do governo norte-americano. Alfred continua sendo o fiel e espirituoso escudeiro de Batman. O Coringa representa tudo que ele mais abomina, enquanto o comissário Gordon, os valores morais que o herói quer defender. E há a Robin, uma adolescente que conquista o afeto do herói cinquentão. Isso sem falar numa plêiade de personagens coadjuvantes.
Ao longo da história, o que une personagens tão diversos é o fato de todos estarem à sombra de Batman, servindo-lhe de contraponto e sempre reforçando sua figura quase monolítica. Neste sentido, o Cavaleiro das Trevas criado por Miller é uma reação ao que vinha acontecendo desde os anos 70, quando a indústria dos comics foi afetada pela crise econômica e moral nos Estados Unidos. Naquele momento, os super-heróis clássicos (depositários do otimismo e nacionalismo norte-americanos) perderam sua credibilidade. Afinal, enquanto o antes imbatível Capitão América era derrotado no Vietnã, nem mesmo o quase onipotente Super-Homem era capaz de superar a recessão econômica e os escândalos políticos.
Ambientada num futuro próximo, no qual um senil Ronald Reagan é o presidente do país, a obra de Miller reflete o novo clima político e social da década de 1980. Na Gotham City do futuro, a redução dos fundos destinados à assistência social, a corrupção e incompetência dos políticos, o efeito estufa e uma eminente guerra nuclear contra a União Soviética são algumas das causas da violência e insegurança que tomam conta da sociedade. Nessa “terra de ninguém”, dominada por gangues de adolescentes assassinos, Batman é o herói redentor, cujo retorno é aguardado (algo como Rei Arthur ou Jesus Cristo). Entretanto, por mais que Miller critique o governo e os políticos, há algo que é sempre resguardado em suas HQs: um suposto espírito empreendedor norte-americano, incansável em sua busca por justiça. Diante de um governo decadente, as ações ilegais do Cavaleiro das Trevas estariam assim justificadas. Com isso, o Super-Homem, “que sempre diz sim a alguém com um distintivo ou bandeira”, é enviado para deter o subversivo Batman.
Quanto ao visual, o estilo rebuscado dos desenhos de Frank Miller e Klaus Janson, somado às cores de Lynn Varley, dá maior densidade aos personagens e veracidade à história. Mas é em termos de narrativa que O Cavaleiro das Trevas trouxe sua maior contribuição à arte dos quadrinhos. Nas HQs do Demolidor, além de uma narrativa “cinematográfica”, Miller misturou influências de Will Eisner ao mangá Lobo Solitário. Já em Ronin, somaram-se elementos dos europeus Moebius e Bilal. O Cavaleiro das Trevas é uma síntese dessas experiências, acrescentando-se a influência de Hugo Pratt, que recebe citações diretas (a ilha em que se dá o conflito entre EUA e URSS chama-se Corto Maltese e, no segundo capítulo, a página que mostra a bandeira norte-americana transformando-se no “S” do Super-Homem foi adaptada de uma HQ do quadrinista italiano).
Narrativa subjetiva, enquadramentos em pormenor, valorização da sequencialidade, zooms, flashbacks, intercalação de narrativas e imagens de página inteira são alguns dos recursos empregados de forma articulada e original por Miller. Fizeram escola o uso dos quadros em forma de telinha de tevê e a sequência da morte dos pais de Bruce Wayne. Logo no primeiro capítulo, uma lição de como prender a atenção do leitor (ao estilo do filme Tubarão de Steven Spielberg): passam-se 27 das 47 páginas, antes que Batman surja triunfal, numa página inteira. O Cavaleiro das Trevas também influenciou a forma de se abordar os super-heróis, que se tornariam mais violentos nos anos seguintes (como se para imprimir mais “realismo” e atrair o público fosse necessário estar sempre superando a agressividade das edições anteriores). Por outro lado, a obra de Miller abriu caminho para trabalhos que deram continuidade ou reforçaram suas conquistas, como Batman: Ano Um, A Piada Mortal, Asilo Arkham, Batman 1889, além da ótima série de animação lançada pela Warner em 1992.
O fato é que, a partir de O Cavaleiro das Trevas com sua abordagem mais “realista”, os quadrinhos de super-heróis passaram a ser vistos com outros olhos. O caráter politizado da minissérie, mas principalmente a qualidade gráfica, o elaborado roteiro e a narrativa inovadora deram-lhe o título de clássico dos quadrinhos, tornando-a uma referência para novos autores. Com ela, Frank Miller tornou-se um nome reconhecido internacionalmente e o Homem-Morcego viveu novamente uma onda de “batimania”, que incluiu filmes, desenhos animados, brinquedos e várias bugigangas. Sobretudo, esta HQ é uma leitura indispensável para os fãs do Batman, e também do Super-Homem.
