31/12/2009

O incomparável “Livro III” de Miracleman.


Quando o “Livro III” de Miracleman começou a ser publicado no primeiro semestre de 1987, haviam se passado cinco anos desde que o personagem fora relançado nas páginas da Warrior. Nesse meio-tempo, Alan Moore deixou de ser um roteirista inglês relativamente desconhecido para se tornar (ao lado de Frank Miller) um dos astros do mercado norte-americano. Ele já havia alcançado grande reconhecimento ao reformular o Monstro do Pântano (lançando as raízes para o que viria a ser mais tarde o selo Vertigo) e deixava todos na época estupefatos com sua dissecação dos super-heróis chamada Watchmen (a melhor e mais influente abordagem “realista” desse gênero). Com o próprio Marvelman / Miracleman, o roteirista já havia inovado ao lançar a primeira reformulação racionalista de um personagem tradicional (que influenciava as recriações dos principais heróis da DC e a concepção básica do Novo Universo Marvel). Então, superando as expectativas, em seu volume final de Miracleman, Moore foi mais além!

Na segunda metade dos anos 80, no rastro de O Cavaleiro das Trevas e Watchmen, e sob o rótulo do “realismo”, uma onda de quadrinhos mais sombrios e violentos tomou conta das revistas de super-heróis. Estando no auge de sua carreira, esbanjando talento e criatividade, Moore não se contentou em seguir as tendências do mercado e produziu Miracleman: Olympus, uma HQ de super-heróis quase surrealista. Publicado entre os números 11 e 16 da revista, esse terceiro volume foi o único a contar com apenas um artista, o talentosíssimo John Totleben. E uma vez que as histórias eram publicadas cinco anos após o início da série, brilhantemente, Moore incorporou essa informação à narrativa, fazendo de Olympus um livro narrado em retrospectiva. Tudo começa num maravilhoso e monumental palácio-montanha, construído sobre os escombros de Londres, onde o herói que ascendeu à condição de divindade começa a refletir sobre “a sensação de se viver numa mitologia” (enquanto escreve suas memórias num livro de páginas de aço).

As metáforas e referências mitológicas perpassarão o “Livro III”, a começar pelos títulos de seus capítulos: “Cronos”, “Aphrodite”, “Hermes”, “Pantheon”, “Nemesis” e “Olympus”. E é nesses termos que os dois agentes alienígenas vistos ao final do “Livro II” são reapresentados, já que pertencem à civilização dos Qys, responsável pela tecnologia do “infraespaço”, e vieram à Terra destruir as criaturas geradas através dela, sendo assim equiparados ao titã Cronos que devorava / destruía seus filhos. Ou como expressa poeticamente o próprio Miracleman: “Eu não os conhecia então enquanto titãs, eu não sabia que Cronos havia chegado para confiscar os raios de um delinquente Zeus. Isso foi antes de tais conceitos serem definidos, ou inscritos, incandescentes, no aço imortal”. O que se segue é um embate entre monstros alienígenas transmorfos e um surpreso herói superpoderoso, tudo numa dinâmica e variada sequência narrativa, embelezada pelo expressivo traço de Totleben e o poético texto de Moore. Em outros termos: um começo nada menos que genial!

Ao descobrirem sobre Winter (a filha de Miracleman e Liz Moran), os agentes alienígenas concluem que sua missão é mais complexa do que pensavam. Com isso, enquanto um deles neutraliza o pai, o outro parte em busca da filha, mas todos acabam surpreendidos pela intervenção de Miraclewoman (a personagem superpoderosa que se manifestara no último capítulo do “Livro II” e permanecia desconhecida). Comparada na narração à deusa Afrodite, ela será o centro das atenções no segundo capítulo, que narra a história de como essa heroína também foi criada por Gargunza. Ressalta-se aí o tom sensorial e sensual da narrativa, unido às imagens detalhadas e amplas que, em conjunto, reforçam o caráter erótico e quase surrealista da HQ. O resultado é um dos raros quadrinhos de super-heróis que lida com o tema da sexualidade de uma forma madura. Ao final do capítulo, sabemos um pouco mais sobre a intrincada trama concebida por Moore e presenciamos a chegada de um casal de Warpsmiths (superpotência interestelar inimiga dos Qys).

Os Warpsmiths surgiram na Warrior n°4, no interlúdio “The Yesterday Gambit” (que mostra uma possível batalha futura entre Miracleman e Kid Miracleman), voltando a aparecer na história “Cold war, cold warrior” (publicada nos números 9 e 10 da Warrior, e mais tarde republicada em cores pela Eclipse). Mantendo uma espécie de “Guerra Fria” com os Qys, os Warpsmiths são alienígenas capazes de dobrar o espaço-tempo à sua vontade, sendo identificados com o veloz deus Hermes. Passado num mundo extraterrestre, esse terceiro capítulo pode ser comparado a outras tentativas de se criar civilizações alienígenas. Contudo, a concepção original e o texto simbolista de Moore têm uma ousadia temática e um caráter peculiar que causam ao leitor o estranhamento de se estar diante de algo que parece mesmo alienígena (por exemplo, no caso do-da rei-rainha Qys: uma gigantesca massa celular disforme e hermafrodita). E se tudo se acerta entre as superpotências interestelares, é quando Miracleman retorna à Terra que as coisas começam a se complicar.

Humana, num mundo agora povoado por seres imortais e superpoderosos, Liz Moran entra em crise. Antes mesmo de engatinhar, Winter voa de seu berço e começa a discorrer sobre o estado mental de sua mãe. As coisas se “normalizam” um pouco quando Miracleman e Miraclewoman são convidados a visitar a estação espacial da qual os Warpsmiths passaram a monitorar a Terra. De lá, eles descobrem um outro ser superpoderoso, Firedrake, que teria a natureza apolínea de um “portador do fogo divino”. Com ele, o “glorioso Panteão” estava completo e a transformação do mundo numa utopia poderia começar. Mas, como em todo paraíso, aquele também tinha uma serpente. Vivendo numa instituição para jovens infratores, Johnny Bates (ainda um menino, por ter permanecido no ”infraespaço” por quase vinte anos) é atormentado pelo sádico Kid Miracleman (preso em seu inconsciente), enquanto sofre humilhações e agressões de outros internos. Quando estes o violentam, ele não suporta mais e se transforma em Kid Miracleman.

O que vem a seguir é Miracleman n°15, talvez a mais violenta HQ de super-heróis já produzida. Na época, Moore se referiu a ela dizendo que, após completar Watchmen, que considerava sua “declaração final sobre os super-heróis”, ele se viu às voltas com a obrigação de produzir uma outra declaração final sobre o gênero. E pode-se dizer que, neste caso, ele não deixou “pedra sobre pedra”! Lançada no final de 1988, a revista explora o que aconteceria se seres superpoderosos e virtualmente indestrutíveis se enfrentassem nas ruas de uma grande metrópole. Tendo de um lado Miracleman, Miraclewoman, Firedrake e os Warpsmiths, de outro o cruel e amoral Kid Miracleman, o resultado é a mais terrível devastação e carnificina. Mostrando chuvas de mãos e pés decepados, rios de sangue, corpos mutilados e descarnados, as imagens são tão explícitas e absurdas que chegam a ter um efeito surrealista. E se os desenhos já dizem muito, o texto repleto de metáforas e simbolismo dá uma dimensão épica a esse encontro do herói com seu nemesis.

