Planejada para ser um monumento aos novos tempos que se anunciavam no fim do século 19, Belo Horizonte é hoje uma grande cidade e, como tal, guarda suas contradições. Há exatos dez anos, no dia do Centenário de BH, publiquei um texto (agora atualizado e adaptado para este espaço), no qual relaciono o aniversário da cidade a duas obras em quadrinhos: a série Os Sobrinhos do Capitão e o álbum O Homem de Canudos. Espero que gostem, e parabéns a Belo Horizonte, pelos 110 anos!
Os Sobrinhos do Capitão.
No dia 12 de dezembro de 1897, enquanto se festejava a inauguração da nova capital da província de Minas Gerais, estreava no New York Journal a série The Katzenjammer Kids, que recebeu no Brasil o título Os Sobrinhos do Capitão. Criada por Rudolph Dirks, jovem alemão que se mudara para os Estados Unidos em busca de novas oportunidades, a HQ fôra idéia dos editores do jornal, que queriam publicar uma história inspirada numa das primeiras séries de sucesso dos quadrinhos: Max und Moritz do artista alemão Wilhelm Busch. Publicada no Brasil com o título Juca e Chico, a série de livrinhos contava as traquinices e confusões de dois meninos encrenqueiros.
Com a missão de repetir o sucesso de Juca e Chico, Dirks (na época com apenas 20 anos) criou Hans e Fritz, duas pestinhas que infernizavam a vida dos adultos, em especial da Mamãe e do Capitão. No início, os desenhos e roteiros aproximavam-se bastante do trabalho inspirador de Busch. Porém, Dirks logo definiria melhor a personalidade e as características visuais de seus personagens, que sempre tentavam roubar as tortas feitas pela Mamãe ou armar travessuras para o Capitão. Por tabela, com Os Sobrinhos do Capitão consumava-se o trabalho iniciado com Juca e Chico: a construção de um dos tipos mais recorrentes nos quadrinhos e desenhos animados, o das crianças endiabradas.
Brincando com o sotaque e as peculiaridades da cultura alemã, as páginas dominicais e tiras diárias produzidas por Dirks conquistaram o público norte-americano e os próprios imigrantes que chegavam aos milhares na época. E além de influenciar o imaginário popular, Os Sobrinhos do Capitão também representou um avanço na linguagem dos comics. Sendo um dos primeiros a definir a estrutura dos quadrinhos (como os conheceríamos ao longo do século 20), Dirks foi ainda um dos responsáveis pela consolidação do estilo de desenho cartunístico (de formas arredondadas e proporções reduzidas), uma vez que, até então, predominavam traços mais caricaturais.
Com a enorme popularidade de seus personagens, Dirks envolveu-se num processo judicial em 1914, quando tentou transferi-los para um jornal concorrente. Apesar de ter mantido o direito de desenhar os personagens que criara, o desenhista perdeu os direitos sobre o nome da série, passando a publicá-la com o nome The Captain and the Kids. Isso deu origem a uma situação incomum, pois enquanto Dirks desenhava Hans e Fritz para outro jornal, Harold Knerr assumiu seu lugar, o que fez com que duas séries distintas, mas com os mesmos protagonistas, fossem publicadas ao mesmo tempo.
A competição entre os desenhistas era um duelo de talentos que enriqueceu ambas as séries. Além das tradicionais travessuras de Hans e Fritz, os autores exploraram viagens a fantasiosas ilhas povoadas por piratas e nativos hostis (algo bem ao gosto do imaginário colonialista ocidental). Assim, motivados pela rivalidade criativa, Dirks e Knerr aprimoraram seus estilos, contribuindo para o desenvolvimento da arte e também da indústria dos quadrinhos.
O Homem de Canudos.
Cada cidade tem uma alma própria. Nos prédios que lhes dão forma e nas pessoas que lhes dão vida, as cidades refletem sua História. Logo, ter domínio sobre a História de uma cidade é muito mais que estabelecer monumentos e datas comemorativas; é influenciar a própria vida das pessoas. Por isso, às vezes, para apagar o que representa uma indesejável cidade, não basta destruir seus prédios; é necessário também eliminar aqueles que os construíram, como aconteceu há 110 anos, no povoado de Canudos no norte da Bahia.
Ao contrário do que muitos pensam, os monumentos históricos não são apenas as estátuas ou os prédios erguidos em comemoração a algum feito ou pessoa notável. Um acontecimento, por si só, pode tornar-se um monumento histórico, sobre o qual se constrói uma nação (como é o caso da Revolução Francesa, por exemplo). Assim como a construção da moderna Belo Horizonte, a destruição da sertaneja Canudos deveria ser um “monumento” à República do Brasil, que há pouco fôra proclamada. Mas isso se fez, é claro, às custas do sangue da população que esta mesma república deveria representar. Parte dessa história de contrastes, que marca o nascimento da república brasileira em fins do século 19, é contada em O Homem de Canudos, HQ desenhada pelo mestre Jô Oliveira.
