31/08/2009

Um desenhista genial chamado Melado.


Foi provavelmente em 1991 que conheci o desenhista, ilustrador, cartunista e amigo João Batista Melado, ou J. B. Melado, ou apenas Melado. Na época, eu era um menino tímido que queria ser desenhista de quadrinhos. Tendo conhecido há pouco o cartunista Nilson Azevedo, fui convidado para participar de uma das reuniões de quadrinistas que ele fazia em sua casa nos domingos pela manhã. Para mim, aquela foi uma oportunidade incrível para conhecer profissionais do desenho, aprender mais sobre a arte dos quadrinhos, ter meus primeiros trabalhos criticados e, sobretudo, conhecer alguns dos amigos que fariam parte de minha vida desde então.

Além do próprio Nilson, sempre muito generoso em explicar e ensinar sobre desenho e quadrinhos, naquelas animadas e esperançosas reuniões de domingo pela manhã, eram presença constante o desenhista e diagramador Cleber Campos e o próprio Melado. Os dois já trabalhavam juntos há algum tempo e haviam criado uma série de tirinhas chamada Quixotó e Sanchulé (com versões cartunísticas e cômicas dos personagens criados por Miguel de Cervantes), além de mais tarde darem vida ao personagem Grafite (cujas HQs publicadas inicialmente num jornal de BH podem agora ser vistas no Blog do Cleber). Aquelas reuniões do início dos anos 90 contavam com a presença de outras pessoas, mas nós quatro acabamos formando uma espécie de “núcleo central” do grupo.

Não é por menos que, no meu aniversário em 2000, pude contar com a animada presença de Nilson, Cleber e Melado, entre outros amigos, como o infalível Dênio Takahashi, já então retornado de sua temporada no Japão. A festa no bar Arrumação foi tão bacana que decidimos torná-la um encontro periódico, sempre no primeiro ou segundo sábado do mês. Aqueles foram encontros verdadeiramente memoráveis, aos quais se agregavam amigos dos amigos, e nos quais aproveitávamos para colocar a conversa em dia, rir bastante, cantar e (no meu caso, por ser solteiro) namorar as belas moças que frequentavam o Arrumação. Nossas reuniões eram tão boas que quase fundamos uma confraria, que chamei de “Sociedade dos Cavaleiros da Triste Figura” (Cervantes, novamente!). A partir de 2002, porém, outros compromissos e os apertos da vida acabaram atrapalhando nossas reuniões.

Fiquei um tempo sem ter notícias do Melado e quando soube dele novamente foi através de uma página de quadrinhos sua, presente numa exposição. Era um negócio fabuloso! Meio quadrinho, meio iluminura medieval. Fiquei maravilhado. Nos últimos tempos, aliás, tudo que vi dele é de cair o queixo! O cara já era um bom desenhista, mas tornou-se um gênio do traço. Seus quadrinhos têm um quê de Will Eisner e suas ilustrações algo de gravura antiga, de Dürer ou outro mestre da textura. Mas, por favor, não confiem apenas em minha palavra; aproveitem para dar uma olhada na galeria pessoal dele. Se tivéssemos, de fato, no Brasil um mercado para quadrinhos brasileiros (ou se talvez BH não fosse a ilha que é), Melado já seria um ilustrador reconhecido.

De qualquer forma, para minha alegria, ele aceitou meu convite para desenhar minha adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Então, com a proteção do belo São Miguel Arcanjo que ilustra esta postagem, teremos em 2010 a publicação, pelo selo Desiderata da editora Agir, de nosso primeiro álbum em parceria (que, espero, venha a ser a primeira de várias colaborações nossas). Vocês não perdem por esperar!

28/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (12).


1) Mas então já a rapidez da marcha era tal que escapava a toda a compreensão.

2) Um nevoeiro cobriu tudo, menos o hipopótamo que ali me trouxera...

3) ...que aliás começou a diminuir...

4) ...a diminuir, a diminuir...

5) ...até ficar do tamanho de um gato.

6) Era efetivamente um gato.

7) Encarei-o bem; era o meu gato Sultão, que brincava à porta da alcova, com uma bola de papel.

27/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (11).


1) Inclinei os olhos a uma das vertentes, e contemplei, ao longe, uma redução dos séculos, e um desfilar de todos eles, as raças todas, todas as paixões, o tumulto dos impérios, a guerra dos apetites e dos ódios, a destruição recíproca dos seres e das coisas.

2) Os séculos desfilavam num turbilhão, e eu via tudo o que passava diante de mim. Quis fugir, mas uma força misteriosa me retinha os pés.

3) Fixei os olhos, e continuei a ver as idades que vinham chegando e passando, já então tranquilo e resoluto, não sei se até alegre.

4) Meu olhar viu enfim chegar o século presente, e atrás dele os futuros. Redobrei a atenção; ia enfim ver o último – o último!

26/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (10).


1) TREMES?
2) SIM, O TEU OLHAR FASCINA-ME.

3) EU NÃO SOU SOMENTE A VIDA; SOU TAMBÉM A MORTE, E TU ESTÁS PRESTES A DEVOLVER-ME O QUE TE EMPRESTEI. GRANDE LASCIVO, ESPERA-TE A VOLUPTUOSIDADE DO NADA.

4) Quando esta palavra ecoou como um trovão, naquele imenso vale, pareceu-me que era o último som que chegava a meus ouvidos.
5) Então, encarei-a com olhos súplices, e pedi mais alguns anos.

6) POBRE MINUTO! PARA QUE QUERES TU MAIS ALGUNS INSTANTES DE VIDA? PARA DEVORAR E SERES DEVORADO DEPOIS? NÃO ESTÁS FARTO DO ESPETÁCULO E DA LUTA?
7) Isto dizendo, arrebatou-me ao alto de uma montanha.

25/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (9).


1) Só sei que um vulto imenso, uma figura de mulher me apareceu então, fitando-me com uns olhos rutilantes como o sol.
2) Tudo nessa figura tinha a vastidão das formas selváticas, e tudo escapava à compreensão do olhar humano.

