10/05/2008

Definindo os quadrinhos!


Esta postagem é especial. O motivo é que, com ela, este blog chega à sua centésima postagem. Quero aproveitar para agradecer a todos que visitaram, comentaram e divulgaram este espaço, ajudando a dar sentido à minha iniciativa. Nesta postagem especial, publico um texto que escrevi há alguns anos com o objetivo de dar uma apresentação menos acadêmica ao pensamento que construí sobre a arte dos quadrinhos (para quem se interessar, este e outros artigos foram publicados pela editora Marca de Fantasia no livro Quadrinhos & outros bichos). A imagem acima é a capa da Heróis da TV n°91, revista com a qual iniciei minha coleção de quadrinhos há mais de vinte anos. Foi ela que despertou minha paixão por essa fascinante forma de arte e entretenimento, sendo portanto ideal para ilustrar um texto intitulado:

A apaixonante arte dos quadrinhos.

Desenhos e mais desenhos que se sucedem formando uma sequência narrativa, contando uma história que se lê aos saltos, de quadro em quadro, de página a página, até o FIM. Heróis, vilões, meninos, meninas, animais falantes, monstros alienígenas, seres de faz-de-conta e gente como a gente... A galeria dos personagens dos quadrinhos pode ser interminável. Infinita, aliás, como a diversidade de recursos e as possibilidades expressivas dessa forma de comunicação e linguagem artística.

Um pouco de história...

Há dezenas de milhares de anos, os seres humanos utilizam sequências de imagens para contar histórias. Das paredes pré-históricas, passando pelos templos do Egito, até os livros ilustrados da Europa medieval, diversos povos utilizaram técnicas de desenho e pintura, associadas a símbolos gráficos variados para retratar e registrar aspectos de sua existência. Mas as pinturas rupestres, os hieróglifos antigos ou as iluminuras medievais NÃO são histórias em quadrinhos. Os quadrinhos são uma forma de narrativa visual moderna, associada à imprensa. Inventados na Europa, eles são resultado de séculos de experimentação artística, levada a cabo por ilustradores e caricaturistas.

Foi em 1827 que o professor e desenhista suíço Rodolphe Töpffer reuniu numa obra ficcional, pela primeira vez, os elementos fundamentais que constituem a linguagem dos quadrinhos. Tendo consciência de estar lidando com uma nova forma de arte, em suas “histórias em estampas” Töpffer apresentava, além do grafismo sintético, a narrativa sequencial através de quadros e a integração visual entre desenho e texto, que são as características definidoras dos quadrinhos. Por influência ou não de Töpffer, nas décadas que se seguiram, vários outros autores, de diversos países, produziram histórias em quadrinhos trazendo contribuições e inovações que deram origem a uma forma de arte diversificada e fascinante.

No Brasil, os quadrinhos surgiram na segunda metade do século XIX, ligados à caricatura, no espaço diversificado dos jornais ilustrados. O principal nome dessa época é Angelo Agostini, um talentoso piemontês naturalizado brasileiro, criador do personagem Nhô Quim. Mas foi mesmo no século XX que os quadrinhos se desenvolveram como produto cultural em nosso país. Com o lançamento, em 1905, da revista infantil O Tico-Tico teve início uma rica história de publicação e leitura de quadrinhos. E contando com o talento de alguns de nossos maiores artistas gráficos, como J. Carlos, as primeiras décadas dos quadrinhos no Brasil tiveram a marca da qualidade artística e da ambientação nacional.

Porém, a partir dos anos 40 passou a predominar a publicação de quadrinhos norte-americanos, em seções de tirinhas e suplementos infanto-juvenis encartados em jornais de grande circulação. O mais conhecido deles foi O Gibi, cujo nome acabou tornando-se sinônimo para “revista em quadrinhos”. Embora as aventuras de clássicos das HQs (como Tarzan, Flash Gordon, Príncipe Valente ou Mandrake) tenham povoado a imaginação e cativado uma geração de leitores, sua publicação predominante no Brasil acabou por substituir quase totalmente a produção nacional.

Com isso, os quadrinistas brasileiros só retomariam um espaço significativo no mercado nacional na virada para a década de 1960, com série como As aventuras do Anjo de Flavio Colin (adaptação de um sucesso da Rádio Nacional) e especialmente Pererê de Ziraldo (com personagens inspirados nos ambientes naturais e na cultura popular brasileira). Ainda nesse período, teriam enorme sucesso os quadrinhos de terror produzidos por autores como Julio Shimamoto, Jayme Cortez e Eugênio Colonnese, sem falar no surgimento da Turma da Mônica de Maurício de Sousa, que iniciava uma carreira de desenhista que o levaria a ser o mais bem-sucedido empresário dos quadrinhos no país.