Passados mais de vinte anos desde sua publicação, a penúltima edição de Moore para a Miracleman permanece inigualável em sua proposta de expor a violência implícita às HQs de super-heróis, levando-a a suas últimas consequências. Ela pode ser considerada também um dos melhores trabalhos de Totleben (que enfrentou muitas dificuldades durante seu trabalho na série, devido a uma doença degenerativa que atingiu seus olhos, limitando seu campo de visão e impedindo-o de trabalhar por longos períodos). Na edição final de Moore & Totleben, publicada apenas em fins de 1989, o herói feito divindade conclui sua narrativa sobre como um maravilhoso mundo novo foi construído sobre os escombros de Londres (pois como ele havia concluído antes: “não há nenhuma casa de deuses que não tenha sido construída sobre ossos humanos”). Ao longo do caminho, intervenções na política internacional, a limpeza do meio ambiente, a paz mundial, o fim da miséria e até mesmo superpoderes para todos e a ressurreição dos mortos tornam-se possíveis.

Em meio à construção da utopia (ou ditadura), temos uma sequência de sexo aéreo com Miracleman e Miraclewoman, um ritual fúnebre de sexo grupal dos Warpsmiths e um trecho polêmico em que Winter (então uma menina de quatro anos) refere-se a suas experiências sexuais na temporada que passou no espaço. Mas mesmo um “mundo perfeito” não está livre de problemas, afinal há os que não aceitaram a nova ordem mundial imposta pelas divindades cósmicas. A própria Liz Moran optou por não se converter num ser superpoderoso, preservando sua humanidade. Condição esta que Miracleman havia deixado para trás ao “enterrar” Mike Moran num capítulo anterior, embora parecesse nostálgico dela mais tarde, ao segurar um crânio nu (qual um contemplativo Hamlet). O capítulo final de Miracleman: Olympus, que tratou de maravilhas e imortalidade, conclui com uma apropriada reflexão sobre as escolhas e limitações que nos definem a todos, as quais chamamos de humanidade. E nunca antes uma série de super-heróis foi tão filosófica e pertinente!

Inovadora e inspiradora em seu início, irregular e prejudicada em sua continuação, a fase de Alan Moore à frente de Marvelman / Miracleman concluiu como uma das mais brilhantes e originais revistas de super-heróis já produzidas. Mesmo com a saída do roteirista, sua influência sobre a série permaneceria notável. Afinal, apesar das diferenças de proposta, o trabalho de Neil Gaiman (no “Livro IV” e no inacabado “Livro V”) e dos outros roteiristas que lidaram com o personagem (na minissérie Miracleman: Apocrypha) partiu do que havia sido construído por Moore (quando não de uma simples frase ou cena de uma de suas histórias). E tendo servido de modelo para outras HQs da época, a influência de Miracleman pode ser notada em trabalhos posteriores, como por exemplo Astro City de Kurt Busiek (cujo primeiro capítulo é um plágio de “Um sonho de voar”) e Authority de Warren Ellis (cuja primeira revista imita a devastação vista em “Nemesis”). Mas, apesar do prestígio e importância, a trajetória de Miracleman perneceria tumultuada.

Em 1994, a Eclipse foi à falência e seu acervo de personagens foi parar num leilão judicial. Com isso, em 1996, Todd McFarlane deu um lance de alguns milhares de dólares e comprou a editora “de porteira fechada”. Um problema é que esse leilão não levou em conta as diversas propriedades autorias sobre os personagens. O próprio Miracleman é um caso complexo, já que Moore havia passado seus direitos para Gaiman, mas outros autores (como Alan Davis) também se consideram proprietários das HQs produzidas a partir de 1982. Além disso, McFarlane e Gaiman acabaram se desentendendo sobre pagamentos relativos ao uso da personagem Angela (criada por Gaiman para a série Spawn). Para complicar, em 2001, McFarlane lançou uma estátua de Miracleman e divulgou que ele participaria da revista Hellspawn. Então, com parte dos lucros da minissérie 1602 (publicada pela Marvel), Gaiman criou a companhia Marvels and Miracles LLC, voltada a resolver a situação de Miracleman, o que deu início a um processo judicial contra McFarlane.

Passaram-se alguns anos até que um juiz decidiu a questão, definindo que McFarlane não tinha direitos sobre o personagem. Mas, a saga jurídica de Marvelman / Miracleman não se encerrou aí. No mesmo processo, descobriu-se que, ainda em 1982, o editor Dez Skinn não teria pago a Mick Anglo pelos direitos de usar o personagem na Warrior, o que gerou um novo entrave judicial. Então, em 2009, o editor-chefe da Marvel, Joe Quesada, anunciou que Marvelman passava a fazer parte do acervo da editora (o que é bastante irônico, já que essa mesma editora havia criado os primeiros problemas judiciais para o personagem). O fato é que isso trouxe a possibilidade de o herói voltar a ser publicado, e também de que Gaiman conclua sua fase à frente da série. Mas, embora um acordo já tenha sido feito com Anglo e Moore, há ainda muitos acertos a serem feitos com os diversos autores que trabalharam na série. Logo, aos antigos e futuros leitores, só resta aguardar o dia em que Marvelman ganhará novas edições, à altura de sua qualidade e importância!

(No Brasil, Marvelman / Miracleman foi publicada no início dos anos 90 pela pequena editora Tannos. Nas quatro revistas em P&B que lançaram, os editores publicaram o “Livro I” completo e alguns capítulos do “Livro II”, além das HQs especiais “The Yesterday Gambit” e “Cold war, cold warrior”. A qualidade gráfica das edições deixava a desejar, com revistas em tamanhos e tipos de papel diferentes, mas a Tannos teve o mérito de tornar disponível aos leitores brasileiros ao menos uma parte dessa obra-prima dos quadrinhos.)

28/12/2009

O irregular “Livro II” de Marvelman / Miracleman.


Com a qualidade e a originalidade do “Livro I” de Miracleman, podia-se esperar algo ainda mais marcante para sua continuação. Porém, envolto em problemas editoriais, brigas pessoais, falta de talento de uns e aparente desinteresse de outros, o “Livro II” da série deixou a desejar. Trazendo os últimos capítulos publicados na Warrior e HQs produzidas pela Eclipse, essa segunda parte é a menos constante em termos visuais e a mais fraca em termos de roteiro. O fato é que, com seus desentendimentos com Dez Skinn e começando a trabalhar na série Swamp Thing, Alan Moore parecia não estar mais tão interessado em Miracleman. Para piorar, como a Marvel Comics havia criado dificuldades para a publicação da série na Warrior, o roteirista decidiu retaliar não permitindo a republicação de suas histórias com o Capitão Bretanha; isso irritou seu parceiro no trabalho, o desenhista Alan Davis, que não se interessou por continuar a desenhar a Miracleman (ao que consta, o acordo com a Eclipse, que levou a série para os Estados Unidos, também o teria desagradado).