3) Estupefato, não disse nada; mas, ao cabo de algum tempo, perguntei quem era e como se chamava.

4) CHAMA-ME NATUREZA OU PANDORA; SOU TUA MÃE E TUA INIMIGA.

5) A figura soltou então uma gargalhada, que produziu em torno de nós o efeito de um tufão.

24/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (8).


1) Chegou uma ocasião em que me pareceu entrar na região dos gelos eternos.
2) Abri os olhos e vi que o meu animal galopava uma planície branca de neve.
3) Tudo neve.

4) Tentei falar, mas apenas pude grunhir esta pergunta ansiosa:
5) ONDE ESTAMOS?

6) JÁ PASSAMOS O ÉDEN.

7) Íamos devorando caminho, e a planície voava debaixo dos nossos pés, até que o animal estacou, e pude olhar mais tranquilamente em torno de mim.
8) O silêncio daquela região era igual ao do sepulcro.

23/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (7).


1) Vi chegar um hipopótamo, que me arrebatou.
2) Deixei-me ir, calado, não sei se por medo ou confiança.

3) Mas, dentro em pouco, a carreira de tal modo se tornou vertiginosa, que me atrevi a interrogá-lo, e com alguma arte lhe disse que a viagem me parecia sem destino.

4) ENGANA-SE. NÓS VAMOS À ORIGEM DOS SÉCULOS.
5) Insinuei que deveria ser muitíssimo longe; mas o hipopótamo não me entendeu ou não me ouviu, se é que não fingiu uma dessas coisas.

6) Pela minha parte fechei os olhos e deixei-me ir à aventura.

22/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (6).


1) Nhonhô era um bacharel, único filho de seu casamento.
2) Na idade de cinco anos, fora cúmplice inconsciente de nossos amores.

3) Confesso que, ao vê-los ali, na minha alcova, fui tomado de um acanhamento que nem me permitiu corresponder logo às palavras afáveis do rapaz.

4) NHONHÔ, NÃO REPARES NESSE GRANDE MANHOSO QUE AÍ ESTÁ. NÃO QUER FALAR PARA FAZER CRER QUE ESTÁ À MORTE.
5) Sorriu o filho, eu creio que também sorri, e tudo acabou em pura galhofa.

6) Virgília estava serena e risonha, tinha o aspecto de vidas imaculadas.
7) Nenhum olhar suspeito, nenhum gesto que pudesse denunciar nada.

8) E eu perguntava a mim mesmo o que diriam de nós os gaviões.
9) Era o meu delírio que começava...

21/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (5).


1) Ela tinha então 54 anos, era uma ruína, uma imponente ruína. Imagine o leitor que nos amamos, ela e eu, muitos anos antes, e que um dia, já enfermo, vejo-a assomar à porta da alcova...

2) ...pálida, comovida, trajada de preto, e ali ficar durante um minuto, sem ânimo de entrar.
3) Da cama, onde jazia, contemplei-a durante esse tempo, esquecido de lhe dizer nada ou de fazer nenhum gesto.

4) Virgília entrou na alcova, firme, com a gravidade que lhe davam as roupas e os anos, e veio até o meu leito.
5) Quem diria? De dois grandes namorados, de duas paixões sem freio, nada mais havia ali, vinte anos depois; havia apenas dois corações murchos, devastados pela vida e saciados dela.

20/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (4).


1) Assim a minha ideia trazia duas faces, como as medalhas, uma virada para o público, outra para mim.

2) De um lado, filantropia e lucro; de outro lado, sede de nomeada. Digamos: amor da glória.

3) Senão quando, estando eu ocupado em preparar e apurar a minha invenção, recebi em cheio um golpe de ar.

4) Adoeci logo, e não me tratei. Tinha o emplasto no cérebro; trazia comigo a ideia fixa dos doidos e dos fortes.

5) Via-me ao longe, remontar ao céu, como uma águia imortal.

6) No outro dia estava pior; tratei-me enfim, mas incompletamente.
7) Tal foi a origem do mal que me trouxe à eternidade.

19/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (3).


1) Com efeito, um dia de manhã, estando a passear na chácara, pendurou-se uma ideia no trapézio que eu tinha no cérebro. Essa ideia era nada menos que a invenção de um medicamento sublime, um emplasto anti-hipocondríaco, destinado a aliviar a nossa melancólica humanidade.
2) Agora, porém, que estou cá do outro lado da vida, posso confessar tudo: o que me influiu principalmente foi o gesto de ver impressas nos jornais, mostradores, folhetos, esquinas, e enfim nas caixinhas do remédio, estas três palavras...
EMPLASTO BRÁS CUBAS

18/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (2).


1) Não sou propriamente um autor defunto, mas um defunto autor.
2) Expirei às duas horas da tarde de uma sexta-feira do mês de agosto de 1869, na minha bela chácara de Catumbi.

3) Tinha uns sessenta e quatro anos, rijos e prósperos, era solteiro, possuía cerca de trezentos contos e fui acompanhado ao cemitério por onze amigos.
4) Onze amigos!

5) Foi assim que cheguei à cláusula dos meus dias, como quem se retira tarde do espetáculo. Tarde e aborrecido.
6) Morri de uma pneumonia. Mas se lhe disser que foi menos a pneumonia, do que uma ideia grandiosa e útil, a causa de minha morte, é possível que o leitor não me creia, e todavia é verdade.

17/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, roteiro (1).


1) Este livro trata-se de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, meti algumas rabugens de pessimismo.

2) Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia.

3) Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo.

4) Evito assim contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo.

5) Seria curioso, mas minimamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo!

6) Se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa. Se não te agradar, pago-te com um piparote, e adeus.

14/08/2009

Memórias Póstumas de Brás Cubas, a adaptação.