Com muitos altos e baixos mercadológicos, a produção brasileira de caráter autoral contou nos anos 70 com a genialidade de Henfil na revista Fradim, além do surgimento de diversas edições alternativas em que apareciam os trabalhos de artistas como Jô Oliveira, Luiz Gê, Nilson, Lor, Edgar Vasques, entre outros. Já nos anos 80, enquanto Mozart Couto e Watson Portela nacionalizavam os quadrinhos de ficção & fantasia, o grande destaque editorial era o sucesso do gênero “udigrudi” da editora Circo, com Angeli, Laerte & Cia. Desde a década de 1990, porém, nossas HQs têm sobrevivido quase exclusivamente graças às edições independentes e às pequenas e médias editoras, pelas quais ficamos conhecendo o trabalho de quadrinistas como Lourenço Mutarelli e Marcelo Lelis.

Mas se tem faltado espaço para os quadrinistas brasileiros, sobra qualidade e originalidade para seus trabalhos, que estão entre os melhores produzidos no mundo (fato insistentemente ignorado pela maioria dos editores nacionais).

...e mais quadrinhos.

O que chamamos de linguagem dos quadrinhos apresenta-se em duas estruturas comunicativas distintas: as tiras e as histórias em quadrinhos propriamente ditas. Tratemos rapidamente das especificidades de cada uma.

Surgida nos jornais, tradicionalmente a tira segue o padrão de uma sequência narrativa em quadros dispostos na horizontal, embora existam tirinhas com apenas um ou dois quadros. Estrutura comunicativa extremamente concisa, uma única tira, em seu restrito espaço físico, pode nos fazer “morrer de rir” ou até “questionar o sentido da vida”, dependendo, é claro, do talento e da intenção do autor, além de nossa disposição em fazer o jogo comunicativo da leitura. A maioria das tiras enquadra-se no gênero humorístico, mas muitas utilizam o riso para propor questões sociais, políticas e humanas. O estilo de desenho predominante é o “cartum”, de formas sintéticas e arredondadas, com traços marcados; mas também existem tirinhas em estilo “acadêmico”, que segue proporções mais naturalistas. História que se conta de uma vez só, na velocidade – ZAZ! – de uma tirinha, ironicamente as séries de tiras tendem a durar anos ou até décadas, enquanto o público e autor mantiverem a paixão por seus personagens.

Já as histórias em quadrinhos são estruturas comunicativas organizadas na forma de uma ou mais páginas, sendo a página a unidade básica de leitura (jamais lemos “meia página” de quadrinhos). Todos os elementos que constituem a página (número, formato e distribuição dos quadros, estilo de desenho, imagens em cor ou em preto & branco, presença ou não de texto escrito) influenciam a mensagem produzida pelo leitor durante a leitura. Uma história em quadrinhos pode ter desde umas poucas páginas até dezenas de capítulos, pode vir numa única folha de papel ou em coleções com vários volumes. Os formatos das edições (horizontais, verticais, grandes, pequenos) variam de acordo com padrões gráficos e mercadológicos (revistas, gibizinhos, álbuns, livros). Já a temática e o estilo das histórias em quadrinhos variam de acordo com o gênero (faroeste, infantil, terror, super-heróis, etc.) e a intenção criativa de seus autores, que no caso do quadrinho-arte têm um maior controle sobre a produção das obras.

Como vimos, a linguagem dos quadrinhos baseia-se numa sequência narrativa visual, em que imagens e texto interagem no espaço integrado da tira ou da página. Os estilos de desenho variam do mais estilizado ou sintético ao mais rebuscado ou padronizado, do cartum ao acadêmico, passando pelo caricatural e incorporando os mais diversos traços pessoais. As técnicas vão da tradicional pena metálica com tinta nanquim sobre papel, passando pelas técnicas de pintura, até as inovadoras tecnologias de composição e colorização por computador. O texto nos quadrinhos, além das palavras escritas, inclui o enredo narrado, variando de gênero para gênero, de autor para autor, de história para história. Os próprios textos escritos (legendas, balões e onomatopéias) são parte do visual dos quadrinhos, podendo os autores explorar este fato como um elemento narrativo. Afinal, a fusão de texto e imagem constitui a narrativa em quadrinhos, o elemento que torna essa arte única, e através do qual os autores podem sugerir o “clima” (de suspense, ação, sátira, sedução, etc.) que querem imprimir à leitura de sua história. Resumindo, o conjunto formado pelo texto, o estilo de desenho, as técnicas empregadas e o ritmo narrativo sugerido constitui a obra em quadrinhos criada por um autor e sempre recriada por um leitor, a cada nova leitura.

Se a qualidade artística e as possibilidades educativas das tiras e histórias em quadrinhos já começaram a ser descobertas pelas instituições acadêmicas e escolares, por outro lado, os quadrinhos ainda são vistos por grande parte das pessoas simplesmente como uma forma de diversão rápida. De fato, a maioria das HQs e tirinhas oferecidas ao público pelos veículos da “indústria cultural” não passa de simples produtos comerciais, com padrões estereotipados de texto e desenho, voltados a um consumo rápido. Logo, se o leitor busca uma distração despreocupada, as coloridas revistinhas com as aventuras de seu personagem favorito são o bastante.