Nas páginas da própria Warrior, o “Livro II” já havia contado com o trabalho de outro desenhista, o expressivo John Ridgway (responsável pelos capítulos especiais “Young Marvelman: 1957” e “The Red King Syndrome” partes 1 & 2). Assim, pode-se dizer que o problema não estava em se substituir o desenhista principal (Davis) e sim na escolha de quem o substituiria. Na certa, o nada talentoso Chuck Beckum não foi a melhor escolha! Responsável por alguns dos capítulos finais da história (que possivelmente haviam sido escritos ainda para a Warrior, embora não tivessem sido desenhados até então), Beckum fez um trabalho tão fraco que pode ser considerado um dos piores (senão o pior) desenhista a ter trabalhado numa HQ de Alan Moore. Para melhorar um pouco a situação, as duas histórias seguintes (escritas já para a Eclipse e publicadas na Miracleman n°9 e 10) trouxeram o desenho razoável de Rick Veitch. Mas, desenhos à parte, os roteiros do “Livro II” também têm altos e baixos, não apresentando a mesma força do que havia sido mostrado até então.

Esse segundo volume de Miracleman gira em torno de duas informações apresentadas em capítulos anteriores. Primeiro, que o Doutor Gargunza, ao invés de um vilão fantasioso, foi na verdade o cientista à frente do programa Zaratustra. Segundo, que Liz Moran está grávida, embora o pai da criança não seja seu marido, e sim Miracleman. A história então progride a partir do rapto de Liz por Gargunza, que pretende se apossar do “miraclebaby”. Na companhia de Mr. Cream, Miracleman parte em busca de sua esposa, massacrando os capangas do vilão. Esse é o enredo básico da história e seu lado menos interessante, que serve mais como um pretexto para Moore contar em detalhes a história por trás do projeto Zaratustra. Tudo começa com o nascimento de Gargunza no México em 1910, tem uma passagem pelo Rio de Janeiro dos anos 20 (onde, sabe-se Deus como, o vilão conseguiu um “taco de beisebol” para cometer um assassinato), chegando enfim à Alemanha, onde ele trabalhou num programa de engenharia genética do Terceiro Reich.

Enquanto aguarda o nascimento do “miraclebaby”, Gargunza prossegue na narração de sua história pessoal, tendo como ouvinte uma atenta Liz Moran. Ele conta então sobre como desertou da Alemanha hitlerista e foi acolhido pelo governo inglês, interessado em seus conhecimentos científicos. A seguir, o vilão revela sua motivação em tudo isso, e como seus planos se tornaram possíveis numa noite de 1948, quando “o céu caiu”, ou seja, quando uma nave alienígena caiu no interior da Inglaterra (vale comentar que, em muitos pontos, a série escrita por Moore antecipa em detalhes a trama que seria vista, uma década mais tarde, no seriado Arquivo-X). O que vem a seguir é uma mais detalhada narração de todo o processo (pseudocientífico) envolvido no projeto Zaratustra. Não faltam referências a raptos de órfãos, clonagem, implantes mentais e memórias fantasiosas, tudo relacionado à tecnologia do “infraespaço”. Para completar, um brilhante lance de metalinguagem, no qual Moore explica porque Miracleman teve como modelo o Capitão Marvel.

Conciliando elementos da psicanálise, da história e da ficção científica, a maior parte do “Livro II” trata da ligação de Gargunza com Miracleman, expressa por vezes como a tradicional relação “vilão x herói” (particularmente no ótimo capítulo “The Red King Syndrome”), mas também “criador x criatura” ou mesmo “pai x filho” (não falta sequer uma cena copiada do filme Blade Runner). Já os dois últimos capítulos desse volume (publicados nos números 9 e 10 da revista) trazem um desfecho da história e também uma transição para o volume seguinte. No primeiro deles, testemunhamos o nascimento da “miraclebaby”, numa sequência de parto explícito (mesmo!) que causou enorme comoção e controvérsia quando publicada. O capítulo seguinte intercala cenas domésticas de Liz e Mike Moran às voltas com sua “precoce” filhinha, diálogos mentais de Johnny Bates com seu alter ego Kid Miracleman e a presença de dois agentes alienígenas, que levam à manifestação de mais uma personagem superpoderosa (que só será conhecida no volume seguinte).

Iniciado num momento em que Alan Moore começava sua carreira no mercado norte-americano e já não tinha o melhor dos relacionamentos com seu editor na Warrior, o “Livro II” de Miracleman parece ter sofrido os efeitos de um certo desinteresse de seu principal autor. Além disso, ao ser retomada pela Eclipse após uma interrupção, a série não contou com o elegante traço de Alan Davis, padecendo dos desenhos muito pobres de Chuck Beckum. Mas, apesar dos problemas e deficiências, o segundo volume de Miracleman tem seus méritos e alguns momentos interessantes (talvez seu maior defeito seja ter se estendido mais do que deveria). De qualquer forma, consta que Moore estava tão insatisfeito com o trabalho na série que havia decidido deixar tudo de lado. Felizmente (para os leitores e para a história dos quadrinhos), a definição de que o talentosíssimo John Totleben seria seu parceiro no “Livro III” fez com que o roteirista voltasse atrás. O resultado foi Miracleman: Olympus, a mais brilhante HQ de super-heróis já escrita!

(CONTINUA...)

24/12/2009

O inovador “Livro I” de Marvelman / Miracleman.


Criado por Mick Anglo em 1954, Marvelman foi o primeiro e o mais popular super-herói britânico. Uma cópia mal-disfarçada do Capitão Marvel (Shazam), o personagem também se transformava ao dizer uma “palavra-mágica” e tinha uma “família” de jovens ajudantes. Mas, apesar do enorme sucesso inicial, mudanças nos interesses do público levaram, em 1963, ao cancelamento das revistas da Família Marvelman. O personagem permaneceria em “animação suspensa” por quase duas décadas, até ser resgatado pelo roteirista Alan Moore e o editor Dez Skinn. Relançado em março de 1982, na revista Warrior n°1, Marvelman provaria-se novamente um sucesso, desta vez não entre as crianças, mas entre os leitores adolescentes e alguns profissionais dos quadrinhos. Trazendo uma concepção inovadora para os super-heróis, as histórias originais criadas por Moore ajudariam a transformar esse gênero de quadrinhos (sendo a primeira dentre as várias reformulações racionalistas de antigos heróis a serem lançadas ao longo dos anos 80).

Com o sucesso da nova versão do super-herói, Skinn decidiu lançar Marvelman Special n°1, que trazia basicamente reimpressões de HQs dos anos 50, produzidas pela equipe de Anglo. Mas, devido à utilização do nome do personagem no título da revista, a Marvel Comics (que se considera dona da palavra marvel no ramo dos quadrinhos) interferiu judicialmente. É interessante notar que o nome Marvelman (surgido em 1954 na revista que lançou o personagem) antecede a utilização do nome Marvel Comics, o que tornaria infundadas as alegações da editora norte-americana (não fosse seu maior poderio econômico). O fato é que a disputa judicial dificultou a continuação da série, causando também desavenças entre Skinn e Moore, o que resultou na suspensão de Marvelman no número 21 da Warrior (que, sem seu personagem mais popular, chegou ao fim no número 26, em janeiro de 1985). Aquele, contudo, não seria o fim de Marvelman, que logo retornaria num outro formato e com um novo nome.

