24/12/2009

O inovador “Livro I” de Marvelman / Miracleman.


Criado por Mick Anglo em 1954, Marvelman foi o primeiro e o mais popular super-herói britânico. Uma cópia mal-disfarçada do Capitão Marvel (Shazam), o personagem também se transformava ao dizer uma “palavra-mágica” e tinha uma “família” de jovens ajudantes. Mas, apesar do enorme sucesso inicial, mudanças nos interesses do público levaram, em 1963, ao cancelamento das revistas da Família Marvelman. O personagem permaneceria em “animação suspensa” por quase duas décadas, até ser resgatado pelo roteirista Alan Moore e o editor Dez Skinn. Relançado em março de 1982, na revista Warrior n°1, Marvelman provaria-se novamente um sucesso, desta vez não entre as crianças, mas entre os leitores adolescentes e alguns profissionais dos quadrinhos. Trazendo uma concepção inovadora para os super-heróis, as histórias originais criadas por Moore ajudariam a transformar esse gênero de quadrinhos (sendo a primeira dentre as várias reformulações racionalistas de antigos heróis a serem lançadas ao longo dos anos 80).

Com o sucesso da nova versão do super-herói, Skinn decidiu lançar Marvelman Special n°1, que trazia basicamente reimpressões de HQs dos anos 50, produzidas pela equipe de Anglo. Mas, devido à utilização do nome do personagem no título da revista, a Marvel Comics (que se considera dona da palavra marvel no ramo dos quadrinhos) interferiu judicialmente. É interessante notar que o nome Marvelman (surgido em 1954 na revista que lançou o personagem) antecede a utilização do nome Marvel Comics, o que tornaria infundadas as alegações da editora norte-americana (não fosse seu maior poderio econômico). O fato é que a disputa judicial dificultou a continuação da série, causando também desavenças entre Skinn e Moore, o que resultou na suspensão de Marvelman no número 21 da Warrior (que, sem seu personagem mais popular, chegou ao fim no número 26, em janeiro de 1985). Aquele, contudo, não seria o fim de Marvelman, que logo retornaria num outro formato e com um novo nome.

Desde o início, uma das intenções de Skinn era negociar com editoras norte-americanas reedições das séries publicadas na Warrior. Com o prestígio que a revista havia alcançado entre alguns leitores e profissionais dos quadrinhos nos Estados Unidos, o editor via ali a oportunidade de entrar num mercado muito maior e mais rentável. É claro que as HQs saídas da Warrior teriam que ser reduzidas do formato magazine para o comic book e ganhariam cores, tendo seus capítulos de cinco a oito páginas agrupados em revistas de vinte a trinta páginas. A mudança mais significativa, porém, seria a sofrida exatamente pelo personagem Marvelman, que (para evitar problemas com a Marvel Comics em seu próprio país) acabaria sendo rebatizado como Miracleman (nome que, por ironia do destino, havia aparecido pela primeira vez justamente numa revista da sucursal britânica da Marvel, numa cena em que um assassino de super-heróis interdimensional fulmina um herói com as feições de Marvelman, mas que ali é denominado “Miracleman”).

O acordo feito entre o editor inglês e a norte-americana Eclipse Comics permitia a republicação dos capítulos de Marvelman lançados na Warrior e previa a retomada da série do ponto em que havia sido interrompida. Foi assim que, em meados de 1985, chegou às lojas dos Estados Unidos a primeira edição de Miracleman, que somaria um total de dezesseis números escritos por Moore, reunidos mais tarde em três coletâneas (que serviram de base para a análise que faço aqui). A série começa com “Um sonho de voar”, no qual um inglês de meia-idade chamado Mike Moran se vê mais jovem, voando na companhia de outros dois super-heróis, todos prestes a pousar numa estranha nave. O que se segue é uma explosão atômica, da qual aparentemente apenas Moran (Miracleman) teria saído com vida, para despertar desse pesadelo, ao lado de sua esposa, Liz. Apesar de uma terrível dor de cabeça, ele tem que levantar e sair para cobrir um protesto antinuclear numa usina atômica. O fato é que, a partir daí, sua vida jamais será a mesma.

