Julio Shimamoto é um dos artistas mais importantes dos quadrinhos brasileiros, além de ser uma das pessoais mais cordiais e gentis que conheço. Esse talentoso artista já somou cinquenta anos de carreira nos quadrinhos, tendo participado de alguns dos momentos mais significativos de nossas HQs. Mestre Shima completa sessenta e nove anos hoje, e para marcar a data fizemos uma entrevista em que ele nos fala de alguns dos episódios mais marcantes de sua trajetória.
Sua carreira profissional nos quadrinhos começou em 1957 ou 1958, certo? Como foram aqueles primeiros dias?
Na verdade iniciei minha carreira em 1957. Eu tinha me demitido do dpto. de promoção da multinacional Sears & Roebuck, loja de departamentos. Embora fosse contratado como desenhista, incumbiam-me com frequência tarefas de office-boy, restando-me pouco tempo como desenhista. Fiquei 2 meses procurando novo emprego, sem sucesso. Decidi tentar quadrinhos, e fui procurar Miguel Falcone Penteado, de quem fui grande admirador quando ilustrava capas de gibis da Ed. La Selva, juntamente com Jayme Cortez. Miguel estava dirigindo a Gráfica Editora Novo Mundo, no bairro do Brás (SP). Mostrei-lhe um projeto pronto intitulado "A conquista do Acre", narrando a saga de Plácido de Castro, mas Miguel reprovou os desenhos (por insuficiência técnica) e o roteiro (por tratar os bolivianos de forma discriminatória e pejorativa). Percebendo meu ar de decepção, insistiu-me para que não desistisse e que voltasse com novos trabalhos para sua avaliação. Cheio de esperança retornei no mês seguinte, e ele disse que eu tinha progredido muito. Encomendou-me um projeto para ocupar o espaço da série Acredite se quiser, de Ripley, que saía na 3ª capa de suas revistas. Senti um frio na barriga, mas topei o desafio, e me dei bem. Pouco tempo depois encomendou-me uma HQ de terror, e estreei no gênero com "Satanasia, a mulher do Diabo". Apresentou-me ao Cortez, na época diretor artístico da Ed. La Selva, e em pouco tempo comecei a desenhar para as revistas infantis Fusarca e Torresmo e Arrelia e Pimentinha, palhaços que atuavam na tevê.
Miguel Penteado foi um nome importante no fortalecimento de uma produção brasileira de quadrinhos no fim dos anos 50, através da pioneira Outubro. Qual a importância dessa editora para os quadrinhos brasileiros?
Miguel convidou 4 amigos, Jayme Cortez, Helí Lacerda, Cláudio de Souza e José Sidekerskis para juntarem recursos e talentos para fundarem a Ed. Continental (logo depois rebatizada de Outubro, mês da inauguração), voltada somente para o quadrinho nacional. Mas quadrinistas estrangeiros radicados no país podiam colaborar. Além do português Cortez, tinha o talentoso italiano Nico Rosso. Com exceção de Queiroz, Colin, Gedeonne, Gutenberg, Manoel Ferreira, Itagiba e Sérgio Lima, a maioria era jovens iniciantes como eu: Saidenberg, Aragão, Igayara, Maurício, Isomar, Dag Lemos, Bortolassi, Aylton Thomás, Webster, Juarez Odilon, Getúlio Delphin e tantos outros dos quais não recordo. Os roteiristas mais assíduos eram Hélio Porto, Cláudio de Souza, Pergentino e Costa Cotrin. Publicavam-se revistas infantis, juvenis, femininas (historinhas de amor), de terror, clássicos de terror, faroeste (Colin desenhou Shane e eu Matar ou Morrer). A Outubro cresceu rapidamente impulsionada por ótimas vendas. Chegaram a lançar mensalmente 4 títulos de terror. A Ed. La Selva também ia bem, e cheguei a colaborar para lá também. Essas 2 editoras entrincheiradas no Brás e na Mooca, antigo reduto de imigrantes italianos, começaram a incomodar as grandes e tradicionais editoras do eixo Rio-S.Paulo, tanto que se uniram no propósito criarem o selo "Aprovado pelo Código de Ética", como atestado de qualidade de suas revistas. A intenção era para incitar os pais a boicotarem revistas que não estampassem o selo.