Desde o início, uma das intenções de Skinn era negociar com editoras norte-americanas reedições das séries publicadas na Warrior. Com o prestígio que a revista havia alcançado entre alguns leitores e profissionais dos quadrinhos nos Estados Unidos, o editor via ali a oportunidade de entrar num mercado muito maior e mais rentável. É claro que as HQs saídas da Warrior teriam que ser reduzidas do formato magazine para o comic book e ganhariam cores, tendo seus capítulos de cinco a oito páginas agrupados em revistas de vinte a trinta páginas. A mudança mais significativa, porém, seria a sofrida exatamente pelo personagem Marvelman, que (para evitar problemas com a Marvel Comics em seu próprio país) acabaria sendo rebatizado como Miracleman (nome que, por ironia do destino, havia aparecido pela primeira vez justamente numa revista da sucursal britânica da Marvel, numa cena em que um assassino de super-heróis interdimensional fulmina um herói com as feições de Marvelman, mas que ali é denominado “Miracleman”).

O acordo feito entre o editor inglês e a norte-americana Eclipse Comics permitia a republicação dos capítulos de Marvelman lançados na Warrior e previa a retomada da série do ponto em que havia sido interrompida. Foi assim que, em meados de 1985, chegou às lojas dos Estados Unidos a primeira edição de Miracleman, que somaria um total de dezesseis números escritos por Moore, reunidos mais tarde em três coletâneas (que serviram de base para a análise que faço aqui). A série começa com “Um sonho de voar”, no qual um inglês de meia-idade chamado Mike Moran se vê mais jovem, voando na companhia de outros dois super-heróis, todos prestes a pousar numa estranha nave. O que se segue é uma explosão atômica, da qual aparentemente apenas Moran (Miracleman) teria saído com vida, para despertar desse pesadelo, ao lado de sua esposa, Liz. Apesar de uma terrível dor de cabeça, ele tem que levantar e sair para cobrir um protesto antinuclear numa usina atômica. O fato é que, a partir daí, sua vida jamais será a mesma.

Desenhado pelo meticuloso Garry Leach, o primeiro capítulo de Miracleman já mostra alguns elementos da concepção mais racionalista dos super-heróis proposta por Moore. Partindo de situações mundanas, trazendo uma ambientação cotidiana e ancorada em fatos da realidade da época, a HQ apresenta um acontecimento plausível que serve de pretexto para o esquecido herói redescobrir seus poderes. Em meio a um ataque de terroristas, Moran é arrastado semiconsciente e, ao passar por uma porta de vidro, vê a inscrição invertida “cimota”. Essa é a chave para seu passado como super-herói, pois ao pronunciar a palavra-mágica “Kimota” ele se transforma, pela primeira vez após muitos anos, em Miracleman. Imune a balas e superpoderoso, o herói não demora a derrotar os terroristas. Porém, mais que um retorno triunfante, as oito páginas dessa reestreia são exemplo da genialidade de seu roteirista, anunciando a técnica desconstrutivista que Moore utilizaria na série (e em trabalhos posteriores, como Swamp Thing e Watchmen).

Em 1954, na sua criação de Marvelman a partir do Capitão Marvel, Mick Anglo manteve a ideia de uma palavra-mágica, substituindo a popular e mística “Shazam” pela moderna e científica “Kimota”. Sendo esta uma corruptela da palavra atomic, ao situar seu primeiro roteiro numa usina atômica, Moore evidenciou de forma crítica as ligações do personagem com o imaginário da época em que foi criado (lembrando que nos anos 50 a energia atômica era um símbolo relativamente positivo, estando relacionado à origem e aos poderes de vários personagens). E a ligação entre o herói britânico e seu modelo norte-americano voltou a ser exposta no segundo capítulo, quando Miracleman se apresenta a Liz e lhe conta como ele recebeu seus poderes do mago astrofísico Guntag Barghelt (inspirado no venerável mago Shazam), fala de seus amigos Young Miracleman e Kid Miracleman (copiados do Capitão Marvel Jr. e da Mary Marvel) e também de seus inimigos, como o gênio do crime Doutor Gargunza (inspirado no inigualável vilão Doutor Silvana).

Aqui, Moore deixa claro que tinha em mente mais que uma boa história, e sim toda uma concepção inovadora. Afinal, ao ouvir a história narrada pelo alter ego de seu marido, Liz não consegue conter o riso, expondo o caráter fantasioso e ingênuo das HQs de super-heróis tradicionais, em contraposição ao que seria o “mundo real” em que ela vive (que é na verdade uma parte da concepção trazida pela história da qual ela faz parte). As fronteiras entre as memórias fantasiosas de Miracleman e a realidade crua do mundo de Moran tornam-se mais nítidas quando entra em cena Johnny Bates, o antigo Kid Miracleman, que não morreu e acabou se tornando um milionário inescrupuloso. Então, o que vemos nos capítulos 3, 4 e 5 é a evolução de um encontro amistoso, que leva a um questionamento mútuo e explode num conflito titânico. Nele, referências à poesia de William Blake, uma prosa de ressonância wagneriana e alusões a tigres, dragões, anjos, monstros e tempestades dão o tom de uma das melhores sequências de luta já feitas num quadrinho de super-heróis!

Primorosa em seus roteiros e textos, a série não fica para trás em termos de desenho, ganhando em dinamismo quando Garry Leach foi substituído por Alan Davis, na passagem do terceiro para o quarto capítulo. (Não posso deixar de observar, contudo, uma pequena contradição na lógica interna da história, segundo a qual Mike Moran e Miracleman possuem corpos distintos, que trocam de lugar quando pronunciam a palavra “Kimota”; assim, enquanto uma identidade habita o “mundo real”, a outra é transferida para uma dimensão de animação suspensa, intitulada “infraespaço”. Após sua luta com Bates, Miracleman fica bastante ferido e, segundo lemos num balão, Moran deixou sua identidade de herói de lado por dois meses; mas, ao dizer novamente a palavra “Kimota”, Miracleman reaparece quase completamente recuperado dos ferimentos. A contradição está no fato de que, segundo a própria história, o “infraespaço” é uma dimensão fora do tempo e, portanto, não poderia haver qualquer recuperação nos ferimentos de Miracleman.)

Um envolvimento governamental na origem de Miracleman é sugerido nos capítulos 5 e 6. Com isso, em meio a uma trama mais complexa, o sétimo, oitavo e nono capítulos intercalam ação e conspiração, apresentando uma misteriosa agência governamental (Spook Show), um dúbio assassino de aluguel (Mr. Cream) e um abobado “super-herói” (Big Ben). Tudo culmina no capítulo 10, “Zarathustra”, em que Moore revela a conspiração envolvendo a criação da Família Miracleman. O título do capitulo vem de Assim falava Zaratustra de Friedrich Nietzsche, que traz a ideia de um “super-homem” (ou “além-do-homem”), que teria inspirado o governo britânico a criar seres superpoderosos, utilizando a tecnologia de uma nave alienígena caída na Terra. Em resumo, conciliando filosofia, literatura e realidade cotidiana, misturando características de séries de espionagem, ficção científica e super-heróis, por sua qualidade e originalidade, o “Livro I” de Miracleman tornou-se um marco dos quadrinhos e uma das HQs mais influentes das últimas décadas.

