31/12/2009
O incomparável “Livro III” de Miracleman.
Quando o “Livro III” de Miracleman começou a ser publicado no primeiro semestre de 1987, haviam se passado cinco anos desde que o personagem fora relançado nas páginas da Warrior. Nesse meio-tempo, Alan Moore deixou de ser um roteirista inglês relativamente desconhecido para se tornar (ao lado de Frank Miller) um dos astros do mercado norte-americano. Ele já havia alcançado grande reconhecimento ao reformular o Monstro do Pântano (lançando as raízes para o que viria a ser mais tarde o selo Vertigo) e deixava todos na época estupefatos com sua dissecação dos super-heróis chamada Watchmen (a melhor e mais influente abordagem “realista” desse gênero). Com o próprio Marvelman / Miracleman, o roteirista já havia inovado ao lançar a primeira reformulação racionalista de um personagem tradicional (que influenciava as recriações dos principais heróis da DC e a concepção básica do Novo Universo Marvel). Então, superando as expectativas, em seu volume final de Miracleman, Moore foi mais além!
Na segunda metade dos anos 80, no rastro de O Cavaleiro das Trevas e Watchmen, e sob o rótulo do “realismo”, uma onda de quadrinhos mais sombrios e violentos tomou conta das revistas de super-heróis. Estando no auge de sua carreira, esbanjando talento e criatividade, Moore não se contentou em seguir as tendências do mercado e produziu Miracleman: Olympus, uma HQ de super-heróis quase surrealista. Publicado entre os números 11 e 16 da revista, esse terceiro volume foi o único a contar com apenas um artista, o talentosíssimo John Totleben. E uma vez que as histórias eram publicadas cinco anos após o início da série, brilhantemente, Moore incorporou essa informação à narrativa, fazendo de Olympus um livro narrado em retrospectiva. Tudo começa num maravilhoso e monumental palácio-montanha, construído sobre os escombros de Londres, onde o herói que ascendeu à condição de divindade começa a refletir sobre “a sensação de se viver numa mitologia” (enquanto escreve suas memórias num livro de páginas de aço).
As metáforas e referências mitológicas perpassarão o “Livro III”, a começar pelos títulos de seus capítulos: “Cronos”, “Aphrodite”, “Hermes”, “Pantheon”, “Nemesis” e “Olympus”. E é nesses termos que os dois agentes alienígenas vistos ao final do “Livro II” são reapresentados, já que pertencem à civilização dos Qys, responsável pela tecnologia do “infraespaço”, e vieram à Terra destruir as criaturas geradas através dela, sendo assim equiparados ao titã Cronos que devorava / destruía seus filhos. Ou como expressa poeticamente o próprio Miracleman: “Eu não os conhecia então enquanto titãs, eu não sabia que Cronos havia chegado para confiscar os raios de um delinquente Zeus. Isso foi antes de tais conceitos serem definidos, ou inscritos, incandescentes, no aço imortal”. O que se segue é um embate entre monstros alienígenas transmorfos e um surpreso herói superpoderoso, tudo numa dinâmica e variada sequência narrativa, embelezada pelo expressivo traço de Totleben e o poético texto de Moore. Em outros termos: um começo nada menos que genial!
Ao descobrirem sobre Winter (a filha de Miracleman e Liz Moran), os agentes alienígenas concluem que sua missão é mais complexa do que pensavam. Com isso, enquanto um deles neutraliza o pai, o outro parte em busca da filha, mas todos acabam surpreendidos pela intervenção de Miraclewoman (a personagem superpoderosa que se manifestara no último capítulo do “Livro II” e permanecia desconhecida). Comparada na narração à deusa Afrodite, ela será o centro das atenções no segundo capítulo, que narra a história de como essa heroína também foi criada por Gargunza. Ressalta-se aí o tom sensorial e sensual da narrativa, unido às imagens detalhadas e amplas que, em conjunto, reforçam o caráter erótico e quase surrealista da HQ. O resultado é um dos raros quadrinhos de super-heróis que lida com o tema da sexualidade de uma forma madura. Ao final do capítulo, sabemos um pouco mais sobre a intrincada trama concebida por Moore e presenciamos a chegada de um casal de Warpsmiths (superpotência interestelar inimiga dos Qys).
Os Warpsmiths surgiram na Warrior n°4, no interlúdio “The Yesterday Gambit” (que mostra uma possível batalha futura entre Miracleman e Kid Miracleman), voltando a aparecer na história “Cold war, cold warrior” (publicada nos números 9 e 10 da Warrior, e mais tarde republicada em cores pela Eclipse). Mantendo uma espécie de “Guerra Fria” com os Qys, os Warpsmiths são alienígenas capazes de dobrar o espaço-tempo à sua vontade, sendo identificados com o veloz deus Hermes. Passado num mundo extraterrestre, esse terceiro capítulo pode ser comparado a outras tentativas de se criar civilizações alienígenas. Contudo, a concepção original e o texto simbolista de Moore têm uma ousadia temática e um caráter peculiar que causam ao leitor o estranhamento de se estar diante de algo que parece mesmo alienígena (por exemplo, no caso do-da rei-rainha Qys: uma gigantesca massa celular disforme e hermafrodita). E se tudo se acerta entre as superpotências interestelares, é quando Miracleman retorna à Terra que as coisas começam a se complicar.
