27/02/2009

O estranho mundo de Grant.


Histórias inusitadas e absurdas, estreladas por personagens estranhos e bizarros foi a receita que levou o escocês Grant Morrison ao estrelato dos quadrinhos na segunda metade dos anos 80. Em seus principais trabalhos dessa fase, elementos incomuns e até metalinguísticos surgem a todo momento, questionando as barreiras entre a ilusão de realidade (que se tem durante a leitura de uma HQ) e a consciência de que o que se lê não passa de uma obra ficção. Somadas a isso, diversas referências artísticas e discussões de natureza metafísica fizeram das séries Zenith, Homem Animal e Patrulha do Destino obras revolucionárias dos quadrinhos de super-heróis. Mas a semente da revolução, na verdade, foi plantada no início da década de 1980, por outro renomado roteirista britânico.

Escrita pelo inglês Alan Moore e lançada em 1982 nas páginas da revista Warrior, a série Marvelman (Miracleman) foi a primeira recriação racionalista de um super-herói clássico. A qualidade e a repercussão desse trabalho acabaram influenciando outros autores britânicos e norte-americanos, o que originou todo um novo estilo de se escrever quadrinhos de super-heróis. À brilhante recriação de Marvelman feita por Moore, seguiriam-se outras ao longo dos anos 80 e especialmente após Crise nas Infinitas Terras (“maxissérie” cujo objetivo foi botar ordem na cronologia da DC Comics). Tendo estabelecido um novo marco zero para seus personagens, a editora norte-americana contratou quadrinistas de destaque para recriar seus principais heróis. Com o sucesso de Alan Moore (novamente ele!) à frente da revista do Monstro do Pântano, a editora enviou emissários à Grã-Bretanha, literalmente à caça de novos talentos (o que geraria a chamada “invasão britânica” da segunda metade dos anos 80).

Ao lado de nomes como Neil Gaiman e Jamie Delano, Grant Morrison foi um dos escolhidos pela DC para escrever a reformulação de um de seus personagens. Morrison havia começado sua carreira no final dos anos 70, publicando séries e HQs curtas em revistas alternativas. Seu primeiro trabalho de destaque poderia ter sido The Liberators para a Warrior, mas a revista do editor Dez Skinn foi cancelada em 1985, na edição de estréia do roteirista escocês. No ano seguinte, Morrison conseguiu seus primeiros trabalhos curtos para a Doctor Who e a 2000 AD. Nas páginas desta última, ele lançaria em 1987 Zenith, uma série diretamente influenciada pelo racionalismo do Marvelman de Alan Moore (sim, mais uma vez ele!) e que trazia elementos absolutamente similares, tais como super-heróis tratados como "mostros" ou "tigres", criados por um vilão cientista com a participação de entidades alienígenas.

Contudo, em seu primeiro trabalho com super-heróis, Morrison já mostrava os traços de sua personalidade. Um cantor de rock com superpoderes, Zenith se revela um anti-herói egoísta e desinteressado em qualquer questão mais nobre ou grandiosa do que alcançar o estrelato. Uma visão cínica e absolutamente contemporânea dos super-heróis, o personagem serve na verdade de pretexto para Morrison apresentar uma história que lida com temas como a relação entre caos e ordem, ou o questionamento do que é a realidade. Tais temas tornariam-se recorrentes no trabalho do roteirista, que então mostrava alienígenas inspirados nos textos de H. P. Lovecraft para propor uma discussão metafísica sobre os fundamentos do universo em que vivemos. Tendo uma boa repercussão, a primeira das quatro “Fases” de Zenith (todas lançadas no Brasil pela Pandora) abriria para Morrison as portas do mercado norte-americano, no qual ele estrearia em 1988 com a série Homem Animal.

Como o próprio Morrison admitiu, nas quatro primeiras histórias de seu Homem Animal (publicado no Brasil a partir de 1990 na revista DC 2000), ele estava inegavelmente imitando Alan Moore (eh, de novo!). Mas, como os editores da DC haviam gostado de seu trabalho e pedido para expandir a série, ele se encontrou diante de um dilema, pois não queria e não se sentia confortável em continuar sendo um clone de outro autor, ao mesmo tempo em que não tinha idéia de o que fazer numa revista mensal. A resposta e a solução vieram com “O Evangelho do Coiote”, uma das mais inspiradas e originais HQs de super-heróis já escritas e sem dúvida um dos melhores e mais importantes trabalhos de Morrison. Lançada na quinta edição da Animal Man, a história mostra o encontro do personagem-título com um similar do coiote dos desenhos animados da Warner, numa narrativa repleta de metalinguagem e elementos da simbologia cristã (um belo resumo disso é a fantástica capa desenhada por Brian Bolland, que ilustra esta postagem).