Atualmente, O Cavaleiro das Trevas está disponível no Brasil em duas edições (capa dura e brochura) lançadas pela Panini. O volume inclui extras e também DK2, a coloridinha e dispensável sequência que Miller produziu há alguns anos.
Ao iniciar a história, Miller sabia que estava lidando com importantes ícones culturais, sem falar nos milhões de dólares que giram em torno do “bat-símbolo” e do “super-S”. E o que ele fez, ao longo das 200 páginas da história, foi justamente resgatar o caráter original dos personagens, recuperando sua força arquetípica, minada por décadas de plágios e HQs estereotipadas. Mas o sucesso avassalador da minissérie não se deveu apenas à qualidade do roteiro, narrativa e desenhos. Miller já era um dos artistas mais valorizados do mercado norte-americano e, graças ao seriado de tevê dos anos 60, Batman era um fenômeno cultural que extrapolava os quadrinhos (lembremos inclusive que muitos dos jornalistas e críticos que saudaram efusivamente a minissérie, em 1986, eram crianças ou jovens nos anos 60).
Contudo, a hilária série de tevê estrelada por Adam West estava muito distante da abordagem pretendida por Miller, que contou com outros referenciais para sua versão séria dos super-heróis. Ainda nos anos 70, os quadrinistas Denny O’Neill e Neal Adams haviam produzido boas HQs buscando o caráter mais sombrio de Batman, e já nos anos 80 Alan Moore tinha feito a primeira recriação racionalista de um antigo super-herói, com a série Marvelman (que Miller homenageia, desenhando um garoto vestido como o herói britânico, na página 11 do último capítulo de sua minissérie).
Em O Cavaleiro das Trevas, os personagens são o elemento fundamental de um politizado roteiro. Batman aparece como um guerreiro imbatível movido por um único propósito: combater o crime, mesmo que para isso seja necessário infringir a Lei. Já o Super-Homem apresenta-se como o defensor da Lei, mesmo que isso signifique ser um mero “garoto de recados” do governo norte-americano. Alfred continua sendo o fiel e espirituoso escudeiro de Batman. O Coringa representa tudo que ele mais abomina, enquanto o comissário Gordon, os valores morais que o herói quer defender. E há a Robin, uma adolescente que conquista o afeto do herói cinquentão. Isso sem falar numa plêiade de personagens coadjuvantes.
Ao longo da história, o que une personagens tão diversos é o fato de todos estarem à sombra de Batman, servindo-lhe de contraponto e sempre reforçando sua figura quase monolítica. Neste sentido, o Cavaleiro das Trevas criado por Miller é uma reação ao que vinha acontecendo desde os anos 70, quando a indústria dos comics foi afetada pela crise econômica e moral nos Estados Unidos. Naquele momento, os super-heróis clássicos (depositários do otimismo e nacionalismo norte-americanos) perderam sua credibilidade. Afinal, enquanto o antes imbatível Capitão América era derrotado no Vietnã, nem mesmo o quase onipotente Super-Homem era capaz de superar a recessão econômica e os escândalos políticos.
Ambientada num futuro próximo, no qual um senil Ronald Reagan é o presidente do país, a obra de Miller reflete o novo clima político e social da década de 1980. Na Gotham City do futuro, a redução dos fundos destinados à assistência social, a corrupção e incompetência dos políticos, o efeito estufa e uma eminente guerra nuclear contra a União Soviética são algumas das causas da violência e insegurança que tomam conta da sociedade. Nessa “terra de ninguém”, dominada por gangues de adolescentes assassinos, Batman é o herói redentor, cujo retorno é aguardado (algo como Rei Arthur ou Jesus Cristo). Entretanto, por mais que Miller critique o governo e os políticos, há algo que é sempre resguardado em suas HQs: um suposto espírito empreendedor norte-americano, incansável em sua busca por justiça. Diante de um governo decadente, as ações ilegais do Cavaleiro das Trevas estariam assim justificadas. Com isso, o Super-Homem, “que sempre diz sim a alguém com um distintivo ou bandeira”, é enviado para deter o subversivo Batman.
Quanto ao visual, o estilo rebuscado dos desenhos de Frank Miller e Klaus Janson, somado às cores de Lynn Varley, dá maior densidade aos personagens e veracidade à história. Mas é em termos de narrativa que O Cavaleiro das Trevas trouxe sua maior contribuição à arte dos quadrinhos. Nas HQs do Demolidor, além de uma narrativa “cinematográfica”, Miller misturou influências de Will Eisner ao mangá Lobo Solitário. Já em Ronin, somaram-se elementos dos europeus Moebius e Bilal. O Cavaleiro das Trevas é uma síntese dessas experiências, acrescentando-se a influência de Hugo Pratt, que recebe citações diretas (a ilha em que se dá o conflito entre EUA e URSS chama-se Corto Maltese e, no segundo capítulo, a página que mostra a bandeira norte-americana transformando-se no “S” do Super-Homem foi adaptada de uma HQ do quadrinista italiano).