Humana, num mundo agora povoado por seres imortais e superpoderosos, Liz Moran entra em crise. Antes mesmo de engatinhar, Winter voa de seu berço e começa a discorrer sobre o estado mental de sua mãe. As coisas se “normalizam” um pouco quando Miracleman e Miraclewoman são convidados a visitar a estação espacial da qual os Warpsmiths passaram a monitorar a Terra. De lá, eles descobrem um outro ser superpoderoso, Firedrake, que teria a natureza apolínea de um “portador do fogo divino”. Com ele, o “glorioso Panteão” estava completo e a transformação do mundo numa utopia poderia começar. Mas, como em todo paraíso, aquele também tinha uma serpente. Vivendo numa instituição para jovens infratores, Johnny Bates (ainda um menino, por ter permanecido no ”infraespaço” por quase vinte anos) é atormentado pelo sádico Kid Miracleman (preso em seu inconsciente), enquanto sofre humilhações e agressões de outros internos. Quando estes o violentam, ele não suporta mais e se transforma em Kid Miracleman.
O que vem a seguir é Miracleman n°15, talvez a mais violenta HQ de super-heróis já produzida. Na época, Moore se referiu a ela dizendo que, após completar Watchmen, que considerava sua “declaração final sobre os super-heróis”, ele se viu às voltas com a obrigação de produzir uma outra declaração final sobre o gênero. E pode-se dizer que, neste caso, ele não deixou “pedra sobre pedra”! Lançada no final de 1988, a revista explora o que aconteceria se seres superpoderosos e virtualmente indestrutíveis se enfrentassem nas ruas de uma grande metrópole. Tendo de um lado Miracleman, Miraclewoman, Firedrake e os Warpsmiths, de outro o cruel e amoral Kid Miracleman, o resultado é a mais terrível devastação e carnificina. Mostrando chuvas de mãos e pés decepados, rios de sangue, corpos mutilados e descarnados, as imagens são tão explícitas e absurdas que chegam a ter um efeito surrealista. E se os desenhos já dizem muito, o texto repleto de metáforas e simbolismo dá uma dimensão épica a esse encontro do herói com seu nemesis.
Passados mais de vinte anos desde sua publicação, a penúltima edição de Moore para a Miracleman permanece inigualável em sua proposta de expor a violência implícita às HQs de super-heróis, levando-a a suas últimas consequências. Ela pode ser considerada também um dos melhores trabalhos de Totleben (que enfrentou muitas dificuldades durante seu trabalho na série, devido a uma doença degenerativa que atingiu seus olhos, limitando seu campo de visão e impedindo-o de trabalhar por longos períodos). Na edição final de Moore & Totleben, publicada apenas em fins de 1989, o herói feito divindade conclui sua narrativa sobre como um maravilhoso mundo novo foi construído sobre os escombros de Londres (pois como ele havia concluído antes: “não há nenhuma casa de deuses que não tenha sido construída sobre ossos humanos”). Ao longo do caminho, intervenções na política internacional, a limpeza do meio ambiente, a paz mundial, o fim da miséria e até mesmo superpoderes para todos e a ressurreição dos mortos tornam-se possíveis.
Em meio à construção da utopia (ou ditadura), temos uma sequência de sexo aéreo com Miracleman e Miraclewoman, um ritual fúnebre de sexo grupal dos Warpsmiths e um trecho polêmico em que Winter (então uma menina de quatro anos) refere-se a suas experiências sexuais na temporada que passou no espaço. Mas mesmo um “mundo perfeito” não está livre de problemas, afinal há os que não aceitaram a nova ordem mundial imposta pelas divindades cósmicas. A própria Liz Moran optou por não se converter num ser superpoderoso, preservando sua humanidade. Condição esta que Miracleman havia deixado para trás ao “enterrar” Mike Moran num capítulo anterior, embora parecesse nostálgico dela mais tarde, ao segurar um crânio nu (qual um contemplativo Hamlet). O capítulo final de Miracleman: Olympus, que tratou de maravilhas e imortalidade, conclui com uma apropriada reflexão sobre as escolhas e limitações que nos definem a todos, as quais chamamos de humanidade. E nunca antes uma série de super-heróis foi tão filosófica e pertinente!
Inovadora e inspiradora em seu início, irregular e prejudicada em sua continuação, a fase de Alan Moore à frente de Marvelman / Miracleman concluiu como uma das mais brilhantes e originais revistas de super-heróis já produzidas. Mesmo com a saída do roteirista, sua influência sobre a série permaneceria notável. Afinal, apesar das diferenças de proposta, o trabalho de Neil Gaiman (no “Livro IV” e no inacabado “Livro V”) e dos outros roteiristas que lidaram com o personagem (na minissérie Miracleman: Apocrypha) partiu do que havia sido construído por Moore (quando não de uma simples frase ou cena de uma de suas histórias). E tendo servido de modelo para outras HQs da época, a influência de Miracleman pode ser notada em trabalhos posteriores, como por exemplo Astro City de Kurt Busiek (cujo primeiro capítulo é um plágio de “Um sonho de voar”) e Authority de Warren Ellis (cuja primeira revista imita a devastação vista em “Nemesis”). Mas, apesar do prestígio e importância, a trajetória de Miracleman perneceria tumultuada.