Devo dizer que fiquei muito surpreso quando descobri que o senhor tinha sido o desenhista da HQ de estréia do Capitão 7 em 1959. Conte-nos, por favor, como o amigo acabou sendo o desenhista na primeira história em quadrinhos de super-heróis do Brasil.
O Capitão 7 era série infantil de tevê do Canal 7 de Televisão, interpretava o herói o lutador de catch Ayres Campos, muito popular entre a gurizada. Cortez me convidou para tocar a quadrinização do personagem que seria roteirizado por Cláudio de Souza, mas não me empolguei. Topei quando me garantiu que eu só faria o número inaugural, para outro desenhista continuar. Eu preferia continuar com "terror", por ter mais flexibilidade de me aprimorar e desenvolver meu aprendizado em desenho e técnica de roteiro. Nesse período devorei compulsivamente quase todos os clássicos da literatura gótica e fantástica.
No começo dos anos 60, tivemos algumas iniciativas de valorização da produção brasileira, como o movimento pela nacionalização das histórias em quadrinhos e a experiência da cooperativa gaúcha CETPA. Por que essas iniciativas não deram certo? Algo a ver com o Golpe Militar de 1964 e interesses econômicos menos nacionalistas?
O movimento pela valorização da produção brasileira nos inícios dos anos 60 deve-se à conjunção de fatores político, cultural e esportivo que o país respirava, sob influência do nacionalismo getulista somado ao desenvolvimentismo juscelinista. Era um período triunfalista para os brasileiros, transbordando auto-estima. Por 1 polegada Marta Rocha deixou de ser Miss Universo; a construção de Brasília pelos geniais Lúcio Costa e Oscar Niemeyer; a implantação da indústria automobilística: Eder Jofre campeão mundial dos galos; Brasil campeão de 2 copas mundiais ; a Bossa Nova e o Cinema Novo conquistam aplausos e prêmios internacionais; na salto-triplo Ademar Ferreira é ouro olímpico; campeã várias vezes em Winbledon e Grand Slam, Maria Esther Bueno (589 títulos internacionais) é considerada a maior tenista de todos os tempos! Em 1961, o mundo está dividido pela guerra-fria entre blocos Leste / Oeste. Pregando neutralidade, elege-se presidente Jânio Quadros, com votos da esquerda e da direita. Surpreendentemente foi ele o primeiro presidente apoiar o movimento pela nacionalização dos quadrinhos. Mas, sob pressão oculta dos militares, ele acaba renunciando, cedendo a vez para seu vice Jango Goulart assumir sua vaga. E este continua a linha política do antecessor... No Rio Grande do Sul, o governador é seu cunhado Leonel Brizola, que decidiu apoiar a implantação de núcleo de produção de quadrinhos com temas brasileiros, a CETPA (Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre). A presidência ficou com o ex-quadrinista carioca José Geraldo Batista. As oportunidades foram franqueadas também para desenhistas de outros estados. Eu desenhei a História do R. G. do Sul, Luís Saidenberg a História do Cooperativismo, Flavio Colin desenhou a saga do líder guarani Sepé Tiarajú, e Getúlio Delphin quadrinizou as aventuras dos Abas Largas, como são conhecidas as polícias montadas das fronteiras gaúchas. Fortunato desenhou uma fábula sobre conflitos sociais. Canini fez sátira contra super-heróis. Bendatti, criou Lupinha, um detetive trapalhão. Flavio desenhou o personagem infantil Piazito, um indinho. Houve outros projetos, mas não cheguei a conhecer. Testemunhei alguns problemas muito comuns hoje em dia, como a incorporação de apadrinhados políticos no núcleo da CETPA, pessoas com conhecimento zero sobre quadrinhos mas ávidos para pegar carona no movimento, visando prestígio ou alguma vantagem material. Apesar disso não vacilo em afirmar que o Golpe Militar foi responsável pelo fracasso do movimento pela nacionalização dos quadrinhos, que foi confundido com movimento político de esquerda.
Nos anos 70, o senhor trabalhou em HQs eróticas para a Grafipar, faroestes para a Vecchi e na série A Múmia para a Bloch. Se comparados a projetos mais autorais como O Gaúcho, aqueles foram trabalhos mais comerciais. Mas talvez o que falte aos quadrinistas brasileiros hoje seja exatamente editores interessados em investir em revistas comerciais que propiciem trabalho regular. O senhor concorda?