(CONTINUA...)

18/12/2009

Os 50 anos de Capitão 7, primeira revista de super-heróis brasileira.


Outro cinquentenário ocorrido em 2009 que merece ser lembrado é o do lançamento da Capitão 7, primeira revista em quadrinhos dedicada a um super-herói brasileiro. Lançado em 1954 pela TV Record (então o “Canal 7” de São Paulo), o personagem era interpretado pelo ator Ayres Campos, tendo alcançado grande sucesso entre o público infantil (com direito a camisetas inspiradas em seu uniforme e até um fã-clube oficial). Em 1959, aquele que é considerado o primeiro super-herói brasileiro saltaria da telinha para as páginas dos quadrinhos, numa revista regular coordenada pelo ilustrador Jaime Cortez e publicada pela editora Continental, de Miguel Penteado. Sem as limitações técnicas da tevê da época, Capitão 7 provaria-se um sucesso comercial, alcançando mais de cinquenta edições (cuja capa do n°18 ilustra esta postagem).

Mas qual não foi minha surpresa quando descobri, há alguns anos, que a primeira HQ do Capitão 7 fora desenhada por ninguém menos que meu querido amigo Julio Shimamoto! Iniciando então sua carreira, mestre Shima recebeu uma convocação de Cortez para produzir os desenhos da HQ de estreia do herói, o que fez de forma muito competente, num traço fino e elegante (que difere bastante do estilo mais intenso pelo qual ele se tornaria conhecido). Numa carta, o samurai de nossos quadrinhos comentou aquele tempo de estreias e como se deu seu envolvimento com o primeiro super-herói brasileiro. Aproveito então os cinquenta anos da Capitão 7 para compartilhar com todos esse precioso relato que nos conta um pouco mais da história de nossos quadrinhos.


Taquara, 28 jun. / 2007

Capitão 7.
Era um herói que fazia muito sucesso na tevê, embora eu nunca tenha assistido. Era época em que alguns bares e poucas casas proletárias tinham o aparelho. Lembro-me que nas tardes de domingo eu ia ver o Corinthians jogar na tevê do bar de seu Quincas, lá na rua de cima, no subúrbio de São Paulo. E quando nos mudamos para o município de Santo André, ia de tele-vizinho (um amigo casado e operário de multinacional. Estudávamos inglês no Instituto Yazigi à noite, e no sábado repassávamos as lições na casa dele. Assim ele me servia café na sala, abarrotada de crianças e senhoras da vizinhança, e constrangido bicava tevê por poucos momentos).
Já fazia terror e começavam os elogios, então o Cortez me assustou com o convite para desenhar a história inaugural de Capitão 7. Assinaram contrato com Ayres Campos, lutador de “catch”, que fazia o papel do super-herói na televisão. Um sujeito simpático, falso-gordo, topete de Elvis, simples e daí o carisma no meio infantil. Então o Cortez me chamou para longe, para que Ayres não ouvisse, e disse: “Shima, não desenhe a cara e nem o corpo dele”. Entregou-me o grande álbum de Flash Gordon no Planeta Mongo e impôs: “Copie a cara e o corpo deste herói de [Alex] Raymond. Lembre-se, a proporção da anatomia é de dez cabeças a doze, porque o Capitão 7 não chega nem a oito”. Fiquei inseguro. Eu não era fã do Alex. Eu gostava do argentino José L. Salinas e de [Harold] Foster (Príncipe Valente). Outros colegas que completaram a revista, Gitahí e Getúlio Delfin, respiravam, comiam e dormiam com o grande desenhista de Flash Gordon na cabeça. Cortez nem se fala. Só falava de Jim das Selvas ou Flash Gordon. Bons tempos os meus de estagiário dos quadrinhos.
Grande abraço, Srbek!

Shima

14/12/2009

Os 50 anos da carreira quadrinística de Flavio Colin!


Em 2009, os 50 anos da carreira quadrinística de Maurício de Sousa foram celebrados efusivamente. Porém, outra importante data passou praticamente despercebida: o cinquentenário da carreira quadrinística de Flavio Colin! Afinal, embora já desenvolvesse trabalhos de desenho e ilustração para a Rio Gráfica e Editora e também para O Cruzeiro, o próprio mestre Colin considerava Aventuras do Anjo o marco inicial de sua carreira como quadrinista. Lançada em 1959, a série de revistas trazia a adaptação para os quadrinhos do popular seriado da Rádio Nacional, criado por Álvaro Aguiar.

Para marcar esse cinquentenário, reproduzo abaixo um depoimento exclusivo que mestre Colin concedeu-me em 2000 e que foi publicado pela primeira vez na edição especial de Estórias Gerais lançada pela Conrad em 2007. Fiquem então com as palavras desse gênio de nossos quadrinhos, que nos faz muita falta e deixou muitas saudades:

Teresópolis, 17 de agosto de 2000.

Caro Wellington,

Acho melhor substituir a “biografia” bastante resumida que lhe passei pelo telefone por um comentário. Não quero publicar uma mensagem amarga. Poderia desestimular os novos talentos. Eles não merecem isso. Por outro lado, “biografia” me parece coisa “post mortem”... Aí vai:

Todos sabem que as histórias em quadrinhos são um maravilhoso veículo de comunicação. Maravilhoso e importante, principalmente no Brasil, país com milhares de analfabetos e semi-alfabetizados, onde os livros são caríssimos. Quadrinhos são mais populares e baratos. Seduzem pela interessante e harmoniosa combinação do desenho com o texto curto e objetivo.
O grande problema para os desenhistas e roteiristas nativos é que nossas editoras, principalmente as maiores, há muito tempo se dedicam a publicar, quase exclusivamente, material importado, alegando, sobretudo, os baixos custos.
Com essa mentalidade cruelmente mercantilista, amparada por uma lamentável falta de patriotismo e por uma vergonhosa alienação cultural, o que se vê e o que se lê em quadrinhos, nada, ou muito pouco, tem a ver com o nosso povo e a nossa terra. E todo esse lixo, com raras exceções, anula e afasta nossos profissionais, tirando-lhes o “pão da boca”. Isso é criminoso.
Tenho sincera admiração pelos “fanzines” que divulgam temas e personagens brasileiros, com coragem, sacrifício e dedicação. Infelizmente, pagam pouco. Isso se deve, é claro, a problemas crônicos e complicados de patrocínio, divulgação e distribuição. Para as editoras de “luxo”, esse é o “lixo”...
Nunca fui xenófobo (meus melhores mestres eram todos norte-americanos: Milton Caniff, Alex Raymond, Chester Gould, etc.). Mas é fundamental que as nossas histórias em quadrinhos mostrem o Brasil aos brasileiros. Assuntos, figuras, paisagens, variedade de costumes não nos faltam. Podemos imitar os bons exemplos e utilizar algumas informações dos nossos vizinhos e amigos, mas não devemos assimilar totalmente tudo o que eles fazem ou dizem. Cuidemos primeiro da nossa família e da nossa casa. Desgraçadamente, estamos substituindo o que é nosso pelo alheio. Até a nossa linguagem. Povo que não se conhece, que não se estima e que não tem memória, não é povo. É bando.
Espero que os jovens quadrinistas brasileiros se interessem cada vez mais pelo Brasil, e com seu talento e entusiasmo consigam, afinal, vencer esse pérfido bloqueio cultural e mercantil. Quadrinho brasileiro também traz retorno financeiro. Questão de criatividade e competência. E de patriotismo também.
Abração

Flavio Colin

10/12/2009

Um “especial de Natal” com John Constantine.