Memórias Póstumas de Brás Cubas foi um dos primeiros livros que me conquistaram como leitor na época em que eu ainda iniciava minha paixão pela literatura. Nos anos seguintes, ampliei meus conhecimentos literários, ao mesmo tempo em que me aprimorava como autor de quadrinhos, lancei álbuns e revistas, enquanto descobria novos autores. E sempre que pensava num livro que eu gostaria de adaptar para os quadrinhos, a obra-prima de Machado de Assis surgia no topo da lista. Foi assim que, no fim de 2008, dediquei-me ao trabalho de transpor Memórias Póstumas de Brás Cubas para os quadrinhos.

Minha concepção sobre as adaptações é a de que elas são uma espécie de tradução; ou seja, elas devem buscar transpor as concepções estéticas e os efeitos narrativos de uma linguagem para outra. No caso específico, buscar reproduzir na linguagem dos quadrinhos os elementos literários presentes na obra original, respeitando é claro as especificidades de cada forma artística. Uma adaptação, portanto, não deve ser apenas a repetição automática das palavras do texto original, mas sim um trabalho de entendimento e reelaboração do conteúdo literário. Minha abordagem específica para a adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas seguiu exatamente essas diretrizes.

Ao estabelecer um diálogo constante entre o narrador, Brás Cubas, e nós, leitores de suas memórias, o texto machadiano é pontuado pela utilização da metalinguagem, dando margem a uma rica recriação através da linguagem dos quadrinhos. Por outro lado, em se tratando de um texto literário delicioso e simplesmente brilhante, o máximo de fidelidade às palavras de Machado de Assis foi uma regra que me impus desde o primeiro momento. Foram necessárias, é claro, pequenas atualizações e edições de texto, para uma adequação à narrativa quadrinística e inclusive à nova ortografia da língua portuguesa*.

No semestre passado, apresentei meu projeto de adaptação de Memórias Póstumas de Brás Cubas a algumas editoras. Ao mesmo tempo, busquei um parceiro para este trabalho, encontrando no amigo J.B. Melado alguém, no mínimo, tão entusiasmado quanto eu. Decidimos então pela melhor proposta e, há um mês, assinamos contrato com a Editora Agir do grupo Ediouro que será a responsável pela publicação de nosso álbum, que totalizará 78 páginas de quadrinhos e saíra pelo selo Desiderata. Melado já está trabalhando nos desenhos e a HQ deverá ser lançada em 2010.

Para mostrar um pouco de meu trabalho nessa adaptação, nas próximas postagens vou disponibilizar as doze primeiras páginas de meu roteiro desenhado, acompanhadas do texto machadiano editado para a narrativa quadrinística. Tudo, é claro, começa pela célebre dedicatória reproduzida no alto desta postagem. Espero que gostem do que verão aqui e confiram o álbum quando ele for lançado!

*Já que falei na nova ortografia da língua portuguesa, e não temos mesmo escolha, aproveito então para adotar aqui no blog, a partir desta postagem, o novo padrão de escrita do português.

10/08/2009

Entrequadros: algumas entrevistas sobre quadrinhos.


Fiz minhas primeiras entrevistas com quadrinistas em 1997. Conhecer um pouco mais sobre a trajetória e as idéias de outros autores de quadrinhos sempre foi algo que me interessou bastante. Inicialmente, as entrevistas tinham como destino páginas de jornais. Foi assim com minhas conversas com Nilson, Julio Shimamoto, Angeli, Lourenço Mutarelli, Jô Oliveira, Guga Schultze e Lacarmélio (Celton). A com o mestre Flavio Colin foi feita para o último número da revista Caliban. Já as que fiz com Mozart Couto e Cleuber Cristiano tiveram como destino o primeiro saite que criei, há uns dez anos. Todas foram reunidas no livro Entrequadros, lançado em 2004 pela editora Marca de Fantasia (atualmente esgotado). Para quem não leu o livro ou não acompanhou as entrevistas quando as postei aqui no blog, publico agora a lista completa. Não deixem de conferir!

Mozart Couto:
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2007/12/mozart-couto-um-maestro-dos-quadrinhos.html

Cleuber Cristiano:
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2008/07/cleuber-um-ltimo-rebelde-do-rock.html

Flavio Colin:
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2007/12/flavio-colin-um-dos-mais-importantes.html

Lacarmélio (Celton):
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2007/12/celton-um-heri-dos-quadrinhos.html

Angeli, Jô Oliveira, Guga Schultze e Lourenço Mutarelli:
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2007/12/4-x-4.html

Julio Shimamoto:
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2007/12/julio-shimamoto-o-samurai-dos.html

Nilson:
http://maisquadrinhos.blogspot.com/2009/08/nilson-o-guerrilheiro-do-cartum.html

08/08/2009

Nilson, o guerrilheiro do cartum.


Nilson Adelino Azevedo é, como ele mesmo costuma se definir, “o cartunista anônimo mais famoso de Belo Horizonte”. Consciente da função política e da importância social dos cartuns e quadrinhos, Nilson criou personagens como o Negrim, inspirado nas experiências de sua infância no interior de Minas Gerais, e A Caravela, uma série de histórias em quadrinhos e tirinhas sobre as Grandes Navegações (do ponto de vista dos marinheiros). Em sua incansável “guerrilha do traço”, ele publicou charges e cartuns no Pasquim e em alguns dos principais jornais do país, além de ser um dos criadores do Humordaz e companheiro de Henfil na luta contra a Ditadura. Nos últimas décadas, Nilson está afastado da grande imprensa, encontrando espaço na imprensa alternativa e sindical. Aproveito então a data de seu aniversário para compartilhar com vocês uma entrevista que fizemos em 1997. Parabéns então a Nilson e muito obrigado!

Comece do princípio...

Eu nasci em Belo Horizonte, no dia 8 de agosto de 1948. Mas me considero de Raul Soares, que é uma cidade da Zona da Mata (de Minas Gerais), porque eu fui pra lá com um ano, e todo meu inconsciente, toda minha vida afetiva, tudo que eu faço não é nada mais, nada menos, que uma expansão do tempo que vivi no interior. Raul Soares “me deu régua e compasso”. Inclusive, a noção de Infinito me veio pela primeira vez olhando uma latinha de Pó Royal. O dia que eu vi a latinha de Pó Royal, com a latinha desenhada no rótulo, e nela outra latinha desenhada, e outra desenhada dentro desta, e assim por diante... eu entendi pela primeira vez, mais ou menos pelos 9 ou 10 anos, o que era o Infinito.