Muito interessante a sua colocação, mas uma observação isenta revela uma evidência crônica: por exemplo, as editoras de livros preferem investir em títulos de autores estrangeiros consagrados, do que apostar num autor local, salvo raras exceções. Essa fórmula é adotada também no setor dos quadrinhos - basta uma simples olhada nas estantes de nossas gibiterias, lotadas de publicações americanas, européias e asiáticas (sobretudo japonesas). Basta lembrar que Outubro só deu certo porque ocupou o espaço do gênero "terror" que o macartismo proibiu nos EUA. A Ed. Bloch chamou-me para desenhar A Múmia devido a Marvel ter cancelado a série quando começou a dar prejuízo. Walmir, Adauto e eu desenhamos Fantasma para a Rio Gráfica pelo mesmo motivo... a King aposentou seu desgastado personagem. Quando cancelarem o Homem-Aranha, com certeza vão procurar alguém para continuá-lo aqui no Brasil. Excetuando Maurício, Ziraldo e os quadrinistas que produzem super-heróis para o exterior, a maioria se abriga nos fanzines e nas chamadas "independentes" ou "alternativas", publicações de escassas tiragens, produzindo HQs autorais com temáticas existenciais ou sociais. Eu próprio estou nessa atualmente, apenas para manter a prática e a auto-estima, fingindo ignorar meu bolso vazio. Heroicamente teimosos como você Srbek, Salles, Arthur Filho, Leonardo Melo, Henrique Magalhães, Leonardo Santana, e muitos outros, estão lutando para romper a camisa-de-força que amesquinha espaço para criadores locais.
Tendo participado de importantes momentos e movimentos nos últimos 50 anos, em sua opinião por que não temos hoje revistas brasileiras importantes como Spektro, Calafrio e Mestres do Terror?
Porque o mundo mudou, e está cada vez mais acelerado, abreviando o tempo de validade das coisas classificadas como lúdicas e supérfluas. O quadrinho infelizmente é um item vulnerável, descartável. Um exemplo: sou pai de 4 filhos, mas nenhum lê história em quadrinhos (muito menos os meus). Em contrapartida, também não gosto de muitas coisas que eles lêem, som que ouvem, ou filmes que assistem. Voltando ao assunto, sem ironia, eu creio que há mais gente querendo fazer quadrinhos do que leitores.
Nas últimas décadas, percebemos nos seus trabalhos cada vez mais experimentações com diferentes técnicas, ao lado de um interesse por temas tradicionais. O que define o caminho e as buscas artísticas do mestre Shima?
Por também ter trabalhado muito com publicidade, adquiri síndrome de inovação. Sem essa compulsão não se sobrevive nessa atividade nem 2 semanas. Quando retornei para os quadrinhos trouxe junto essa neurose. Sabia que o grande e saudoso mestre Flavio Colin trabalhou mais tempo do que eu na publicidade? Ele burilou seu inimitável e extraordinário estilo nas pranchetas das grandes e melhores agências do Rio. Para mim, embora o quadrinho nunca tenha significado um meio confiável de sustento, sempre me proporcionou os melhores momentos de minha vida. Foi importante para a formação não apenas artística, mas também da minha personalidade, sobretudo por fortalecer minha auto-estima.
Em que projetos o amigo está trabalhando agora e quais seus planos futuros para os quadrinhos?
Já sonhei com dezenas de projetos simultâneos, mas baixei a bola para um projeto por vez. Terminado um, aí penso no próximo. Atualmente fiz 2 HQs sobre "causos" com meu pai, acontecidos no sertão, quando administrava fazendas nos inícios da década dos anos 40, na carona da comemoração dos 100 anos da Imigração japonesa no Brasil. Foram encomendadas pela Ed. Escala (SP) e revista Front de Porto Alegre. Você citou a frequência com que trabalho com temáticas tradicionais... como samurais. Isso se explica pelo fato de ter ouvido de papai e da minha avó fatos sobre nossos ancestrais e dos personagens heróicos da história medieval nipônica. Como quadrinista, sinto prazer em resgatar esse passado e mostrar para meus leitores. Como esclareci antes, minha rotina mesmo que ativa, segue sem sobressaltos, como que levado pelo vento, evitando ondas impetuosas. Nessa idade, pretendo manter o leme sob controle absoluto, sem excesso de atrevimentos.