Uma criação do inglês Alan Moore, o mago John Constantine estreou nas páginas da revista Swamp Thing para logo ganhar uma revista própria, escrita pelo também inglês Jamie Delano. Tornando-se uma das bases do selo Vertigo, a revista Hellblazer conquistou fãs fiéis, tornando-se a publicação mensal mais duradoura da linha de quadrinhos adultos da DC Comics. No fim de 2008, somando quase onze anos de publicação, em seu n°250 a série ganhou uma edição especial de Natal, com cinco HQs curtas produzidas por diferentes autores. Não tive oportunidade de lê-la na época, mas finalmente consegui um exemplar dessa interessante antologia, cuja leitura divido com vocês agora. E como era de se esperar, embora seja um “especial de Natal” ou “Fim-de-Ano”, em se tratando de uma revista com John Constantine, não poderiam faltar palavrões, maldições e alguns demônios.

A primeira HQ é um roteiro de Dave Gibbons (ao qual ele se referiu na entrevista que fizemos há um ano) com desenhos de Sean Phillips (um dos desenhistas tradicionais da Hellblazer). Nela, o roubo de um artefato egípcio milenar leva Constantine a uma perseguição em plena noite de reveillon. O roteiro até consegue empolgar de início e os desenhos seguem o padrão de qualidade de Phillips, mas o final é meio fraquinho e Gibbons continua sendo um melhor desenhista do que roteirista. A história seguinte, “Cartões de Natal” (ou “Cartas de Natal” no trocadilho em inglês), traz um jogo de poker como pretexto para um drama pessoal. Nesse roteiro de Jamie Delano, ilustrado por David Lloyd, o mago londrino é apenas um observador-narrador que nos revela a história de um pai desesperado e um trapaceiro prestes a encontrar o "espírito de Natal".

A história seguinte foi o motivo principal para eu ter comprado a Hellblazer n°250. Não pelo roteiro escrito em rimas por Brian Azzarello (que mostra Constantine realizando um exorcismo num bar de Chicago), mas sim pelos fantásticos desenhos de Rafael Grampá, com cores por Marcus Penna. Num estilo bem pessoal, composto por tracejados e elementos caricaturais, o trabalho do desenhista brasileiro é o diferencial e um dos pontos altos da revista. Já a HQ seguinte traz uma “maldição de Natal”, escrita por Peter Milligan e desenhada por Eddie Campbell. Com uma alma penada e uma ceia em família, esse parece o menos pretensioso de todos os roteiros, mas se revela o melhor da coletânea. Fechando a edição, o trabalho de China Miéville, Giuseppe Camuncoli e Stefano Landini que é o mais inverossímil e fraco dessa edição.

O saldo final de Hellblazer n°250 é positivo. Algumas boas histórias com visual diversificado e dois pontos altos, no roteiro de Peter Milligan e nos desenhos de Rafael Grampá. Pode-se dizer em resumo que essa foi realmente uma revista pensada para os fãs de John Constantine, especialmente por trazer autores ligados à história do personagem, como é o caso de Jamie Delano, Sean Phillips e David Lloyd. E com o retorno das séries do selo Vertigo ao Brasil, através da Panini, há a chance de essas HQs curtas especiais serem vistas por aqui.

08/12/2009

O sombrio Homem Animal de Jamie Delano.


Jamie Delano foi o primeiro dos roteiristas britânicos a ser contratado pela DC Comics no rastro do sucesso de Alan Moore com a revista Swamp Thing. Não por acaso, sua estreia na editora foi com a série Hellblazer, estrelada pelo mago John Constantine, criado nas HQs do Monstro do Pântano por seu predecessor e conterrâneo. E mais do que o trabalho de Moore, foram as histórias de Delano que definiram o caráter e a biografia do cínico ocultista londrino. Ficando à frente de Hellblazer entre 1988 e 1991, o roteirista inglês alcançou bastante sucesso, contribuindo com um dos três pilares principais do que viria a ser o selo Vertigo (sendo os outros dois a própria Swamp Thing de Alan Moore e The Sandman de Neil Gaiman). Mas Delano ainda traria outra contribuição à linha de “quadrinhos adultos” da DC, ao assumir em 1992 a série Animal Man, à qual imprimiu um tom mais metafísico e sombrio.

Um personagem de terceiro escalão na galeria dos heróis DC, o Homem Animal ganhou relevância em 1988, ao ser reformulado por Grant Morrison. Responsável pela Animal Man n°1 ao 26 e pela edição com a “Origem Secreta” do herói, o roteirista escocês criou uma série inteligente, repleta de elementos metalinguísticos e que, em parte, celebra os quadrinhos de super-heróis mais ingênuos da chamada “Era de Prata”. Tornando difusas as barreiras entre realidade e ficção, incorporando temáticas filosóficas e metaficcionais, a fase de Morrison à frente da revista influenciaria as histórias do Homem Animal nos anos seguintes. Mas, apesar do interessante trabalho feito por seu sucessor imediato, o irlandês Peter Milligan, nas mãos do norte-americano Tom Veitch a série perdeu força e leitores. Era preciso dar-lhe um novo direcionamento. E esse novo rumo veio em meados de 1992, quando Jamie Delano trocou as páginas da Hellblazer pelas da Animal Man.

Já na primeira edição, o novo tom sombrio fica evidente, afastando a série da influência de Morrison e aproximando-a das concepções metafísicas da Swamp Thing de Moore. Trazendo o primeiro capítulo de “Carne e Sangue”, Animal Man n°51 começa com o Homem Animal vivendo numa fazenda do interior dos Estados Unidos, na companhia de sua esposa Ellen e de sua filha Maxine, enquanto seu filho Cliff fora morar com um estranho tio-avô em São Francisco. Uma noite de amor ao luar, um pesadelo infantil premonitório e o atropelamento de um cão dão o tom da história e antecipam o que virá pela frente. Para completar, o texto de Delano reforça sensações físicas, remetendo à “carne e sangue” do título. As coisas começam a complicar quando o Homem Animal parte em busca de seu filho. O resultado é catastrófico, pois além de não se reencontrar com Cliff, o herói acaba atropelado e estraçalhado pelo trailer do psicótico Tio Dudley.