Você também descobriu os desenhos e os quadrinhos lá em Raul Soares?

Pelo que meus pais me contaram, com 2 ou 3 anos eu já rabiscava a parede. Eu cresci envolvido pelos quadrinhos, minhas irmãs eram colecionadoras fanáticas de quadrinhos do Flash Gordon, do Príncipe Valente, do Batman. Aí, eu comecei a ler todos os quadrinhos, e a desenhar todos os estilos, copiando os desenhistas. Sem saber, eu estava estudando.

Por que você optou pelo desenho de humor?

Eu escolhi este desenho, que chamo de cartum, porque ele permite uma variação maior, uma expressividade muito maior do que o desenho acadêmico, do que o desenho do quadrinho de herói. Uma das coisas mais fantásticas que o cartum estabelece é fazer o leitor ver que a realidade pode ser desenhada de uma maneira que não é o retrato, que não é o desenho acadêmico. Isso provoca na inteligência do leitor uma grande reviravolta.

O desenho é uma forma de fazer política...

Política pra mim é você mudar diretamente o real. A arte, a filosofia, o humor são maneiras de você mudar o simbólico, que pode ajudar a mudar o real. Eu uso o “estilo cartum” na charge e no quadrinho. Ele permite a crítica, mas também a caracterização carinhosa de nós mesmos, em oposição àquela imagem ridícula que tem nos produtos norte-americanos. A maioria dos quadrinhos publicados no Brasil são importados, e a imagem que nos chega através do cinema, da televisão e da publicidade quase que de uma maneira absoluta são dos Estados Unidos; e aí o problema maior é o da exclusão. Eu estou incluindo a nós mesmos, eu estou incluindo o Terceiro Mundo ao nos desenhar de uma forma que não é ridícula. Essa inclusão é feita justamente para combater a exclusão que vem de lá.

Quando você descobriu os quadrinhos brasileiros ou o Brasil nos quadrinhos?

Aconteceu uma virada na minha vida quando eu vi o primeiro número do Pererê, em 1960. O Ziraldo é de Caratinga, uma cidade vizinha da minha, e eu tomei um susto porque toda a geografia, as brincadeiras, os costumes, as comidas da minha região estavam desenhadas no Pererê. O Ziraldo desenhava o roceiro com dignidade, não ridicularizava o roceiro como fazem os “Cassetas e Picaretas” ou o Angeli. O Ziraldo é da linha do Oswald de Andrade; é para os quadrinhos o que o Glauber é para o cinema, o que o Caymmi é para a música.

Você me disse que criou o Negrim porque queria fazer histórias com o Pererê.

Quando eu tinha 16 anos, fiz uma história que o Ziraldo desenhou e publicou no último número do Pererê, de março de 64. O Ziraldo me colocou como personagem desta história, mas eu passei noites sem dormir com medo de que o Pererê tivesse sido fechado pela Ditadura porque a minha história mexia com Tiradentes. Então eu criei o Negrim para substituir o Pererê, primeiro para mim.

E quando o Negrim deixa de substituir o Pererê só pra você?

Em 1969, o André Carvalho estava à frente do Gurilândia, o suplemento infantil do Estado de Minas, e ele teve o peito de tirar a histórias da Luluzinha e colocar três desenhistas brasileiros no lugar, um deles era eu. O Negrim foi um sucesso absoluto, chegou a ter 73% de “Ibope”, isso durante três anos e meio. Mas eu já tinha estreado em 1967, como cartunista no Cartum JS, um suplemento de humor dirigido pelo Ziraldo, publicado aos domingos pelo Jornal dos Sports. Quando acabou o Cartum JS eu passei para O Cruzeiro que tinha um suplemento de humor chamado O Centavo, dali fui pro Pasquim.

Você ainda estava em Minas?

É, foi em 1974 que eu fui pro Rio, morei lá por 8 meses, na pior época da Ditadura, a transição do Médici pro Geisel. Eu voltei pra Minas no final de 1974, completamente derrotado pela censura, não havia onde trabalhar lá. Aqui, eu comecei a publicar charges diárias no Jornal de Minas e, junto com o Lor, comecei a fazer o cartum sindical. Nós criamos também o Humordaz, que foi outro sucesso estrondoso no Estado de Minas, e que virou uma página que saía todo sábado, com o melhor pessoal de texto e todos os cartunistas que tinham por aqui. Nós também fizemos o almanaque Humordaz que foi fechado pela censura no número três.

E quando o Henfil entra na história?

Eu já conhecia o Henfil desde a época do Cartum JS. Em 1979, eu fui visitá-lo em São Paulo e ele falou comigo: “Nilson, tá acontecendo tudo em São Paulo, o Rio já era! Tudo tá aqui: o ABC, o Lula, a música, o teatro, a OAB”. Realmente ele estava certo. Eu fiquei lá de 1979 a 1982 e participei da História do Brasil. Esse tempo todo eu trabalhei na Folha e na imprensa alternativa. Em 1982, eu voltei pra Belo Horizonte porque não aguentava mais São Paulo, fiquei doente lá. Voltei com a intenção de nunca mais sair de Minas.

Como você vê a atuação da imprensa no Brasil?

Durante a Ditadura se você fosse fazer uma passeata, podia ser preso e torturado, podia até desaparecer. Durante muito tempo o que a gente podia fazer era uma guerra de opinião, na qual a imprensa alternativa tinha um papel fundamental, um exemplo é o Pasquim. Hoje, você não tem uma imprensa alternativa na dimensão que tinha naquela época pra rebater as bobagens escritas pela “imprensa mega-medíocre”. Nós achávamos que, com o fim da Ditadura, a grande imprensa se abriria para que pudéssemos publicar e fazer tudo que não pudemos antes. Mas isto não aconteceu. A imprensa resolveu transformar o jornal, que era um veículo de informação, em um veículo de prestação de serviços.