Narrativa subjetiva, enquadramentos em pormenor, valorização da sequencialidade, zooms, flashbacks, intercalação de narrativas e imagens de página inteira são alguns dos recursos empregados de forma articulada e original por Miller. Fizeram escola o uso dos quadros em forma de telinha de tevê e a sequência da morte dos pais de Bruce Wayne. Logo no primeiro capítulo, uma lição de como prender a atenção do leitor (ao estilo do filme Tubarão de Steven Spielberg): passam-se 27 das 47 páginas, antes que Batman surja triunfal, numa página inteira. O Cavaleiro das Trevas também influenciou a forma de se abordar os super-heróis, que se tornariam mais violentos nos anos seguintes (como se para imprimir mais “realismo” e atrair o público fosse necessário estar sempre superando a agressividade das edições anteriores). Por outro lado, a obra de Miller abriu caminho para trabalhos que deram continuidade ou reforçaram suas conquistas, como Batman: Ano Um, A Piada Mortal, Asilo Arkham, Batman 1889, além da ótima série de animação lançada pela Warner em 1992.
O fato é que, a partir de O Cavaleiro das Trevas com sua abordagem mais “realista”, os quadrinhos de super-heróis passaram a ser vistos com outros olhos. O caráter politizado da minissérie, mas principalmente a qualidade gráfica, o elaborado roteiro e a narrativa inovadora deram-lhe o título de clássico dos quadrinhos, tornando-a uma referência para novos autores. Com ela, Frank Miller tornou-se um nome reconhecido internacionalmente e o Homem-Morcego viveu novamente uma onda de “batimania”, que incluiu filmes, desenhos animados, brinquedos e várias bugigangas. Sobretudo, esta HQ é uma leitura indispensável para os fãs do Batman, e também do Super-Homem.
Atualmente, O Cavaleiro das Trevas está disponível no Brasil em duas edições (capa dura e brochura) lançadas pela Panini. O volume inclui extras e também DK2, a coloridinha e dispensável sequência que Miller produziu há alguns anos.
8 comentários:
Vc está adicionado lá no blog. Gostei do seu blog, esses reviews são legais. E filme do Rambo, Batman e Iron Man já são os meus gastos certos para o ano que vem.
Valeu
Valeu, Queiroz!
Quanto aos filmes, o que quero ver mesmo é o "I'm not there" sobre o Bob Dylan. Rambo nem pensar...
Para o leitor saudoso -meu caso-, a primeira edição de Cavaleiro das Trevas, já amarelada, não supera em saudosismo nenhuma das versões seguintes lançadas no Brasil, inclusive a boa edição de luxo, publicada no começo do ano.
Concordo novamente! E tem também algo naquele papel da edição original que combina melhor com a densidade das cores da HQ. Acho que isso se perde um pouco na impressão em papel "brilhoso".
Muito bem lembrada a importância de Dennis O´Neil, que já antes de Miller tentava com que o Cavaleiro das Trevas regressasse ao seu lado negro. E depois Miller conseguiu-o da melhor forma com este "The dark knight returns".
Um livro fabuloso, as participações do Joker e do Two Face são formidáveis. Temos um Joker apático durante a ausência de Batman e um Two-face entregue totalmente á sua demência após a operação.
Já agora não pude deixar de ler e concordar que "I´m not there" é um dos filmes mais esperados por mim, a ideia de retratar as diferentes fases do poeta Dylan daquela forma é genial e o filme está em boas mãos, gostou muito de Todd Haynes.
Abraço
"I´m not there" foi minha frustração do ano, não o filme, mas o fato de não ter podido assistir no Festival do Rio, pois já estavam esgotados os ingressos, e eu quis comprar antecipado, mas não deixaram, disseram que não vendia, um absurdo. E o lance mais maneiro do filme é a Cate, que se vc comparar com os videos do Bob Dylan no YT, a Cate está identica. Muito interessante a ideia.
O Cavaleiro das Trevas é sem dúvida um quadrinho importantíssimo, que merece o título de clássico. Do ponto de vista estético, Miller realizou algo provavelmente inédito até então: uma revista em quadrinhos de super-heróis com temática totalmente adulta e tratamento artístico.
Minha próxima postagem será: A insana relação entre Batman e Coringa - por isso, sintonizem amanhã "neste mesmo bat-canal"!
Sobre o Bob Dylan, o cara é o maior poeta da segunda metade do século 20. E ele não parou por lá, pois seu último trabalho é uma obra-prima! Tenho várias traduções de letras dele que fiz, e talvez um dia monte um blog com elas. Quanto à Kate Blanchet (é assim que escreve?), ela ficou igualzinha a ele na fase 1965-1966, logo antes do misterioso acidente de motocicleta.
Abraços a todos bat e dylan fãs!
Errei! É "Cate Blanchett".
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