Além da influência estilística presente desde o início, começam a surgir aí várias semelhanças com a Swamp Thing. Afinal, em sua primeira HQ para aquela série, Moore “matou” o Monstro do Pântano, limpando o terreno para as mudanças que introduziria a partir da edição seguinte. E é exatamente o que Delano fez em sua edição de estreia na Animal Man, que abre espaço para o surgimento do “Vermelho”, dimensão metafísica animal, similar ao “Verde” que vemos nas histórias do Monstro do Pântano. E se no segundo roteiro de Moore para a Swamp Thing temos uma autópsia do herói vegetal, em sua segunda edição com o Homem Animal, Delano nos mostra o cadáver de Buddy Baker cambaleando por um necrotério. E da mesma forma que seu predecessor, o herói também tem que passar por um processo de renascimento nas edições seguintes (no seu caso partindo de um piolho e depois uma libélula, até ressurgir de um ovo, numa forma híbrida).

Apesar dos diversos pontos em comum e da inegável influência das histórias de Alan Moore para a Swamp Thing, o trabalho de Jamie Delano tem alma e qualidade próprias. Com ótimos textos e concepções interessantes, o roteirista deu uma guinada na série Animal Man, direcionando-a para o lado do terror (e distanciando-a das discussões envolvendo o gênero super-heróis que caracterizaram a fase de Grant Morrison). Para isso, contribuíram enormemente os desenhos de Steve Pugh, com sua abordagem cotidiana e sua carga de sombras. O único ponto artístico em comum com o passado são as fantásticas capas ilustradas por Brian Bolland, que mais uma vez acrescentaram força às histórias. Mas até mesmo essa ligação duraria pouco, uma vez que Bolland deixou o título após a conclusão de “Carne e Sangue”. O fato é que, a partir da Animal Man n°57, a revista em sua nova fase sombria e metafísica passava a integrar o selo Vertigo, que era então lançado pela DC.

Provas da ampla e duradoura influência das HQs de Alan Moore para a Swamp Thing, as primeiras histórias de Jamie Delano para a Animal Man têm qualidade própria, reforçada pelas capas de Brian Bolland e os desenhos de Steve Pugh. Essas marcantes histórias inauguraram uma nova fase do Homem Animal e o levaram a integrar o selo Vertigo, mas não tiveram reedições nos Estados Unidos, permanecendo inéditas no Brasil.

05/12/2009

O final de Planetary.


Surgida em setembro de 1998 numa história curta promocional, Planetary estreou como uma revista regular do selo Wildstorm no primeiro semestre de 1999. Escrita por Warren Ellis e desenhada por John Cassaday, com cores produzidas por Laura Martin e outros colaboradores, a série conquistou uma legião de fãs, que ansiosamente aguardava por sua conclusão. A espera chegou ao fim há dois meses, com o lançamento de Planetary n°27, uma edição especial que encerra essa complexa saga que reuniu releituras de personagens clássicos, ficção científica de primeira, uma trama conspiratória envolvente, além de citações a filmes e quadrinhos famosos.

Após vencer seus arqui-inimigos e frustrar os planos de uma invasão extradimensional, Elijah Snow, Jakita Wagner e Baterista retornam à Terra para dar início a uma nova era dourada de paz e conhecimento. À frente da Organização Planetary, os heróis passam a desenvolver, sem fins comerciais, as maravilhas tecnológicas e os avanços científicos enterrados nos arquivos de Os Quatro. Com isso, a cura para o câncer e o fim da fome são possibilidades para a semana seguinte. Mas poder virtualmente tornar melhor a vida de cada pessoa no planeta não é o bastante para deixar Elijah contente. Nesses novos dias dourados, o líder de Planetary tem um único propósito, que assume os contornos de uma obsessão: resgatar Ambrose, o integrante perdido do grupo.

O que se segue então é um aprofundado diálogo sobre a Física envolvida na construção e os possíveis efeitos colaterais de se pôr em funcionamento uma máquina do tempo. Contudo, no lugar do já desgastado “paradoxo do vovô”, Warren Ellis nos fala de gatos mortos ou vivos, anéis de luz e outras propriedades emprestadas das teorias da Física Quântica. Mais uma vez, fica provado o empenho do roteirista em embasar suas histórias num conhecimento científico real, tornando Planetary de fato uma série de ficção científica. O restante da edição mostra mais alguns diálogos entre os três personagens principais e a construção da complexa máquina do tempo quântica, encerrando com a tentativa de resgate de Ambrose, que se encontrava em animação suspensa.

Os desenhos de John Cassaday com cores produzidas por Laura Martin ficam na média das boas edições da série. Quase não há ação física, ficando o principal por conta dos diálogos envolvendo teorias da Física. E se não acrescenta muito à história vista até então, o roteiro de Warren Ellis parece mais o cumprimento de um compromisso do autor com o personagem Elijah. Se isso pode soar metalinguístico, o fato é que um dos melhores momentos da HQ é quando o personagem reflete sobre a existência dizendo: “Lembre que estamos todos vivendo em planos de informação bidimensional. O fato de vivermos e respirarmos em 3-D é um efeito colateral do Universo. Nós podemos estar vivendo em outras histórias agora, deslizando através do virar de páginas”.

No geral, Planetary n°27 não é um dos pontos altos da série, mas também não chega a decepcionar (para quem quiser conferir, algumas das páginas estão disponíveis aqui). Para 2010, a DC / Wildstorm programou o lançamento do quarto e último encadernado da série, além da reimpressão de Absolute Planetary – Volume 1 e do lançamento de Absolute Planetary – Volume 2. No Brasil, os “Arqueólogos do Impossível” tiveram algumas publicações ruins, como as coletâneas em formato reduzido e páginas internas foscas, lançadas pela Pandora e pela Devir. Seu melhor momento foi na Pixel Magazine, onde os capítulos 13 a 26 foram lançados com qualidade gráfica adequada. A Pixel também lançou três edições especiais em formato ampliado (Planetary / Batman - Noite na Terra, Planetary / Liga da Justiça - Terra Oculta e Planetary / Authority - Dominando o Mundo) e uma terceira coletânea (Planetary: Deixando o Século 20) no inadequado formato reduzido.

(Para saber mais sobre Planetary e outros trabalhos de seus autores, basta clicar nos marcadores abaixo.)

03/12/2009

O primeiro “arco” de Batman and Robin.


Há seis meses, chegava às lojas nos Estados Unidos Batman and Robin, nova série em doze números escrita por Grant Morrison. As três primeiras edições, desenhadas por Frank Quitely, trazem a estreia de uma nova dupla dinâmica formada por Dick Grayson (que herdou a capa e o título de Batman, após a aparente morte do herói em Crise Final) e Damian Wayne (o filho rebelde de Bruce). Desta vez, os vilões tradicionais de Gotham City ficam de lado e a ameaça fica por conta do Professor Pyg e de seus asseclas do Circo do Estranho.