Para finalizar, o que é seu trabalho?

Eu sou brasileiro, de Terceiro Mundo, em meu trabalho é muito mais difícil não refletir isso, que refletir. Eu ajo naturalmente. Claro que eu pesquiso, que eu procuro, mas pra mim é muito mais difícil copiar do que criar. Os rótulos que o pessoal coloca, “socialista”, “cristão”, “ressentido”, “brontossauro”, não dizem nada. O que eu sou reflete a minha coisa humana como um todo. Eu nunca me surpreendi pensando: “agora eu vou fazer um desenho político!”. Sempre que eu sento pra desenhar, senta o Nilson inteiro, o ser humano inteiro: brasileiro, de Terceiro Mundo, cristão, hipocondríaco, e sai o que eu sou. Eu sou do PT e outro rótulo que eles colocam pra bloquear meu trabalho na grande imprensa é dizer que eu seria um porta-voz do partido, isso não é verdade. Quando eu faço minha charge ou quadrinho, eu não sou “do PT”, eu sou o ser humano Nilson tentando falar com a humanidade inteira, até com os inimigos.

06/08/2009

As últimas do Flash, por Geoff Johns.


Há alguns anos, Geoff Johns era apenas um novo nome nos créditos das HQs norte-americanas. Nos últimos tempos, porém, ele se tornou um dos mais destacados e importantes roteiristas dos quadrinhos de super-heróis (e da DC Comics em particular). Assinando participações em séries como Crise Infinita e 52, Johns tornou-se conhecido por seus trabalhos com super-heróis clássicos, com destaque especial para a minissérie Lanterna Verde: Renascimento, que resgatou e redimiu o herói Hal Jordan. Repetindo sua parceria com o desenhista Ethan Van Sciver, o roteirista está lançando agora The Flash: Rebirth, minissérie em seis edições que marca a volta de outro herói da “Era de Prata”.

Um dos efeitos da minissérie Crise Final foi o retorno de Barry Allen à continuidade regular dos heróis DC. Devidamente ressuscitado, o herói que dera origem à “Era de Prata” e ao “Multiverso DC” ganhou dos editores uma nova chance (bem aos moldes da oferecida ao Lanterna Verde em 2004-2005). O número 1 de The Flash: Rebirth começa bem, com um duplo assassinato cometido por um misterioso vilão que consegue emular o acidente que deu origem aos poderes do herói. Nas páginas seguintes, encontramos os vários personagens que assumiram o nome do Flash: de Jay Garrick e Wally West a Bart Allen e, é claro, o próprio Barry Allen. Lembranças e comentários sobre este último interligam as passagens da história, que incluem a participação de antigos adversários do herói e de seu amigo Hal Jordan.

Com alguns mistérios e referências a outras HQs, o capítulo inicial da minissérie serve para estabelecer a trama, cenário e personagens. Como é de se esperar, o número 2 traz um desenrolar dos acontecimentos (um pouco lento), que mistura gorilas das cavernas, cultos à “força da velocidade” (a energia mística que impulsiona os velocistas da DC), flashbacks que revelam o passado de Barry Allen e diálogos que esclarecem elementos sobre seu presente. O Lanterna Verde Hal Jordan faz uma participação breve e mais um mistério é acrescentado com o surgimento de um enigmático “Flash negro”. Já o número 3 traz um emaranhamento ainda maior dentro da metafísica que envolve a tal “força da velocidade”. Um plano de contenção é necessário e alguns figurões da Liga e da Sociedade da Justiça dão as caras.

Além do herói Flash e do roteirista Geoff Johns, outro atrativo na minissérie é o trabalho de Ethan Van Sciver (auxiliado por uma competente colorização digital). Seu traço fino segue um padrão detalhista que, em alguns momentos, chega a ser meio estático para uma revista de super-heróis. Isso sem falar no fato de que seu estilo realista tende a ressaltar cenas estranhas, como personagens em fantasias espalhafatosas sentados à mesa lendo jornais ou comendo cachorros-quentes. E se algumas cenas de página inteira são bem impactantes, outras em sequências de quadros trazem desenhos quase amadores. Mais ilustrador do que propriamente um quadrinista, Van Sciver tem mostrado o melhor de seu trabalho nas capas da minissérie, todas com duas versões e com direito a citações de antigas capas e situações clássicas.

As edições de The Flash: Rebirth não têm sido as únicas participações do “velocista escarlate” em HQs escritas por Geoff Johns. Outro exemplo é Blackest Night #0, revista distribuída gratuitamente pela DC em maio. A história começa com reflexões de Hal Jordan sobre o espectro das cores e sua missão como Lanterna Verde, passando a um lamento à beira do túmulo do Batman Bruce Wayne. É então que Barry Allen entra em cena, apressadamente (no que parece ser uma participação anterior aos eventos mostrados em The Flash: Rebirth). Após um longo diálogo sobre amigos falecidos, os dois heróis partem sem perceber a presença do vilão Mão Negra, o arauto da “noite mais densa”. Sendo uma introdução à série agora em andamento, a HQ de doze páginas tem como ponto alto os excelentes desenhos de Ivan Reis.

