27/04/2010

Chega às livrarias uma ótima biografia em quadrinhos.


Embora predominem as produções mais comerciais, como as revistinhas infantis, as HQs de super-heróis e os mangás japoneses, é nas obras autorais que a arte dos quadrinhos mostra sua maior diversidade e qualidade. Publicadas na forma de álbuns ou livros, nas últimas décadas tiveram destaque obras que inauguraram ou estabeleceram novos gêneros, como no caso dos quadrinhos jornalísticos de Joe Sacco (Palestina, Área de Segurança Gorazde, etc.). Outra vertente ainda mais difundida é a das obras biográficas ou autobiográficas, como o importantíssimo Maus de Art Spiegelman e alguns dos trabalhos de Will Eisner (para ler resenhas sobre vários desses trabalhos, basta clicar no marcador abaixo). Chega agora ao mercado brasileiro, numa competente edição do selo Galera da editora Record, a biografia em quadrinhos de Kiki de Montparnasse, personagem marcante no circuito cultural da Paris dos anos 20 e 30.

Ganhador de importantes prêmios na Europa, Kiki de Montparnasse tem roteiro de José-Louis Bocquet e desenhos de Catel Muller. A edição soma mais de 300 páginas de quadrinhos, acompanhadas de uma cronologia da personagem e de biografias de importantes figuras presentes na história, além de uma bibliografia. Fica logo evidente, pelas seções de texto ao final e especialmente pela extensão da obra, que se trata de um trabalho que requereu dedicação e pesquisa. Ao mesmo tempo, o estilo cartunizado e a narrativa diversificada fazem da HQ uma leitura leve e envolvente. A história começa em 1901, no vilarejo francês de Châtillon-sur-Seine, com o nascimento de Kiki, ou melhor: de Alice Ernestine Prin (seu nome verdadeiro). Filha de uma tipógrafa com um homem casado, a menina cresceu sem a presença do pai. E quando sua mãe se muda para Paris, ela fica aos cuidados da avó e na companhia de vários primos órfãos.

Os autores aproveitam para estabelecer aí uma oposição entre a figura soturna do pai biológico de Alice e a presença carinhosa de seu padrinho, um contrabandista de bebidas apaixonado por sua mãe. Não muito interessada pela escola e preferindo furtar frutas dos quintais vizinhos, desde cedo a menina demonstrou uma inclinação por desafiar as normas e convenções. Assim, aos dez anos ela já tinha experimentado vinho (algo não muito incomum para crianças na época) e realizado sua primeira apresentação musical numa taverna do vilarejo. Contudo, desejando assegurar o futuro da filha, sua mãe lhe faz enviar a Paris, onde aos treze anos ela começa a trabalhar. Alice, porém, não permanece muito tempo nos empregos e, em 1916, um desentendimento com a mãe a leva a uma rotina de pobreza, fome, frio e troca de favores sexuais por dinheiro, cama ou comida. Mas isso é só o começo da história!

Com a chegada da década de 1920, novos ventos sopram na Europa e o clima de liberdade comportamental e experimentação artística terão em Alice, já apelidada como Kiki, uma de suas musas e personalidades femininas mais marcantes. Começam então a aparecer na história personagens como o pintor Amadeo Modigliani, o fotógrafo Man Ray, o dadaísta Tristan Tzara, o surrealista André Breton, o poeta Jean Cocteau e o gênio das artes Pablo Picasso. Modelo para pintores e fotógrafos, cantora e dançarina de cabaré, presença em filmes de arte, inspiração para diversas criações e até pintora, Kiki teve uma vida boêmia, passada em hotéis e pontuada de várias paixões e um grande amor. Contudo, após décadas de excessos, trocando a noite pelo dia, muito afeita ao álcool e viciada em cocaína, sua saúde começou a declinar. Assim, sua história de vida intensa chegou ao fim em 1953, num tom melancólico.

A obra de Bocquet e Catel apresenta a vida de Kiki sem julgamentos nem moralismos, com seus elementos de humor e de drama, seu brilho sedutor e sua dimensão autodestrutiva. Tratando-se de uma HQ para adultos, cenas de sexo e o uso de drogas dividem espaço com discussões estéticas e disputas artísticas. Apesar de dois ou três “pulos”, o roteiro inteligente trabalha bem o diálogo entre texto e imagem. Embora alguns quadros pudessem ser mais bem trabalhados, o desenho é expressivo e compõe um visual agradável. Usando uma narrativa que simula pinturas, fotografias, cartas e cenas de filmes, o álbum traduz um pouco da efervescência artística da época. Propondo-se a contar a história da “Rainha de Montparnasse”, roteirista e ilustradora debruçaram-se numa pesquisa bibliográfica e documental que originou uma ótima obra em quadrinhos, comprovando a adequação dessa linguagem artística ao gênero das biografias.

Num momento em que predominam no mercado as pirotecnias digitais e as tramas megalomaníacas, com inteligência e sensibilidade o premiado álbum de Bocquet e Catel nos mostra um outro caminho para a arte dos quadrinhos. Uma HQ recomendada para leitores e (especialmente) leitoras interessados em obras tematicamente adultas e visualmente poéticas, a edição brasileira de Kiki de Montparnasse tem 416 páginas no formato 17cm x 24cm, sendo vendida pelo preço de R$54,90. Vale muito conferir!

2 comentários:

Jaison disse...

Dadaismo e quadrinhos... uma mistura explosiva! heheh... Trabalhar com esses 'loucos revolucionários' do início do século passado é certamente um desafio, mesmo para artistas que podem se valer de um descomprometimento de padrões como os artistas dos quadrinhos.

Wellington Srbek disse...

Uma HQ dadaísta seria algo interessante... Nesse álbum europeu, o Dadaísmo entra como parte da história.
O Morrison na Patrulha do Destino inventou um grupo de vilões dadaístas.