Quero agradecer por esta entrevista, desejando-lhe muitas felicidades, saúde e quadrinhos!
Eu que lhe agradeço por esta entrevista (embora eu costume rejeitá-las), por ter-me permitido externar algumas revisões em minhas antigas convicções em relação aos quadrinhos. Também desejo a você e seus leitores muitas felicidades! Obrigadão e um grande abraço!
Para quem quiser conhecer alguns dos primeiros trabalhos de Julio Shimamoto, lancei com a Marca de Fantasia em 2007 a coletânea Shima: HQs clássicas de um samurai dos quadrinhos. Vale conferir!
Sua carreira profissional nos quadrinhos começou em 1957 ou 1958, certo? Como foram aqueles primeiros dias?
Na verdade iniciei minha carreira em 1957. Eu tinha me demitido do dpto. de promoção da multinacional Sears & Roebuck, loja de departamentos. Embora fosse contratado como desenhista, incumbiam-me com frequência tarefas de office-boy, restando-me pouco tempo como desenhista. Fiquei 2 meses procurando novo emprego, sem sucesso. Decidi tentar quadrinhos, e fui procurar Miguel Falcone Penteado, de quem fui grande admirador quando ilustrava capas de gibis da Ed. La Selva, juntamente com Jayme Cortez. Miguel estava dirigindo a Gráfica Editora Novo Mundo, no bairro do Brás (SP). Mostrei-lhe um projeto pronto intitulado "A conquista do Acre", narrando a saga de Plácido de Castro, mas Miguel reprovou os desenhos (por insuficiência técnica) e o roteiro (por tratar os bolivianos de forma discriminatória e pejorativa). Percebendo meu ar de decepção, insistiu-me para que não desistisse e que voltasse com novos trabalhos para sua avaliação. Cheio de esperança retornei no mês seguinte, e ele disse que eu tinha progredido muito. Encomendou-me um projeto para ocupar o espaço da série Acredite se quiser, de Ripley, que saía na 3ª capa de suas revistas. Senti um frio na barriga, mas topei o desafio, e me dei bem. Pouco tempo depois encomendou-me uma HQ de terror, e estreei no gênero com "Satanasia, a mulher do Diabo". Apresentou-me ao Cortez, na época diretor artístico da Ed. La Selva, e em pouco tempo comecei a desenhar para as revistas infantis Fusarca e Torresmo e Arrelia e Pimentinha, palhaços que atuavam na tevê.
Miguel Penteado foi um nome importante no fortalecimento de uma produção brasileira de quadrinhos no fim dos anos 50, através da pioneira Outubro. Qual a importância dessa editora para os quadrinhos brasileiros?
Miguel convidou 4 amigos, Jayme Cortez, Helí Lacerda, Cláudio de Souza e José Sidekerskis para juntarem recursos e talentos para fundarem a Ed. Continental (logo depois rebatizada de Outubro, mês da inauguração), voltada somente para o quadrinho nacional. Mas quadrinistas estrangeiros radicados no país podiam colaborar. Além do português Cortez, tinha o talentoso italiano Nico Rosso. Com exceção de Queiroz, Colin, Gedeonne, Gutenberg, Manoel Ferreira, Itagiba e Sérgio Lima, a maioria era jovens iniciantes como eu: Saidenberg, Aragão, Igayara, Maurício, Isomar, Dag Lemos, Bortolassi, Aylton Thomás, Webster, Juarez Odilon, Getúlio Delphin e tantos outros dos quais não recordo. Os roteiristas mais assíduos eram Hélio Porto, Cláudio de Souza, Pergentino e Costa Cotrin. Publicavam-se revistas infantis, juvenis, femininas (historinhas de amor), de terror, clássicos de terror, faroeste (Colin desenhou Shane e eu Matar ou Morrer). A Outubro cresceu rapidamente impulsionada por ótimas vendas. Chegaram a lançar mensalmente 4 títulos de terror. A Ed. La Selva também ia bem, e cheguei a colaborar para lá também. Essas 2 editoras entrincheiradas no Brás e na Mooca, antigo reduto de imigrantes italianos, começaram a incomodar as grandes e tradicionais editoras do eixo Rio-S.Paulo, tanto que se uniram no propósito criarem o selo "Aprovado pelo Código de Ética", como atestado de qualidade de suas revistas. A intenção era para incitar os pais a boicotarem revistas que não estampassem o selo.