Desenhado pelo meticuloso Garry Leach, o primeiro capítulo de Miracleman já mostra alguns elementos da concepção mais racionalista dos super-heróis proposta por Moore. Partindo de situações mundanas, trazendo uma ambientação cotidiana e ancorada em fatos da realidade da época, a HQ apresenta um acontecimento plausível que serve de pretexto para o esquecido herói redescobrir seus poderes. Em meio a um ataque de terroristas, Moran é arrastado semiconsciente e, ao passar por uma porta de vidro, vê a inscrição invertida “cimota”. Essa é a chave para seu passado como super-herói, pois ao pronunciar a palavra-mágica “Kimota” ele se transforma, pela primeira vez após muitos anos, em Miracleman. Imune a balas e superpoderoso, o herói não demora a derrotar os terroristas. Porém, mais que um retorno triunfante, as oito páginas dessa reestreia são exemplo da genialidade de seu roteirista, anunciando a técnica desconstrutivista que Moore utilizaria na série (e em trabalhos posteriores, como Swamp Thing e Watchmen).

Em 1954, na sua criação de Marvelman a partir do Capitão Marvel, Mick Anglo manteve a ideia de uma palavra-mágica, substituindo a popular e mística “Shazam” pela moderna e científica “Kimota”. Sendo esta uma corruptela da palavra atomic, ao situar seu primeiro roteiro numa usina atômica, Moore evidenciou de forma crítica as ligações do personagem com o imaginário da época em que foi criado (lembrando que nos anos 50 a energia atômica era um símbolo relativamente positivo, estando relacionado à origem e aos poderes de vários personagens). E a ligação entre o herói britânico e seu modelo norte-americano voltou a ser exposta no segundo capítulo, quando Miracleman se apresenta a Liz e lhe conta como ele recebeu seus poderes do mago astrofísico Guntag Barghelt (inspirado no venerável mago Shazam), fala de seus amigos Young Miracleman e Kid Miracleman (copiados do Capitão Marvel Jr. e da Mary Marvel) e também de seus inimigos, como o gênio do crime Doutor Gargunza (inspirado no inigualável vilão Doutor Silvana).

Aqui, Moore deixa claro que tinha em mente mais que uma boa história, e sim toda uma concepção inovadora. Afinal, ao ouvir a história narrada pelo alter ego de seu marido, Liz não consegue conter o riso, expondo o caráter fantasioso e ingênuo das HQs de super-heróis tradicionais, em contraposição ao que seria o “mundo real” em que ela vive (que é na verdade uma parte da concepção trazida pela história da qual ela faz parte). As fronteiras entre as memórias fantasiosas de Miracleman e a realidade crua do mundo de Moran tornam-se mais nítidas quando entra em cena Johnny Bates, o antigo Kid Miracleman, que não morreu e acabou se tornando um milionário inescrupuloso. Então, o que vemos nos capítulos 3, 4 e 5 é a evolução de um encontro amistoso, que leva a um questionamento mútuo e explode num conflito titânico. Nele, referências à poesia de William Blake, uma prosa de ressonância wagneriana e alusões a tigres, dragões, anjos, monstros e tempestades dão o tom de uma das melhores sequências de luta já feitas num quadrinho de super-heróis!

Primorosa em seus roteiros e textos, a série não fica para trás em termos de desenho, ganhando em dinamismo quando Garry Leach foi substituído por Alan Davis, na passagem do terceiro para o quarto capítulo. (Não posso deixar de observar, contudo, uma pequena contradição na lógica interna da história, segundo a qual Mike Moran e Miracleman possuem corpos distintos, que trocam de lugar quando pronunciam a palavra “Kimota”; assim, enquanto uma identidade habita o “mundo real”, a outra é transferida para uma dimensão de animação suspensa, intitulada “infraespaço”. Após sua luta com Bates, Miracleman fica bastante ferido e, segundo lemos num balão, Moran deixou sua identidade de herói de lado por dois meses; mas, ao dizer novamente a palavra “Kimota”, Miracleman reaparece quase completamente recuperado dos ferimentos. A contradição está no fato de que, segundo a própria história, o “infraespaço” é uma dimensão fora do tempo e, portanto, não poderia haver qualquer recuperação nos ferimentos de Miracleman.)