Geoff Johns é hoje uma espécie de roteirista oficial do “Universo DC”, que (ao lado de Grant Morrison e dos chefões da editora) tem dado as cartas sobre os destinos de alguns de seus principais personagens. Grande conhecedor da cronologia e dos meandros ficcionais envolvendo aqueles heróis, o roteirista é de fato um trabalhador dedicado e esforçado, mas não é nenhum gênio. Com um gosto para histórias grandiosas e explicações superestruturais, suas histórias têm o mérito de agradar, mas deixam a desejar em termos de inovação. Apesar disso, podemos dizer que Johns merece todo seu sucesso, oferecendo-nos histórias acima da média das revistas de super-heróis. Para quem quiser dar uma olhada, a DC disponibilizou prévias das três primeiras edições de The Flash: Rebirth e a HQ completa de Blackest Night #0:

http://www.dccomics.com/media/excerpts/11472_x.pdf
http://www.dccomics.com/media/excerpts/11691_x.pdf
http://www.dccomics.com/media/excerpts/11881_x.pdf
http://www.dccomics.com/sites/greenlantern/media/comic/Blackest_Night_0.pdf

(Para saber mais sobre o herói Flash e as várias “Crises” pelas quais têm passado os heróis DC, clique nos marcadores abaixo.)

03/08/2009

Panini lança a mais nova super-saga “definitiva” da DC.


Desde os anos 80, as super-sagas “definitivas” tornaram-se bastante comuns nos quadrinhos das grandes editoras norte-americanas, com destaque para a DC Comics (que lançou essa tendência em 1985 com sua “maxissérie” Crise nas Infinitas Terras). Mais recentemente, uma verdadeira epidemia cataclísmica (ou simples ganância editorial) levou a uma confusa sequência de “crises” e “contagens regressivas” (que só tendem mesmo a deixar mais pobres os leitores que as seguem). Podemos dizer que, pelo menos desde meados dos anos 90, os quadrinhos de super-heróis em geral foram envolvidos por um esquema editorial que visa somente ao lucro. Com isso, eliminou-se qualquer rastro de um “universo ficcional” dotado de uma história coerente e personagens com credibilidade.

Quando comecei a colecionar quadrinhos, as “vidas” dos heróis importavam e seus destinos ficcionais tinham relevância para nós, leitores. Mas hoje por que motivo um leitor deveria se importar com o fato de que o Batman Bruce Wayne “morrerá” em uma edição vindoura? Afinal, todos sabemos que, num futuro não muito distante, ele será cinicamente ressuscitado por autores e editores interessados tão-somente nas vendagens das revistas. É claro que, desde o início, os quadrinhos de super-heróis foram um negócio, e vender revistas sempre foi a base desse negócio. A diferença é que, até uns vinte ou quinze anos, as histórias eram bem melhores e os personagens não eram vistos apenas como franquias, cujo melhor destino só pode ser protagonizar sua própria produção hollywoodiana.

Em sua função de repetidora local dos produtos DC Comics, a Panini tem seguido à risca a sequência de super-sagas “definitivas”, com suas histórias complementares. Assim, após uma extensa (e provavelmente dispensável) Contagem Regressiva, chegou às bancas brasileiras a alardeada Crise Final. Antes, porém, não faltou uma última exploraçãozinha: a revista Universo DC Especial: Começa a Crise Final (R$4,50). Trazendo capa e contracapa desenhadas por George Pérez e J.G. Jones, e sendo escrita por Grant Morrison e Geoff Johns, a “história” é narrada pelo falecido Flash Barry Allen. Pretendendo-se um prelúdio para a super-saga em questão, a HQ não passa de uma colagem ruim de sequências desconexas (entremeadas por anúncios das novas minisséries a serem lançadas pela Panini).

No final de julho veio, enfim, a Crise Final propriamente dita, minissérie em sete edições, escrita por Grant Morrison. Na divulgação da Panini lê-se: “O fim se aproxima! Ao longo do tempo, os heróis sempre são testados até o seu limite ao enfrentarem ameaças que nenhum deles pode derrotar sozinho. Eventos assim costumam ser chamados de Crises. Em toda a história do Universo DC, já ocorreram dois momentos como esses, que quase levaram toda a existência a um fatídico fim. Porém, mais uma vez os heróis serão necessários para se interpor à frente de um desafio que está muito além de suas forças individuais. [...] E, desta vez, nem todos os heróis escaparão das garras da morte. Mudanças profundas serão sentidas em todo o UDC...”. Será mesmo? Ou melhor, será que alguém ainda cai nessa conversa?

Claro que, para criticar qualquer revista em quadrinhos, é indispensável ler a edição. Se Universo DC Especial: Começa a Crise Final foi uma total perda de tempo e dinheiro, o mesmo não se pode dizer de Crise Final n°1 (R$5,50). A HQ começa na Pré-História, num momento prometéico ao estilo de 2001: Uma Odisséia no Espaço, envolvendo o personagem Metron da série Novos Deuses. Na sequência seguinte, já estamos nos tempos atuais, em que outro dos personagens cósmicos de Jack Kirby é vítima de assassinato. Entram em cena então os Lanternas Verdes, os Guardiões, a Liga da Justiça e outros medalhões da DC. Ecoando frases bíblicas e baseada na consagrada Crise nas Infinitas Terras, a super-saga “final” idealizada por Morrison também se ancora na temática superestrutural do “Multiverso”.

Um dos destaques de Crise Final n°1 deveria ter sido a execução de Ajax o Marciano (sim, ele morre!) pelo misterioso Libra e alguns dos membros da Sociedade Secreta dos super-vilões. A sequência, no entanto, é muito rápida e pouco expressiva, perdendo em dramaticidade. Com isso, o melhor mesmo desta primeira edição fica por conta dos ótimos desenhos de J.G. Jones (o artista responsável pelas capas da série 52). Dono de um traço detalhado e bastante adequado às HQs de super-heróis, o desenhista se sai muito bem nas variações entre passado e presente, ambientes cotidianos ou futuristas, personagens humanos ou alienígenas. Jones não será, contudo, o único responsável pelas sete edições da minissérie, dividindo funções com outros desenhistas, talvez não tão bons quanto ele.

No geral, após ler Universo DC Especial: Começa a Crise Final e Crise Final n°1 (e com R$10,00 a menos no bolso), posso dizer que não fiquei nem um pouco impressionado com o que vi, tampouco empolgado com a continuação de mais esta super-saga DC. Planejada para organizar definitivamente a estrutura do “Multiverso DC”, alinhando seu passado, presente e futuro, a minissérie escrita por Morrison (segundo a opinião geral) acabará se perdendo em suas próprias pretensões megalomaníacas. Pode ser que eu esteja velho demais para este tipo de quadrinho, cheio de personagens com estranhas fantasias coloridas. Mas, ao concluir esta postagem, caro leitor deste blog, eu pergunto: será que alguém (além dos autores e editores envolvidos) precisava de mais uma super-saga "definitiva"?