Devo dizer que fiquei muito surpreso quando descobri que o senhor tinha sido o desenhista da HQ de estréia do Capitão 7 em 1959. Conte-nos, por favor, como o amigo acabou sendo o desenhista na primeira história em quadrinhos de super-heróis do Brasil.
O Capitão 7 era série infantil de tevê do Canal 7 de Televisão, interpretava o herói o lutador de catch Ayres Campos, muito popular entre a gurizada. Cortez me convidou para tocar a quadrinização do personagem que seria roteirizado por Cláudio de Souza, mas não me empolguei. Topei quando me garantiu que eu só faria o número inaugural, para outro desenhista continuar. Eu preferia continuar com "terror", por ter mais flexibilidade de me aprimorar e desenvolver meu aprendizado em desenho e técnica de roteiro. Nesse período devorei compulsivamente quase todos os clássicos da literatura gótica e fantástica.
No começo dos anos 60, tivemos algumas iniciativas de valorização da produção brasileira, como o movimento pela nacionalização das histórias em quadrinhos e a experiência da cooperativa gaúcha CETPA. Por que essas iniciativas não deram certo? Algo a ver com o Golpe Militar de 1964 e interesses econômicos menos nacionalistas?
O movimento pela valorização da produção brasileira nos inícios dos anos 60 deve-se à conjunção de fatores político, cultural e esportivo que o país respirava, sob influência do nacionalismo getulista somado ao desenvolvimentismo juscelinista. Era um período triunfalista para os brasileiros, transbordando auto-estima. Por 1 polegada Marta Rocha deixou de ser Miss Universo; a construção de Brasília pelos geniais Lúcio Costa e Oscar Niemeyer; a implantação da indústria automobilística: Eder Jofre campeão mundial dos galos; Brasil campeão de 2 copas mundiais ; a Bossa Nova e o Cinema Novo conquistam aplausos e prêmios internacionais; na salto-triplo Ademar Ferreira é ouro olímpico; campeã várias vezes em Winbledon e Grand Slam, Maria Esther Bueno (589 títulos internacionais) é considerada a maior tenista de todos os tempos! Em 1961, o mundo está dividido pela guerra-fria entre blocos Leste / Oeste. Pregando neutralidade, elege-se presidente Jânio Quadros, com votos da esquerda e da direita. Surpreendentemente foi ele o primeiro presidente apoiar o movimento pela nacionalização dos quadrinhos. Mas, sob pressão oculta dos militares, ele acaba renunciando, cedendo a vez para seu vice Jango Goulart assumir sua vaga. E este continua a linha política do antecessor... No Rio Grande do Sul, o governador é seu cunhado Leonel Brizola, que decidiu apoiar a implantação de núcleo de produção de quadrinhos com temas brasileiros, a CETPA (Cooperativa Editora de Trabalho de Porto Alegre). A presidência ficou com o ex-quadrinista carioca José Geraldo Batista. As oportunidades foram franqueadas também para desenhistas de outros estados. Eu desenhei a História do R. G. do Sul, Luís Saidenberg a História do Cooperativismo, Flavio Colin desenhou a saga do líder guarani Sepé Tiarajú, e Getúlio Delphin quadrinizou as aventuras dos Abas Largas, como são conhecidas as polícias montadas das fronteiras gaúchas. Fortunato desenhou uma fábula sobre conflitos sociais. Canini fez sátira contra super-heróis. Bendatti, criou Lupinha, um detetive trapalhão. Flavio desenhou o personagem infantil Piazito, um indinho. Houve outros projetos, mas não cheguei a conhecer. Testemunhei alguns problemas muito comuns hoje em dia, como a incorporação de apadrinhados políticos no núcleo da CETPA, pessoas com conhecimento zero sobre quadrinhos mas ávidos para pegar carona no movimento, visando prestígio ou alguma vantagem material. Apesar disso não vacilo em afirmar que o Golpe Militar foi responsável pelo fracasso do movimento pela nacionalização dos quadrinhos, que foi confundido com movimento político de esquerda.