Mas nunca é demais lembrar que nossos momentos livres das ocupações e do trabalho, os momentos que podemos dedicar a nós mesmos e ao que mais gostamos de fazer, também podem ser vividos com atividades que possibilitem nosso desenvolvimento como seres humanos. Escutar um bom disco, e não apenas os sucessos do rádio, praticar atividades físicas, e não apenas se sentar à frente da tevê, são escolhas que estão a nosso alcance. Neste sentido, em se tratando dos quadrinhos, no lugar dos heróis anabolizados e bichinhos engraçadinhos de sempre, podemos optar por aquela outra parte da produção quadrinística: as obras com qualidade artística e valor cultural, o quadrinho-arte.

O que chamo de quadrinho-arte é mais comumente veiculado na forma de revistas especiais, álbuns e livros, vendidos em livrarias e agências de revista, e também encontrados em gibitecas e bibliotecas com seções dedicadas aos quadrinhos. É claro que nenhuma listagem seria capaz de relacionar todos os quadrinhos de qualidade artística e valor cultural, não apenas pela multiplicidade de títulos existentes, mas principalmente pelo fato de que eleger o que é “bom”, em termos de qualidade estética, depende de diferentes gostos e formações pessoais, bem como de diferentes contextos sociais e históricos. Assim, em se tratando dos quadrinhos, o leitor tem muito a ganhar se buscar conhecer a produção em geral, ao invés de simplesmente agarrar-se à primeira opção alardeada pela mídia. Mesmo porque, grande parte de nossa aventura com os quadrinhos, grande parte do prazer envolvido em sua leitura, está na descoberta de novos títulos e personagens, com histórias e estilos até então desconhecidos por nós. E isto pode ser uma verdadeira “caça ao tesouro”.

Outra opção que pode ser muito prazerosa é a criação de histórias em quadrinhos ou tirinhas por quem antes só as lia (os quadrinistas profissionais em geral começaram como leitores de quadrinhos, mas também como desenhistas amadores). Além de produto cultural, os quadrinhos são uma forma de comunicação que pode servir à livre expressão de sentimentos e pensamentos. Imaginar e desenhar uma história em quadrinhos pode ser, para crianças e adultos, uma atividade muito lúdica. Criar personagens e dar-lhes vida na sequência de quadros de uma tirinha pode ser um meio criativo de se comunicar com o mundo. Num país tão rico em talentos, os artistas de amanhã podem estar apenas aguardando um incentivo; apenas esperando que alguém lhes dê um lápis e uma folha de papel para começarem a desenhar em quadrinhos.

Enfim, o mundo dos quadrinhos é diverso e variado, dando-nos uma infinidade de opções de leitura. Além disso, a própria linguagem dos quadrinhos é um riquíssimo repertório comunicativo e expressivo, à disposição de qualquer pessoa (mesmo das que pensam que “não sabem desenhar”). O fato é que lendo ou criando quadrinhos, esta forma de arte tem sido, nos últimos 181 anos, uma atividade apaixonante para milhões de pessoas, em todo o mundo industrializado. E se foram nascidos das técnicas modernas de impressão, os quadrinhos parecem ter ainda muito fôlego para atravessar os oceanos de informação, signos e códigos virtuais do século XXI.
FIM.

6 comentários:

Ismael disse...

Felicidades (e sorte)!
Agradou-me esta denominação do quadrinho-arte e 'a busca do tesouro'.Inclusive, sento que deveria desenhar uma história em quadrinhos.

Nuno Amado disse...

Boa! Eu tb passei há pouco tempo pelo meu centésimo post há pouco tempo !

Wellington Srbek disse...

Olá Ismael,
Obrigado pelos votos! Já que gostaste do termo quadrinho-arte, encontrarás todo um capítulo dedicado a definir este conceito no livro "Um Mundo em Quadrinhos", que estas a comprar.
Na verdade, amigo, minha história com os quadrinhos começou em 1986 quando escrevi e DESENHEI minha primeira HQ ("X - A Batalha Final"). Eu desenhei mais algumas depois, mas com o tempo (ou falta de tempo) acabei me especializando em editar e escrever quadrinhos. Eu ainda desenho todos os meus roteiros (como você pode ver no saite Mais Quadrinhos) e de tempos em tempos me pego pensando em voltar a desenhar as HQs. Quem sabe algum dia...
Grande abraço!

Wellington Srbek disse...

Olá Bongop, parabéns a você também então e continue acompanhando o blog, pois terei algumas postagens especiais esta semana.
Abraço!

Anônimo disse...

Parabéns pelos 100 posts, seu blog é muito interessante para quem curte quadrinhos, que venha o 200!

Wellington Srbek disse...

Farei o possível para chegar lá!