02/08/2009

Quadrinhos independentes em entrevista, parte2.


Parte final de nossa entrevista e as questões de Lídia Basoli abordam especificamente alguns de meus álbuns e revistas, como Estórias Gerais e Solar, gerando uma conversa interessantíssima e bastante informativa. Não deixem de ler!

Fale um pouco da sua relação com o mestre Flavio Colin.

Desde que descobri os quadrinhos de verdade eu me tornei um fã absoluto do trabalho do mestre Colin. Em 1997, quando produzia a revista Caliban, eu descobri o endereço dele e enviei uma carta com os dois primeiros números da revista. Para minha surpresa ele respondeu sem demora (sua carta foi até publicada no número 3 da revista). Mantivemos contato e eu falei a ele sobre trabalharmos juntos numa história. Quando tive a idéia para o que viria a ser o álbum Estórias Gerais não pensei em outro desenhista! Fiz o convite, acertamos os detalhes financeiros e começamos a trabalhar no projeto. Durante e depois da produção do EG mantivemos uma correspondência regular e vários contatos por telefone. Além do EG, produzimos algumas HQs menores, somando com as capas 190 páginas desenhadas. Infelizmente, com sua morte não pudemos realizar um novo álbum sobre o qual havíamos conversado. Era uma grande alegria e honra para mim o fato de ele me considerar e chamar de amigo. Fiquei realmente muito triste com sua morte, pois era uma pessoa realmente muito querida (embora não tenhamos jamais nos encontrado pessoalmente). Os quadrinhos brasileiros perderam ali seu maior gênio e um dos maiores artistas dos quadrinhos mundiais.

Solar e Caliban foram duas produções suas dos anos 1990. Depois houve Mirabilia e as propostas de álbum Estórias Gerais e Quantum e tantas outras. Como está sua produção hoje?

Idéias para novos personagens, histórias e edições nunca me faltaram. O que costuma faltar para realizá-las são tempo e recursos. Já concluí meu trabalho de roteiro para Solar: Solo Sagrado, que pode ser a última revista independente que lançarei. Assim, hoje minha produção autoral está parada. Eu ainda teria muitos quadrinhos para criar, mas se acontecerem provavelmente todos os meus futuros trabalhos autorais sairão por editoras.

Há entre essas produções alguma que lhe foi mais especial? Por quê?

Gosto muito de álbuns e revistas temáticos como Fantasmagoriana, Quantum, Apócripha e Alienz. E gosto de meus quadrinhos de terror e suspense, como Mirabilia, Mystérion, Monstros e Muiraquitã. Mas, enquanto personagem, tenho uma relação especial com o Solar (tanto que o estou relançando agora) e também, enquanto obra, com o álbum Estórias Gerais (que é meu trabalho mais bem acabado, premiado e reconhecido).

Qual a sua opinião sobre o trinômio “produção, divulgação e distribuição” para os quadrinhos independentes de BH e do Brasil?

A produção é a paixão e o que nos faz estar aqui; a divulgação é o que pode nos levar a algum lugar; e a distribuição é em grande parte o que limita nossas possibilidades.

Em uma das respostas você coloca que Solar: Solo Sagrado pode ser a última revista independente que você vai lançar e também que a saída para os quadrinhos brasileiros não está na produção independente. Dessa forma, qual a saída que você vê para a maioria da produção sobre quadrinhos que está sendo produzida hoje no Brasil? O que deve ser melhorado ou de que maneira poderia ser divulgado os quadrinhos e os quadrinistas brasileiros?

Bom, eu vejo a produção de quadrinhos de maneira profissional. Por isso mesmo, pago aos desenhistas que trabalham nas minhas revistas, para poder exigir qualidade e cumprimento de prazos (o que nem sempre consigo, infelizmente). Embora minhas edições se paguem e se esgotem com o tempo, elas não rendem o bastante para pagar por meu próprio trabalho de roteirista e editor (como costumo dizer, meus quadrinhos se sustentam, mas não me sustentam). Só que eu cheguei a um ponto em que não posso mais me dedicar aos quadrinhos apenas por paixão, por isso Solar: Solo Sagrado pode ser minha última revista independente. Se eu continuar produzindo quadrinhos autorais deverá ser através de editoras.
Quanto à segunda parte de sua pergunta, já venho trabalhando com quadrinhos independentes há anos e para mim é muito claro hoje que há limitações na produção independente que não podem ser superadas. É claro que é possível fazer bons trabalhos no esquema independente, mas nada se compara aos recursos e às possibilidades de uma publicação num esquema mais profissional ou editorial mesmo. No meio independente hoje, o que chega mais perto de uma publicação profissional são os álbuns lançados pela Graffiti, nos quais os autores recebem para produzir os trabalhos (pois acredito realmente que todos devemos receber por um trabalho de qualidade). E respondendo à questão sobre a “saída” para os quadrinhos brasileiros, na minha opinião a única saída para termos no Brasil uma produção sustentável e que se desenvolva com o tempo (gerando trabalhos cada vez melhores e mais rentáveis) seria um meio-termo entre a eficiência empresarial e comercial dos estúdios Maurício de Sousa e a qualidade artística e autoral da Graffiti. Se as editoras investissem em quadrinhos brasileiros com potencial comercial e qualidade autoral (como aconteceu com revistas como Aventuras do Anjo, Pererê, Fradim, Chiclete com Banana e a própria Turma da Mônica) teríamos um mercado que se sustentaria e daria emprego a vários quadrinistas que hoje só têm a opção de publicar de forma independente.

Deixe um recado para quem está começando a trabalhar com quadrinhos.