Nos anos 70, o senhor trabalhou em HQs eróticas para a Grafipar, faroestes para a Vecchi e na série A Múmia para a Bloch. Se comparados a projetos mais autorais como O Gaúcho, aqueles foram trabalhos mais comerciais. Mas talvez o que falte aos quadrinistas brasileiros hoje seja exatamente editores interessados em investir em revistas comerciais que propiciem trabalho regular. O senhor concorda?
Muito interessante a sua colocação, mas uma observação isenta revela uma evidência crônica: por exemplo, as editoras de livros preferem investir em títulos de autores estrangeiros consagrados, do que apostar num autor local, salvo raras exceções. Essa fórmula é adotada também no setor dos quadrinhos - basta uma simples olhada nas estantes de nossas gibiterias, lotadas de publicações americanas, européias e asiáticas (sobretudo japonesas). Basta lembrar que Outubro só deu certo porque ocupou o espaço do gênero "terror" que o macartismo proibiu nos EUA. A Ed. Bloch chamou-me para desenhar A Múmia devido a Marvel ter cancelado a série quando começou a dar prejuízo. Walmir, Adauto e eu desenhamos Fantasma para a Rio Gráfica pelo mesmo motivo... a King aposentou seu desgastado personagem. Quando cancelarem o Homem-Aranha, com certeza vão procurar alguém para continuá-lo aqui no Brasil. Excetuando Maurício, Ziraldo e os quadrinistas que produzem super-heróis para o exterior, a maioria se abriga nos fanzines e nas chamadas "independentes" ou "alternativas", publicações de escassas tiragens, produzindo HQs autorais com temáticas existenciais ou sociais. Eu próprio estou nessa atualmente, apenas para manter a prática e a auto-estima, fingindo ignorar meu bolso vazio. Heroicamente teimosos como você Srbek, Salles, Arthur Filho, Leonardo Melo, Henrique Magalhães, Leonardo Santana, e muitos outros, estão lutando para romper a camisa-de-força que amesquinha espaço para criadores locais.
Tendo participado de importantes momentos e movimentos nos últimos 50 anos, em sua opinião por que não temos hoje revistas brasileiras importantes como Spektro, Calafrio e Mestres do Terror?
Porque o mundo mudou, e está cada vez mais acelerado, abreviando o tempo de validade das coisas classificadas como lúdicas e supérfluas. O quadrinho infelizmente é um item vulnerável, descartável. Um exemplo: sou pai de 4 filhos, mas nenhum lê história em quadrinhos (muito menos os meus). Em contrapartida, também não gosto de muitas coisas que eles lêem, som que ouvem, ou filmes que assistem. Voltando ao assunto, sem ironia, eu creio que há mais gente querendo fazer quadrinhos do que leitores.
Nas últimas décadas, percebemos nos seus trabalhos cada vez mais experimentações com diferentes técnicas, ao lado de um interesse por temas tradicionais. O que define o caminho e as buscas artísticas do mestre Shima?
Por também ter trabalhado muito com publicidade, adquiri síndrome de inovação. Sem essa compulsão não se sobrevive nessa atividade nem 2 semanas. Quando retornei para os quadrinhos trouxe junto essa neurose. Sabia que o grande e saudoso mestre Flavio Colin trabalhou mais tempo do que eu na publicidade? Ele burilou seu inimitável e extraordinário estilo nas pranchetas das grandes e melhores agências do Rio. Para mim, embora o quadrinho nunca tenha significado um meio confiável de sustento, sempre me proporcionou os melhores momentos de minha vida. Foi importante para a formação não apenas artística, mas também da minha personalidade, sobretudo por fortalecer minha auto-estima.
Em que projetos o amigo está trabalhando agora e quais seus planos futuros para os quadrinhos?