Tornando mais difusas as barreiras entre realidade e ficção, “O Evangelho do Coiote” traçou o rumo que a série tomaria, que incluía a tentativa de resgate do clima mais leve e humorado das revistas da DC dos anos 60. Afinal, a partir da publicação de O Cavaleiro das Trevas e Watchmen em 1986, grande parte dos roteiristas de quadrinhos tentou imprimir um maior realismo aos super-heróis, levando os dilemas, as contradições e a violência do mundo real para as HQs. Esta tendência não agradava a Morrison, que respondeu através de uma inteligente tensão entre mundo real e mundo ficcional. Mesmo que o roteirista jamais tenha lido Isto não é um cachimbo de Michel Foucault, a influência de um pensamento pós-estruturalista é evidente nas histórias do Homem Animal. Nelas, Morrison mostra a tradicional busca do personagem pela compreensão de seus poderes (a capacidade de assumir as habilidades de qualquer animal), além de engajá-lo na luta pelos direitos dos animais (o próprio autor era vegetariano na época). Mas a verdadeira razão de ser da série é a construção de uma grande narrativa metaficcional.

Depois de se encontrar com o coiote Astuto, de se envolver em discussões sobre “a continuidade” com personagens saídos do "Limbo dos Quadrinhos", de ultrapassar os limites da página e de se dirigir ao leitor e dizer: “Eu posso ver você!”, o Homem Animal acaba encontrando-se com o “Criador” (de suas histórias). Ao longo da série, o encontro criador / criatura foi sendo preparado por Morrison, e o resultado é um sincero diálogo a respeito do sentido da vida. Embora a metalinguagem já não fosse então uma novidade nos quadrinhos, a série escrita por Morrison foi a primeira a levar às últimas consequências a situação de um super-herói ter “consciência” de que não passa de um personagem criado para entreter um público com um sádico desejo por violência (que somos nós, leitores). Sem dúvida, Homem Animal é uma obra inovadora e inspirada, que não perdeu sua força passados vinte anos, merecendo ser lida e relida.

Antes mesmo de concluir seu trabalho com o Homem Animal, Morrison recebeu da DC o convite para assumir a revista Doom Patrol (a Patrulha do Destino, que teve as primeiras HQs dessa fase lançadas no Brasil pela Metal Pesado, nos anos 90). O resultado foi uma das mais estranhas, originais e absurdas séries já publicadas no mercado norte-americano, algo mais próximo do nonsense de Alice no País das Maravilhas do que do clima de ação dos quadrinhos de super-heróis. Um cérebro numa caixa de metal que discute filosofia cartesiana com um gorila falante; um halterofilista usando uma tanguinha de leopardo que ao flexionar seus músculos é capaz de mudar o mundo ao redor por telepatia; uma garota-macaco que além de ser atormentada pelos dilemas da puberdade é assombrada pelos fantasmas psíquicos que cria; vilões que formam grupos chamados a “Irmandade do Dada” ou o “Culto do Livro Não-Escrito”; uma história chamada ”A Pintura que comeu Paris”: estes são apenas alguns exemplos das “esquisitices” de Morrison, que parece não levar nada a sério. Mas isso é o que ele quer que nós pensemos!

Através de uma atmosfera surrealista, em seus roteiros Morrison discute princípios religiosos, a falência da razão, a linguagem das artes-plásticas, a autonomia das realidades discursivas, além de criticar a censura e tratar de temas-tabu como a violência sexual contra a mulher. Sem dúvida um trabalho riquíssimo e original, por vezes um pouco hermético, mas sempre honesto com sua proposta de pôr em questão a relação entre realidade e ficção, o conflito entre ordem e caos (que parecem reflexos da própria vida do autor na época). Os temas de seus trabalhos iniciais para a DC voltaram a ser vistos em trabalhos menos extensos como as graphic novels Asilo Arkham e Mystery Play, os especiais Batman: Gothic e Sebastian O e as minisséries Kid Eternity e Flex Mentalo. O trabalho de Morrison em Homem Animal e Patrulha do Destino seria um dos fundamentos do selo Vertigo, para o qual ele escreveria as séries The Invisibles e The Filth.

Um mago praticante, Grant Morrison tornou-se um dos grandes nomes dos quadrinhos norte-americanos, tendo em seu currículo fases bem-sucedidas à frente dos dois principais grupos de super-heróis: a Liga da Justiça da DC e os X-Men da Marvel. Com um trabalho tão provocativo, não faltaram é claro algumas polêmicas ao longo dos anos, incluindo ofensas trocadas com Alan Moore (envolvendo de um lado Watchmen e do outro Asilo Arkham). O fato, porém, é que as carreiras destes dois brilhantes magos-escritores estarão sempre ligadas, pelas reações que o trabalho de um gerou no do outro, bem como pelos vários paralelismos que podemos traçar (por exemplo entre a Linha ABC e os Sete Soldados ou entre Supermo e All Star Superman). Mas se ambos contribuíram fundamentalmente para os quadrinhos e a cultura Ocidental é porque, mesmo trilhando caminhos paralelos, cada um buscou sua própria história. E se Moore "se aposentou" dos quadrinhos das grandes editoras, por sua vez Morrison assumiu o papel de principal roteirista, desenvolvendo maxisséries como 52 e séries especiais para medalhões como Super-Homem e Batman.

