11/07/2010

Rayos y Centellas: super-heróis retrô, numa minissérie espanhola.


No ano passado, ao visitar um dos blogs do amigo Ismael Marfull, deparei com uma postagem sobre “Os Super-Heróis Republicanos”. O título chamou minha atenção, mas o que me conquistou mesmo foram as imagens que ilustram a postagem, com capas e páginas desenhadas num interessantíssimo estilo cartunizado. Ao ler o texto, logo me lembrei da série Marvelman e da minissérie 1963, com as quais Alan Moore inaugurou, respectivamente, as recriações metalinguísticas de antigos super-heróis e o subgênero dos super-heróis retrô. Apesar da clara influência dos trabalhos do roteirista inglês, pelo texto de Ismael já se podia perceber que Rayos y Centellas tinha suas qualidades próprias.

E não são poucas! A começar pelo título, que deve ser o nome de grupo de super-heróis mais lírico que já inventaram. Pedi então a Ismael para ver se me conseguia as três edições da minissérie e, passados alguns meses, recebi as revistas, junto com outros tebeos (no mesmo pacote que trouxe a adaptação de O Médico e o Monstro da qual já falei aqui). Lançada em 1996, Rayos y Centellas é uma criação do roteirista David Muñoz e do desenhista Luis Bustos. A HQ traz as aventuras e desventuras de um grupo de heróis, cujas histórias se passam em 1957, numa realidade alternativa em que os republicanos venceram a Guerra Civil Espanhola e o general Franco morreu.

Embora a primeira edição seja um pouco confusa, com saltos narrativos e uma grafia nos balões por vezes difícil de entender, a história é criativa e engraçada, o visual dinâmico e expressivo. Nos dois capítulos seguintes, aqueles problemas são superados e a HQ avança através de viagens a dimensões paralelas e também ao passado (aliás, esta singela minissérie espanhola já empregava elementos que fariam o sucesso da série Tom Strong e do seriado Lost). Se não bastasse, um robô que leva o cérebro de Franco, um atrapalhado vilão ao estilo de Dick Vigarista, alienígenas cabeçudos, dinossauros, traidores e brigadas fascistas entram em cena para tentar eliminar os Rayos y Centellas.

Ao final, tudo dá errado e Dr. Felicidad, Protón, Boris Bovril, Divisor, Sísmica e Juanra não conseguem salvar o planeta... No entanto, através de uma surpreendente reviravolta narrativa, o roteirista nos mostra que seus heróis, sem sequer suspeitar, alteraram o passado e, consequentemente, deram início a uma nova linha do tempo na qual tudo acaba bem (ao menos enquanto seus inimigos não atacarem novamente!). E se o roteiro é inteligente e criativo, por si sós os expressivos desenhos já valeriam a HQ. Numa linha cartunizada, as páginas da minissérie lembram a recriação pop feita pelo norte-americano Jay Stephens na série Land of Nod ou pelo brasileiro Will em Sideralman.

Empregando com precisão os contrastes entre preto e branco, o traço varia de intensidade, dando leveza ou peso às cenas e personagens, de acordo com o que pede a história. Se não bastasse, seguindo o que se vê nas edições de 1963, a minissérie espanhola também traz editoriais, anúncios publicitários e seções de cartas fictícios (que buscam reforçar o clima pop e retrô das histórias). Infelizmente, a qualidade e a inovação trazidas por este trabalho de Muñoz e Bustos parece não ter feito o sucesso necessário entre os leitores espanhóis da época, não tendo assim uma continuação. Uma pena! De qualquer forma, esse trabalho mereceria uma reedição e na certa uma edição brasileira.

Rayos y Centellas é uma história em quadrinhos divertida, cheia de referências e lugares-comuns saídos de desenhos animados e seriados de ficção científica clássicos. Como não se render a super-heróis esquisitões, com seus inimigos de bigodinho prussiano e risinho irritante, ou formas de robô fora de moda? Ainda assim, com uma história inteligente, desenhos deliciosos e uma narrativa (quase sempre) eficiente, essa HQ espanhola subverte as fórmulas do gênero. Mas, mais que brincar com clichês e lugares-comuns, mais que repetir a eterna luta entre “o bem e o mal”, o trabalho de Muñoz e Bustos nos fala de uma disputa mais real e histórica: aquela entre as forças do fascismo e da liberdade.

Lançada em março de 1996, exatamente quando eu publicava por aqui o primeiro número da série Solar, essa minissérie espanhola foi uma das muitas tentativas de se criar quadrinhos de super-heróis autóctones, inspirando-se na genialidade do mestre Alan Moore, mas buscando um caminho próprio, autoral e nacional. Um exemplo a ser seguido e multiplicado!

8 comentários:

Do Vale disse...

É uma pena material desse tipo não chegar aqui...

Wellington Srbek disse...

Pois é, meu caro, se eu tivesse meios na certa tentaria publicar uma coletânea com os três capítulos dessa minissérie. É realmente um material muito bacana!

Lillo Parra disse...

Essa coisa de explorar realidades alternativas podem render excelentes histórias e personagens. Pense só: e se São Paulo tivesse virado um país em 32? E se Getúlio nunca tivesse saído do poder? E se o Paraguai tivesse vencido a guerra?
Acho que nessa visível retomada de investimentos dos editores em quadrinhos nacionais, essa tentativa espanhola (não só na subversão da realidade, mas também na louvável tentativa de se criar algo original no mercado)poderia nos dar valiosa lição.
De qualquer forma concordo com o Do Vale, é uma pena isso não ser publicado por aqui...

Wellington Srbek disse...

Eh, são mesmo muitas opções! Também tenho uma ideia para HQ na linha "realidades alternativas" que talvez realize algum dia.
Com essa ampliação do mercado brasileiro, quem sabe Rayos y Centellas não aparece por aqui. Vamos torcer, Lillo!
Abraços!

Ismael Sobrino disse...

É um tebeo surpreendente e me resulta fácil imaginar um quadrinho que misturasse a história política e social do Brasil com a história dos quadrinhos brasileiros. Creio que o tratamento das forças fascistas espanholas é uma recordo às tropas nazistas de Marvel, o detalhe mais divertido é a utilização da Santa Teresa zumbi, em nossa realidade Franco utilizava o braço incorrupto desta santa para protegerse do diabo:

Fetiche franquista!

Wellington Srbek disse...

Uhn... não percebi este detalhe tétrico, amigo. É incrível como esses líderes fascistas (Hitler, Mussolini, Franco...) se prestavam a figurar em histórias grotescas. Todos tinham muito de ridículo e é assustador como conseguiram mobilizar tantos para colocar em prática seus planos de dominação e destruição.
Embora sua memória venha se apagando com o tempo, felizmente a Guerra Civil Espanhola ainda é lembrada como um episódio de luta da liberdade contra a opressão. Teremos sempre Guernica de Picasso para relembrar este momento, mas é bom ter-se quadrinhos como Rayos y Centellas que, de tempos em tempos, reavivem a memória coletiva.
Saludos y gracias!

David Muñoz disse...

Hola,

Soy David Muñoz, el guionista de Rayos y Centellas. Muchas gracias por tu reseña. Hace ilusión que después de tantos años alguien disfrute con tu trabajo, y que además hable de él de forma tan entusiasta.

Un abrazo,

David

Wellington Srbek disse...

Olá David,
Meu entusiasmo e os elogios são mais que merecidos! Teu trabalho em Rayos y Centellas é muito bom e criativo. Torço para que algum dia tenha uma edição brasileira e um novo capítulo publicado.
Saludos!