Já sonhei com dezenas de projetos simultâneos, mas baixei a bola para um projeto por vez. Terminado um, aí penso no próximo. Atualmente fiz 2 HQs sobre "causos" com meu pai, acontecidos no sertão, quando administrava fazendas nos inícios da década dos anos 40, na carona da comemoração dos 100 anos da Imigração japonesa no Brasil. Foram encomendadas pela Ed. Escala (SP) e revista Front de Porto Alegre. Você citou a frequência com que trabalho com temáticas tradicionais... como samurais. Isso se explica pelo fato de ter ouvido de papai e da minha avó fatos sobre nossos ancestrais e dos personagens heróicos da história medieval nipônica. Como quadrinista, sinto prazer em resgatar esse passado e mostrar para meus leitores. Como esclareci antes, minha rotina mesmo que ativa, segue sem sobressaltos, como que levado pelo vento, evitando ondas impetuosas. Nessa idade, pretendo manter o leme sob controle absoluto, sem excesso de atrevimentos.
Quero agradecer por esta entrevista, desejando-lhe muitas felicidades, saúde e quadrinhos!
Eu que lhe agradeço por esta entrevista (embora eu costume rejeitá-las), por ter-me permitido externar algumas revisões em minhas antigas convicções em relação aos quadrinhos. Também desejo a você e seus leitores muitas felicidades! Obrigadão e um grande abraço!
Para quem quiser conhecer alguns dos primeiros trabalhos de Julio Shimamoto, lancei com a Marca de Fantasia em 2007 a coletânea Shima: HQs clássicas de um samurai dos quadrinhos. Vale conferir!
8 comentários:
Li de joelhos em reverência a este grande mestre. Shima realmente é um dos artistas mais importantes do Brasil. Lembro com muita saudade da quadrinização do seriado "Carga Pesada" que ele desenvolveu e das histórias de terror para Vecchi. Saúde para o Shima e muita estrada pela frente. Ótima entrevista Wellitão.
Shima é um grande artista muito pouco valorizado por nossos editores de visão curta. Mas ele continua trabalhando e produzindo trabalhos originais. Atualmente ele está trabalhando em HQs curtas com as histórias do pai nos primeiros anos no Brasil.
No mais, valeu, Clebão (é sempre muito bom saber que tem alguém realmente lendo esse blog por aqui...). Vamos combinar aquele chopp!
Não há como não me manifestar diante dessas palavras: "minha rotina mesmo que ativa, segue sem sobressaltos, como que levado pelo vento, evitando ondas impetuosas. Nessa idade, pretendo manter o leme sob controle absoluto, sem excesso de atrevimentos". Que BELO! Que SABEDORIA!
A vida mesmo que impestuosa, tem diante da arte (dos quadrinhos) a sua potencialidade de redenção!
Pessoalmente, eu almejo um dia ter a serenidade do Mestre Shima. Por enquanto, continuo mais ou menos o mesmo: se pisarem nos meus calos, eu berro!
Esta é uma das HQs que eu encarreguei na Marca de Fantasia (já consegui enviar o pagamento), depois de ler sobre ela em Bigorna. Onde também li um artigo sobre o movimento pela nacionalizaço dás histórias em quadrinhos, um processo que aperece incrível para um europeu como eu. Espero saber mais sobre essa época.
Decerto que esta semana será memorável no Mais quadrinhos, já lhe dedicaram um post no blog Calha
A história dos quadrinhos brasileiros e da luta pelos quadrinhos brasileiros é muitíssimo interessante. Infelizmente, a maioria dos leitores e muitos autores por aqui não sabem de nada disso. Tem gente que acha que primeiro precisamos ter uma produção em massa, no estilo norte-americano, para então conseguirmos ter trabalhos de qualidade - quando, na verdade, há muitas décadas temos trabalhos primorosos que não deixam nada a dever ao melhor quadrinho mundial. Trabalhos como os de Shimamoto, Colin, Ziraldo, Henfil, Jô Oliveira, Luiz Gê e muitos outros mais.
Abraço, Ismael!
Palavras quase são dispensáveis quando se trata do Mestre Shima. Amigo de quase 50 anos de carreiras paralelas, ele sempre foi um exemplo de coragem e integridade, abandonando ( o que eu não fiz ) uma bem sucedida carreira na publicidade para continuar com seus amados quadrinhos, sempre inventando e aprimorando-os.
Super-herói de quadrinhos ? O Shima é o próprio.
Muito bem dito, prezado Saidenberg! Mestre Shima é praticamente um patrimônio de nossos quadrinhos, além de um ser humano exemplar. Orgulho-me de também poder chamá-lo de amigo.
Abraço!
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