04/01/2008

A revolução de Fradim.



Hoje completam vinte anos da morte de Henrique de Souza Filho, o Henfil. Dono de um traço originalíssimo, esse mineiro nascido em Ribeirão das Neves foi um dos mais importantes cartunistas brasileiros de todos os tempos. Humorista genial, Henfil criou personagens marcantes (como os Fradins e a Grauna), além de escrever livros e textos para jornais e revistas (como a série Cartas da Mãe) e produzir crônicas e quadros para tevê (como o TV Homem). Entre suas criações mais importantes está a revista Fradim, lançada entre 1973 e 1980 pela Codecri (editora ligada ao jornal alternativo Pasquim). Lançada em plena Ditadura Militar, a revista revolucionou os quadrinhos brasileiros, com a coragem e a expressão inegável de um riso que liberta (tema de minha tese de doutorado e título de um dos livros que lancei pela Marca de Fantasia).

Surgidos em julho de 1964 na revista mineira Alterosa, os Fradinhos Baixinho e Cumprido eram, a princípio, uma dupla de silenciosos desordeiros, desenhados num traço ainda amador. Com o cancelamento da revista, Henfil transferiu-se para jornais de Belo Horizonte, nos quais aprimorou seu desenho e aprofundou seu senso crítico, além de produzir charges sobre os times de futebol da capital mineira. E foram as charges futebolísticas que garantiram ao jovem cartunista um convite para se transferir para a matriz do Jornal dos Sports, no Rio de Janeiro. No novo emprego, Henfil alcançou projeção nacional ao criar novas mascotes para os times de futebol cariocas (como o popularíssimo Urubu do Flamengo). Conseguindo uma incrível identificação com o público, o desenhista foi convidado a fazer charges futebolísticas para o Pasquim, que reuniria nomes como Ziraldo, Jaguar e Millôr. Contudo, Henfil tinha outros planos para o jornal; planos chamados “Fradinhos”.

Sob o clima asfixiante do recém-decretado AI-5 (que limitou as liberdades civis e ampliou os poderes da Ditadura), o contestador Pasquim chegou como uma válvula de escape e uma resposta da criatividade frente à opressão. Nesse processo, o papel de Baixinho e Cumprido seria fundamental: começando num tímido quarto de página, em quatro meses eles já tinham conquistado a contracapa do jornal, de onde avançaram para as páginas centrais (evidenciando a enorme repercussão junto aos leitores). Quando perguntado sobre o efeito causado por seus personagens, Henfil refletiu: “Olha, o Fradinho foi catártico! As pessoas estavam arrasadas com a Ditadura, né? Porque ela começou muito branda em 64, 65, quer dizer, em 68 é que a Ditadura se instalou no Brasil para valer. E as pessoas estavam arrasadas. Então vinha um personagem que vinha voando a dez mil enquanto a realidade estava voando a cem metros e derrubando latas de lixo” (Como se faz humor político, p.36).

O que Henfil chamou de “catártico” corresponde à identificação dos leitores com o sádico Baixinho. Numa época de cala-bocas e policiamentos, o incontrolável Fradinho chegava contestando a “moral e os bons costumes”, rebaixando tudo a um nível visceralmente humano (pois não era nada comum ver um personagem de quadrinhos arrotando, fazendo xixi ou apontando o dedo para as injustiças sociais). E tudo feito num estilo incrivelmente original, um desenho vivo chamado por Henfil de “traço caligráfico”. Consolidando-se na preferência dos leitores do Pasquim e no imaginário social da época (“TOP! TOP!”), Baixinho e Cumprido ganharam, em abril de 1971, o Almanaque Fradinhos 1. Totalizando 68 páginas em formato tablóide gigante, a publicação reproduzia a origem na Alterosa e alguns lances dos primeiros anos de Baixinho e Cumprido, culminando nos eventos de sua morte e ressurreição (pois em dado momento Henfil se assustou com a identificação dos leitores com o sadismo do Baixinho e decidiu “matar” os personagens, para poder retomar o controle sobre eles).

O sucesso do Almanaque motivou Henfil a investir numa publicação seriada, lançando em setembro de 1973 a Fradim n°2 (70 mil exemplares e tamanho 27cm x 18cm). Com 32 páginas em papel-jornal e formato vertical, a edição trazia histórias inéditas do Baixim e Cumprido, além de reedições das HQs da Turma da Caatinga, com Grauna, Zeferino e Bode Orelana (publicadas no Jornal do Brasil). Após as cinco primeiras edições, a revista foi temporariamente suspensa, voltando a ser publicada em março de 1976, dessa vez num formato horizontal. Com 48 páginas em papel de melhor qualidade, a nova Fradim trazia as HQs do Baixim e da Grauna, sendo completada em edições seguintes por charges (em que Henfil abordava os problemas do Brasil da época), as seções “Cartas de um Subdesenvolvido” (com sua correspondência nos anos em que viveu nos Estados Unidos) e “Fala Leitor!” (com os comentários e opiniões do público), além de anúncios dos jornais em que o cartunista colaborava (desenhados por ele ou comentados por seus personagens). Produzida numa época de contestação política e cultural, a revista Fradim era o produto quase artesanal de uma personalidade incrivelmente criativa.