Um envolvimento governamental na origem de Miracleman é sugerido nos capítulos 5 e 6. Com isso, em meio a uma trama mais complexa, o sétimo, oitavo e nono capítulos intercalam ação e conspiração, apresentando uma misteriosa agência governamental (Spook Show), um dúbio assassino de aluguel (Mr. Cream) e um abobado “super-herói” (Big Ben). Tudo culmina no capítulo 10, “Zarathustra”, em que Moore revela a conspiração envolvendo a criação da Família Miracleman. O título do capitulo vem de Assim falava Zaratustra de Friedrich Nietzsche, que traz a ideia de um “super-homem” (ou “além-do-homem”), que teria inspirado o governo britânico a criar seres superpoderosos, utilizando a tecnologia de uma nave alienígena caída na Terra. Em resumo, conciliando filosofia, literatura e realidade cotidiana, misturando características de séries de espionagem, ficção científica e super-heróis, por sua qualidade e originalidade, o “Livro I” de Miracleman tornou-se um marco dos quadrinhos e uma das HQs mais influentes das últimas décadas.

(CONTINUA...)

4 comentários:

Wellington Srbek disse...

Olá pessoal,
Nos últimos três dias, um "apagão" virtual tem limitado ou impedido acessos a endereços blogspot.com. Ao que parece é um problema generalizado, que restringiu os acessos por todo o Brasil. Desde que fiz esta postagem sobre Miracleman no dia 24, esta é a primeira vez que consegui acessar a página do blogger. De qualquer forma, eu já havia deixado uma postagem programada, que irá ao ar à meia-noite desta segunda. Torço então para que tudo se regularize logo e vocês possam ler os textos que preparei e postarem seus comentários.
Grande abraço e ótima semana a todos!

Guilherme disse...

Olá Wellington.
Felizmente o "apagão" parece já estar resolvido, sendo assim podemos ler seus ótimos posts.

Infelizmente tive pouco acesso as histórias do Moore em Miracleman. Li apenas estas primeiras histórias (Livro I) e realmente é maravilhoso. Quase todo o Moore que conhecemos do período nos EUA já estava latente nesta série. Espero que elas possam ser reimpressas com o possível fim de todo imbróglio que havia sobre os direitos de Marvel/Miracleman que, ao que parece, vai para a Marvel.

Ainda tem os roteiros que o Gaiman fez para o personagem e diz ainda conservar em casa e que talvez possa ser lançado.

Wellington Srbek disse...

Olá Guilherme,
No último texto desta série sobre Marvelman / Miracleman (que será postado à meia-noite de hoje) eu falo de todo o problema jurídico envolvido na publicação da série, que, ao que parece, voltará enfim a ser publicada.
Eu li Miracleman pela primeira vez, nas edições em P&B brasileiras, em 1995 ou 1996 e a série continua sendo uma das melhores HQs de super-heróis que conheço. E após ler o "Livro III", em 2006, passei a considerá-la a melhorer HQ de super-herois já produzida (melhor até mesmo que Watchmen!).
Aguardarei seus novos comentários. Abraço e ótimo 2010!

Wellington Srbek disse...

Devo completar, Guilherme, dizendo que todo o processo que Neil Gaiman moveu contra Todd McFarlane visava a não apenas recuperar os direitos sobre o personagem, mas também (acredito eu) a permitir que ele retome suas histórias, que ficaram com um "Livro" inacabado e outro inteiro por escrever. É inclusive de interesse do Joe Quesada e da Marvel que isso aconteça. Então, depois de anos no limbo, o futuro de Marvelman pode ser bem interessante (SE a Marvel não atrapalhar tudo...).