Trabalhe muito para melhorar sempre. Estude os grandes mestres e os principais artistas dos quadrinhos. Não abandone os estudos regulares, pois um diploma poderá lhe fazer falta! Leia muito sobre História, Arte, Filosofia, Ciência. Não apenas copie os japoneses e os norte-americanos, o Alan Moore, o Moebius ou o Angeli. Busque seu próprio caminho. Tente lançar suas revistas ou publique pela Internet. Talvez não seja uma boa estratégia fazer dos quadrinhos o plano A profissional para sua vida. Enfim, faça o melhor que puder, divirta-se no processo e boa sorte!

01/08/2009

Quadrinhos independentes em entrevista, parte1.


Mais uma entrevista no Mais Quadrinhos e desta vez o entrevistado sou eu mesmo! Há alguns meses, a jornalista Lídia Basoli, que participa da revista Café Espacial, entrou em contato comigo para uma entrevista / artigo sobre o movimento de quadrinhos em BH. A matéria saiu neste sábado no informativo do 4° Mundo e aproveito então para reproduzir, nesta e numa próxima postagem, as questões de nossa entrevista. Obrigado a Lídia pela oportunidade de falar sobre meus trabalhos e minha trajetória; e boa leitura a todos!

Você começou a ler e fazer quadrinhos quando era criança. Quais os personagens que mais lhe influenciaram?

Na verdade, eu já não era criança. Tinha 11 anos quando criei minha primeira HQ. Mas só comecei a colecionar e ler quadrinhos aos 12. Naquela época, as primeiras influências de personagens que tive foram de coisas como X-Men e Vingadores.

A idéia do Estúdio HQ surgiu em 1997 em forma de associação de quadrinistas. Como você vê essas associações / coletivos como o próprio 4° Mundo hoje?

A idéia para o Estúdio HQ surgiu bem antes de 1997. Lembro-me de uma reunião que participei com o Erick Azevedo, o Fabiano Barroso e o Piero Bagnariol ainda no início daquela década. Acho que o Erick e o Fabiano trabalharam na Solar n°7, lançada em 1996, já como uma participação do Estúdio HQ. Bom, eu vejo essas iniciativas como uma forma de os quadrinistas independentes somarem forças visando a um objetivo comum. Neste sentido, elas sempre podem trazer bons resultados.

Com certeza, a falta de apoio faz com que editoras e quadrinistas se tornem "independentes" buscando um novo espaço de divulgação. Como você avalia essa situação em BH e no Brasil?

A situação hoje é melhor do que quando comecei, pois há mais pessoas e revistas no Brasil produzindo quadrinhos independentes. Mas faltaria ainda buscar um amadurecimento maior dos trabalhos, pois não se preocupar com a qualidade desde o início é um erro (e eu só digo isso porque já li afirmações em contrário publicadas em espaços ligados ao 4° Mundo). Se um leitor der chance a uma revista independente e encontrar ali um trabalho muito ruim, possivelmente ele não dará uma segunda chance à produção independente. De qualquer forma, tenho convicção hoje de que a saída para os quadrinhos brasileiros não está na produção independente.

Parece que sem a Lei Municipal de incentivo à cultura haveria muito mais dificuldade para a produção dos quadrinhos. Essas leis realmente suprem essa carência de apoio ou não?

Bom, desde 2002 eu não publico nenhuma revista ou álbum através de leis de incentivo. Então, não acho que as leis sejam indispensáveis.

E o tão famigerado eixo Rio-São Paulo para os quadrinhos? Você sente que houve uma diferença de atitude dos anos 1990 para cá?

Uma vez eu li numa revista de outro estado alguém falando do eixo “Rio-São Paulo-Minas” que atrapalharia a produção nacional. Na época eu dei uma risada porque Minas não faz parte de qualquer eixo (do mal ou do bem). Há o FIQ que acontece aqui a cada dois anos, mas isto é outro caso. Tudo que foi feito em termos de produção de quadrinhos aqui, desde os anos 90, foi feito por iniciativa de pessoas como eu, o pessoal da Graffiti, do extinto Estúdio HQ e do antigo Estúdio Big Jack, entre outros. O que acontece é que a maior parte das editoras que publicam quadrinhos está no Rio de Janeiro ou em São Paulo, e isso faz uma grande diferença, em termos de acesso aos editores.

A influência do cenário quadrinístico de BH para o Brasil é notória, ainda mais depois da grande explosão que foram os anos de 1990. Como estão e quem são os independentes de BH hoje?

Tem eu que estou meio que parando, o incansável Lacarmélio (Celton), o pessoal da Graffiti que ampliou seu trabalho, e mais umas duas ou três pessoas que lançam trabalhos de vez em quando. Há também o pessoal que trabalha com tiras, como a Chantal, o João Marcos e o Cleuber (este de vez em quando). Se esqueci de alguém, peço desculpas!

Fale sua opinião sobre o trabalho do Celton (Lacarmélio de Araújo).

O Lacarmélio é um lutador, uma das pessoas que produzem quadrinhos independentes há mais tempo no Brasil. Uma figura realmente ímpar e quase folclórica, que conseguiu fazer de seus quadrinhos sua vida e que praticamente se identificou com seu personagem Celton.

Outros nomes famosos dos quadrinhos de BH são Cleuber Cristiano com as maravilhosas tiras do Arroz Integral, Luciano Irrthum com um traço pra lá de ácido e o grande Nilson Azevedo. Há ainda uma boa produção? Quais outros artistas de BH que você admira?

Quando falamos de “artistas de BH” o ideal seria dizermos “artistas mineiros”, pois muitos como o Nilson não foram criados aqui. Além do próprio Nilson, com quem aprendi muito sobre a arte dos quadrinhos, temos por aqui artistas geniais como o Marcelo Lelis, o João Batista Melado e o Guga Schultze, além do Cleuber, do Irrthum, da Chantal e do João Marcos. Acho que este seria o primeiro time dos quadrinhos por aqui atualmente.

(CONTINUA)