Nos dois casos, no entanto, a contribuição mais decisiva e os trabalhos mais revolucionários foram as séries produzidas nos anos 80. Num momento em que Alan Moore lançou a recriação racionalista dos super-heróis, levada às últimas consequências por Grant Morrison, e que os quadrinhos "realistas" e violentos nascidos das obras do roteirista inglês foram criticados criativamente pelas obras de seu colega escocês. No fim, com toda a vaidade pessoal e a rivalidade criativa, quem saiu ganhando foi o leitor, que pôde acompanhar alguns dos melhores quadrinhos produzidos nas últimas décadas!

8 comentários:

Anônimo disse...

Sou fã do Alan Moore, e nao gosto muito do trabalho do Morison, mas seu texto esta muito bom.

Wellington Srbek disse...

Olá Leandro,
Também tenho uma preferência pelo trabalho de Alan Moore (Swamp Thing e Miracleman são meus quadrinhos preferidos). Mas gosto muito do trabalho de Morrison, especialmente Animal Man que é brilhante.
Grande abraço!
W.S.

Anônimo disse...

Acho que Alan Moore ganha pelo fato de Grant Morrison ser um tanto inconstante em seus trabalhos. Vide Vimanarama e Seaguy e o fim de sua fase em New X-Men, por exemplo.
E acho que já passou da hora de alguma editora publicar Miracleman por aqui!
Abraço!

Doutor Radioativo disse...

Caraca, que texto incrivel!
Muito legal...sou muito fã dos dois escritores, mas devo dizer que prefiro Moore, exatamente pela incontância de Moorrison...mas Grant não deixa de forma alguma de ser ums dos enios das Hqs de todos os tempos.


Só pra responder o colega Do Vale, é impossivel publicarem mMiracleman , tanto no Brasil quanto nos States, pq os direitos da série estão sendo disputados na Justiça por Neil Gaiman e Todd Mc Farlane, infelizmente.


A quem interessar, estou trabalhando em uma "biografia" de Alan moore no blog do qual participo.

http://radioativoblog.blogspot.com/2009/02/alan-moore-parte-1-uma-vida.html

Wellington Srbek disse...

Na verdade, Do Vale, o primeiro livro de Miracleman e alguns capítulos do segundo foram publicados no Brasil no início dos anos 90 por uma editora pequena (foi assim que li pela primeira vez). O trabalho não foi muito profissional, mas essas edições ainda podem ser encontradas em sebos.
Grande abraço!

Wellington Srbek disse...

Olá Doutor Radiotivo (nome legal, mas é bom manter distância de alguém com seus superpoderes!).
Muito bom que tenha gostado do texto! Também deverei publicar uma biografia do Moore aqui no blog, como fiz com Miller, Tezuka, Kirby, Moebius, Colin...
Sobre a questão do Miracleman (que será tema de um texto meu em breve) já tivemos uma discussão sobre o assunto numa antiga postagem aqui. Mas até onde sei, atualmente o problema não é mais a disputa entre Gaiman (que herdou parte dos direitos quando passou a escrever a série) e McFarlane (que teria supostamente adquirido direitos sobre o personagem após comprar a Eclipse, que o editou nos EUA). A pendenga entre Gaiman e McFarlane já teria chegado a um acordo judicial, mas aí parece que descobriram que o editor Dez Skinn não teria pago nada ao Mike Anglo (criador do personagem) pelos direitos de usar o Miracleman em 1982, e então isso teria gerado um novo entrave judicial.
Assim, para ler Miracleman, o garantido mesmo é conseguir as edições originais da Eclipse, pois pode demorar muito para uma reedição acontecer.
Abraço!

Anônimo disse...

Gosto muito dos dois. Eles enchem os roteiros de referências mil, muito estilo e muitas outras "traquinadas". Não escrevem qualquer porcaria. E Homem Animal é uma de minhas séries mais queridas. Uma história que faz parte de minha história, hê!

Excelente texto, wellington!

Aliás, coimo sempre!

Abraço!

Wellington Srbek disse...

Valeu, Anderson! Deu um trabalhinho mas acho que compensou, pois todos parecem estar gostando.
Aliás, meus últimos e-mails de divulgação do blog retornaram do seu endereço. Você trocou de e-mail?
Grande abraço!
W.S.