Em muitos sentidos, a nova revista da dupla dinâmica lembra All-Star Superman, que também totalizou doze edições e resgatou elementos tradicionais do Homem de Aço. Como Morrison revelou ao saite IGN, em Batman and Robin a ideia foi recapturar a atmosfera fantasiosa das HQs do personagem nos anos 50. Outra fonte importante seria o seriado de tevê dos anos 60, com seus elementos bizarros e histórias agitadas que funcionavam segundo suas próprias regras. Mas o roteirista não abriu mão de elementos mais modernos que fizeram o sucesso de produções recentes com o Batman, buscando criar o que ele chamou de “noir psicodélico”.

Tendo sido uma das maiores vendagens da DC Comics nos últimos anos, Batman and Robin n°1 começa com uma perseguição policial ao carro do vilão Mr. Toad. Entra em cena então um Batmóvel em nova versão voadora, preparada pelo impetuoso e arrogante Damian. Mostrando frieza e autocontrole, Dick parece bem à vontade no papel de Homem-Morcego. Completam a revista um pouco de tensão entre os dois protagonistas, uma boa participação do mordomo Alfred e a entrada em cena do vilão Professor Pyg. No conjunto, a HQ de estreia destaca-se pelo ritmo acelerado da ação, pelos bons diálogos e pelo visual bem particular.

Batman and Robin n°2 traz o desenvolvimento da trama apresentada até ali. Para começar, uma conversa com o Comissário Gordon antecipa uma longa sequência de pancadaria, em que a dupla dinâmica enfrenta os integrantes do Circo do Estranho. Em seguida, a tensão entre os novos Batman e Robin atinge um ponto crítico. Entra em cena então o mordomo Alfred, sempre com um bom conselho ou uma palavra de apoio a oferecer. Ao fim da HQ, um pouquinho mais de pancadaria envolvendo o arrogante Damian e estranhos homens-boneca. Novamente, os desenhos de Quitely e a colorização por computador criam um visual interessante.

Batman and Robin n°3 deixa uma sensação não de velocidade narrativa, mas sim de correria. Trazendo a resolução do “caso” iniciado na primeira edição, a HQ atira informações sobre o leitor, tentando explicar ao mesmo tempo o plano e as motivações do Professor Pyg. Perversões de um psicopata, perseguições num velho parque de diversão e alguma pancadaria encerram o “primeiro arco” da série, abrindo uma porta para as edições seguintes. Mas é um final decepcionante, que não fica à altura da promessa trazida por Batman and Robin n°1. Como aconteceu com Crise Final, Morrison parece não ter conseguido entregar o que prometeu.

Algo que permaneceu atrativo e original ao longo das três edições foram os desenhos. Mas nem isso a série preservou já que, a partir de sua quarta edição, Frank Quitely foi substituído pelo bem menos talentoso e original Phillip Tan. Para quem quiser tirar a prova, os primeiros números de Batman and Robin ainda estão disponíveis para venda em lojas virtuais, devendo chegar ao Brasil em breve, pela Panini.

01/12/2009

DC Comics: resgatando antigos formatos em busca do sucesso.


Numa crise, muitas vezes a melhor solução pode não estar na invenção de algo novo, mas sim em se trabalhar a partir de um modelo já existente, adaptando-o à realidade do momento. O fato é que, após mais um fiasco editorial (envolvendo a pretensiosa e confusa Crise Final), a DC Comics ficou ainda mais em segundo plano na disputa com sua concorrente direta, Marvel. Ao que parece, a crescente perda de mercado inspirou os editores a se voltarem para antigos formatos de publicação, como as revistas com uma história principal seguida de uma HQ curta complementar. Comuns até os anos 70, as revistas em dupla voltaram a ser vistas neste ano, nas edições de Detective Comics (que além das aventuras da Batwoman trazem também histórias de Questão) e Doom Patrol (que junto com os personagens-título publicam a nova série com os Metal Men).

O mais bem-sucedido projeto de adaptação de um antigo formato foi Wednesday Comics, uma série de jornais semanais, em doze edições com capítulos de uma página. Imitando o formato dos clássicos quadrinhos dominicais, o projeto criado por Mark Chiarello recebeu o nome “quadrinhos de quarta-feira” por ser este o dia da semana em que os lançamentos chegam às lojas dos Estados Unidos. Trazendo medalhões da DC (como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha), a série contou ainda com nomes consagrados do mercado (como Neil Gaiman, Brian Azzarello e Joe Kubert). Grande sucesso comercial, esses jornais com quadrinhos ganharão em breve uma coletânea em capa-dura. Lançada no início de julho, Wednesday Comics n°1 veio dobrada no formato comic book, mas, ao ser aberta, a publicação se desdobra em páginas num formato gigante, com ótima impressão de cores.

De saída, Brian Azzarello e Eduardo Risso oferecem uma história policial com o Homem-Morcego. Em seguida, Dave Gibbons e o desenhista Ryan Sook trazem de volta o herói pós-apocalíptico Kamandi. Virando a página, John Arcudi, Lee Bermejo e Barbara Ciardo nos levam a uma batalha entre o Homem de Aço e um estranho alienígena. A seguir, numa HQ com Deadman, a dupla Dave Bullock e Vinton Heuk imitam o estilo de Darwyn Cooke. Depois, são Kurt Busiek e Jae Quinones que tentam reproduzir o espírito de A Nova Fronteira numa aventura com o Lanterna Verde. Virando a página, Neil Gaiman e Mike Allred misturam Metamorfo, humor e caça ao tesouro. Já Eddie Berganza e Sean Galloway adotam um tom mais adolescente e um estilo mangá para sua versão dos Jovens Titans. Numa linha bem mais pessoal, Paul Pope e José Villarrubia mostram uma típica manhã agitada de Adam Strange.

Por sua vez, Jimmy Palmiotti e Amanda Conner preferem uma abordagem mais infantil, em sua HQ com a Super-Moça, o Super-Cão e o Super-Gato. Em seguida, o editor Dan Didio e os veteranos José Luís Garcia-Lopes e Kevin Nowlan resgatam dos anos 60 e 70 o grupo de robôs Metal Men. Na história seguinte, Bem Cadwell utiliza um traço belíssimo em sua versão conto de fadas para a Mulher-Maravilha. O clima muda completamente na história de guerra produzida por Adam e Joe Kubert para o Sargento Rock. Dividida em duas partes, a página seguinte traz um clima mais leve, nas HQs de Flash e Íris West, produzidas por Karl Kershl e Brenden Fletcher. Já Walt Simonson e Brian Stelfreeze preferem as sombras ao colocar frente a frente o imortal Jason Blood e a mortífera Mulher-Gato. Fechando essa edição de estreia, Kyle Baker opta por tons mais claros em sua aventura aérea com o Gavião Negro.

Bastante diversificado, o primeiro número de Wednesday Comics deixou a sensação de um projeto bem elaborado, que tem como base um bom time de autores. Além disso, as histórias dessa série semanal não fazem parte da cronologia oficial da DC, o que permitiu uma maior independência e liberdade criativa para roteiristas e desenhistas. Isso deu abertura para os pontos altos da edição de estreia (as páginas com o Batman, Metamorfo, Adam Strange e Mulher-Maravilha). Enquanto a edição encadernada ou a versão brasileira não vêm, algumas páginas da série podem ser encontradas pela Internet e também no blog oficial da DC.