No fim dos anos 70, a Fradim foi publicada sem periodicidade definida (às vezes com mais de um ano separando uma edição, da seguinte), chegando ao fim no número 31, em dezembro de 1980. Tendo influenciado e inspirado várias outras publicações alternativas, a Fradim era uma revista singular: produto da indústria cultural e obra quase artesanal; série em quadrinhos com ótima vendagem e publicação que fugia aos padrões mercadológicos; desenho que apelava à emoção e instrumento de um projeto de conscientização; uma obra-prima dos quadrinhos produzida por um autor que aspirava ser “a mão do povo que desenha” (como revelou à Versus Edição Especial Quadrinhos no auge de sua popularidade, em 1976). De fato, Henfil foi o cartunista brasileiro mais influente dos anos 70, enquanto sua obra transcendia as páginas das publicações e os limites tradicionais do humorismo (tendo importante papel nas campanhas pela Anistia e pelas Diretas Já). Assim como seus irmãos Betinho e Chico Mário, Henfil era hemofílico e contraiu o vírus da AIDS numa transfusão de sangue nos anos 80. Vindo a falecer em 4 de janeiro de 1988, antes de completar 44 anos, “o filho da Dona Maria” deixou uma obra genial e intensamente humana. O testemunho de uma vida e de uma época; a expressão viva de um riso que liberta.

Texto baseado em meu livro inédito A revolução de Fradim.

7 comentários:

Anônimo disse...

Belo texto Wellington. Ele que era verdadeiramente um apaixonado pelo Brasil e pelo seu povo estaria dizendo o que hoje sobre esta "esquerda" que temos? Abração

Wellington Srbek disse...

No meu livro inédito sobre o Henfil e a Fradim, eu chego a questionar: o que Henfil estaria achando do governo de seu amigo Lula? Mas, diga-se de passagem, Henfil também teria muito o que falar sobre o governo neo-liberal do Fernando Henrique!

Anônimo disse...

oLA wELLINGTON BLZ
CARA VI SEU COMENTARIO NO BLOhqS
PASSEI POR AQUI PRA TE AVISAR Q TMB LI SEU TEXTO SOBRE O HENFIL E
POSTEI PARTE DELE NA COMUNIDADE ABAIXO / SOU CARTUNISTA EM SANTOS SP/ DESDE JA ESTA CONVIDADO A PARTICIPAR TMB DA NOSSA COMUNA OK
ABRACO INTE +
http://www.orkut.com/CommMsgs.aspx?cmm=6501590&tid=2575883977693117304&na=4

natalia disse...

Querido Wellington, acho que não é à toa, ou melhor, quase por obrigação ou respeito aos meus pensamentos-sentimentos, que lhe escrevo para dizer que continuo me entusiasmando com sua acidez quase Shiraz. Acho deliciosa sua crítica com grande teor corporal (emocional, à flor da pele) e nada melhor do que a produção do Henfil para que isso aconteça e nos promova uma avalanche de pensamentos-sentimentos perfeitamente misturados e intercambiáveis, a ponto de nos expressarmos. São desses que o “Brasil” precisa: Henfil, Nilson, Srbek ...
Assim, como vai o humor político nos quadrinhos (porque “todos são”, mas aqueles) comprometidos ou co-responsáveis com a denúncia, a insatisfação, a não-aceitação, a negatividade do aceitavelmente-dado?

Wellington Srbek disse...

Olá Natália,
Muito obrigado pelas palavras e pelo entusiasmo! Por aqui, continuo na mesma batalha quixotesca pelos quadrinhos. Infelizmente, a indiferença dos editores impede que eu chegue mais longe e a mais pessoas. Não é à toa, e certamente não é por falta de persistência, que meus livros sobre a Pererê e a Fradim continuam inéditos. Embora Minas Gerais não tenha mar, às vezes eu tenho a sensação de que Belo Horizonte é uma ilha. Mas fazer o quê, se amo essa cidade tanto quanto amo a desprestigiada arte dos quadrinhos! Mas vamos seguindo, estabelecendo pontes virtuais e reencontrado amigos e amigas de ontem e sempre!

Anônimo disse...

Gostaria de ver por aqui uma reedição
com tratamento de luxo da obra completa do Fradim e da Graúna , aos moldes de como está saindo os "Piratas do Tietê" , do Laerte ... Sonho meu ?

Wellington Srbek disse...

Pois é, seria algo fantástico! Mas eu não apostaria que isso venha a acontecer tão cedo. Mas vale torcer, não é?
Abraço!