Em 1994, a Eclipse foi à falência e seu acervo de personagens foi parar num leilão judicial. Com isso, em 1996, Todd McFarlane deu um lance de alguns milhares de dólares e comprou a editora “de porteira fechada”. Um problema é que esse leilão não levou em conta as diversas propriedades autorias sobre os personagens. O próprio Miracleman é um caso complexo, já que Moore havia passado seus direitos para Gaiman, mas outros autores (como Alan Davis) também se consideram proprietários das HQs produzidas a partir de 1982. Além disso, McFarlane e Gaiman acabaram se desentendendo sobre pagamentos relativos ao uso da personagem Angela (criada por Gaiman para a série Spawn). Para complicar, em 2001, McFarlane lançou uma estátua de Miracleman e divulgou que ele participaria da revista Hellspawn. Então, com parte dos lucros da minissérie 1602 (publicada pela Marvel), Gaiman criou a companhia Marvels and Miracles LLC, voltada a resolver a situação de Miracleman, o que deu início a um processo judicial contra McFarlane.
Passaram-se alguns anos até que um juiz decidiu a questão, definindo que McFarlane não tinha direitos sobre o personagem. Mas, a saga jurídica de Marvelman / Miracleman não se encerrou aí. No mesmo processo, descobriu-se que, ainda em 1982, o editor Dez Skinn não teria pago a Mick Anglo pelos direitos de usar o personagem na Warrior, o que gerou um novo entrave judicial. Então, em 2009, o editor-chefe da Marvel, Joe Quesada, anunciou que Marvelman passava a fazer parte do acervo da editora (o que é bastante irônico, já que essa mesma editora havia criado os primeiros problemas judiciais para o personagem). O fato é que isso trouxe a possibilidade de o herói voltar a ser publicado, e também de que Gaiman conclua sua fase à frente da série. Mas, embora um acordo já tenha sido feito com Anglo e Moore, há ainda muitos acertos a serem feitos com os diversos autores que trabalharam na série. Logo, aos antigos e futuros leitores, só resta aguardar o dia em que Marvelman ganhará novas edições, à altura de sua qualidade e importância!
(No Brasil, Marvelman / Miracleman foi publicada no início dos anos 90 pela pequena editora Tannos. Nas quatro revistas em P&B que lançaram, os editores publicaram o “Livro I” completo e alguns capítulos do “Livro II”, além das HQs especiais “The Yesterday Gambit” e “Cold war, cold warrior”. A qualidade gráfica das edições deixava a desejar, com revistas em tamanhos e tipos de papel diferentes, mas a Tannos teve o mérito de tornar disponível aos leitores brasileiros ao menos uma parte dessa obra-prima dos quadrinhos.)
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2 comentários:
As cenas sexuais de Miracleman são autenticamente extrahumanas. Creio que ainda são melhores que as cenas de Promethea. Recordam o ceremonial erótico do maithuna, a união entre a natureza e o poder, e o fato de que se realize no ar era um extraordinário paradoxo, um instante estático, fora do tempo. Sempre se escreve sobre Nietzsche e o super-homem nos artigos dedicados a Miracleman mas eu só posso recordar o tantrismo e suas iniciações para abolir a lei do bem e do mal no ser humano. Talvez por iso eu não gosto do trabalho de Gaiman ao arrancar a Miracleman de seu retiro e o processo de dessolidarização do mundo. O estado incondicionado que eu imaginava no esvaziamento entre MIracleman e a caveira.
A oitenta quilômetros de Madri também chove. Kimota!!!
Caríssimo Ismael,
Talvez tenha faltado em meu texto uma referência mais detalhada às questão do sexo em Miracleman. Creio que podemos fazer uma distinção entre a sequência de sexo aéreo de Miracleman e Miraclewoman, e a cena de sexo-luto dos Warpsmiths. Na verdade, aliás, neste texto eu planejava falar de uma HQ curta chamada "Ghostdance" (desenhada por Garry Leach e lançada em A1 n°1), que é uma das melhores e mais poéticas obras de Alan Moore - mas acabou que faltou espaço no texto (talvez eu ainda escreva um texto específico sobre ela, como fiz com "In Pictopia").
Pois é, aqui apenas hoje a chuva está dando uma trégua, embora tenha causado ainda alguns desabamentos e mortes na noite de reveillon... (Na Solar n°1, a primeira ação heroica de Gabriel foi resgatar pessoas, cujas casas desabavam por causa das chuvas; passados 15 anos, infelizmente este é um problema que permanece.)
Tudo de bom para você em 2010, amigo!
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