Publicada na Itália em formato álbum, com o título L’uomo di Canudos, e ainda inédita no Brasil, a HQ é o amadurecimento de um trabalho de pesquisa e recriação em quadrinhos, iniciado nos primeiros anos da década de 1970 pelo ilustrador e quadrinista Jô Oliveira. A história começa algum tempo antes da destruição de Canudos, quando um jovem sertanejo chamado Francisco vê sua família ser assassinada pelos homens do coronel local. Para vingar a morte de seus pais e irmã, ele se junta a um grupo de cangaceiros. Vingado, Francisco parte para o interior do sertão, onde encontra peregrinos que se dirigem ao povoado de Canudos, onde vive um “homem santo”. Chegando à cidade prometida, Francisco acaba nomeado comandante das forças de defesa, pelo próprio Antônio Conselheiro.
Trazendo uma boa reconstituição de época, os desenhos de Jô Oliveira reproduzem ícones da cultura nacional, como o cangaceiro, o coronel, o beato e a própria seca do sertão. Contudo, se em seus primeiros quadrinhos os personagens e ambientes valorizavam a dimensão mítica do sertão, em O Homem de Canudos a reconstituição histórica do tema e o maior realismo dos desenhos ficam em primeiro plano. Tendo incorporado o grafismo da literatura de cordel (que tornou seus trabalhos aclamados nos anos 70), Jô Oliveira mostra um outro estilo nesse álbum, que se adequa perfeitamente à função de representar o cenário e os acontecimentos históricos retratados.
A história em quadrinhos é um importante veículo na formação da consciência e imaginário nacionais. Infelizmente, o mercado brasileiro é ainda muito pouco favorável aos autores locais, dificultando que obras brasileiras ocupem o merecido espaço nas bancas e livrarias. Se nos últimos anos nossos quadrinhos têm recebido mais atenção por parte das editoras, a situação ainda está longe de ser a ideal. Ter uma indústria de quadrinhos que privilegie a produção nacional e ofereça ao público temas e traços brasileiros deveria fazer parte de nossa formação como povo e nação. Não faltam qualidade e criatividade a nossos autores, e há ainda muitas obras por se produzir e outras que aguardam inéditas ou fora de catálogo. A HQ O Homem de Canudos é um bom exemplo!
Os Sobrinhos do Capitão.
No dia 12 de dezembro de 1897, enquanto se festejava a inauguração da nova capital da província de Minas Gerais, estreava no New York Journal a série The Katzenjammer Kids, que recebeu no Brasil o título Os Sobrinhos do Capitão. Criada por Rudolph Dirks, jovem alemão que se mudara para os Estados Unidos em busca de novas oportunidades, a HQ fôra idéia dos editores do jornal, que queriam publicar uma história inspirada numa das primeiras séries de sucesso dos quadrinhos: Max und Moritz do artista alemão Wilhelm Busch. Publicada no Brasil com o título Juca e Chico, a série de livrinhos contava as traquinices e confusões de dois meninos encrenqueiros.
Com a missão de repetir o sucesso de Juca e Chico, Dirks (na época com apenas 20 anos) criou Hans e Fritz, duas pestinhas que infernizavam a vida dos adultos, em especial da Mamãe e do Capitão. No início, os desenhos e roteiros aproximavam-se bastante do trabalho inspirador de Busch. Porém, Dirks logo definiria melhor a personalidade e as características visuais de seus personagens, que sempre tentavam roubar as tortas feitas pela Mamãe ou armar travessuras para o Capitão. Por tabela, com Os Sobrinhos do Capitão consumava-se o trabalho iniciado com Juca e Chico: a construção de um dos tipos mais recorrentes nos quadrinhos e desenhos animados, o das crianças endiabradas.
Brincando com o sotaque e as peculiaridades da cultura alemã, as páginas dominicais e tiras diárias produzidas por Dirks conquistaram o público norte-americano e os próprios imigrantes que chegavam aos milhares na época. E além de influenciar o imaginário popular, Os Sobrinhos do Capitão também representou um avanço na linguagem dos comics. Sendo um dos primeiros a definir a estrutura dos quadrinhos (como os conheceríamos ao longo do século 20), Dirks foi ainda um dos responsáveis pela consolidação do estilo de desenho cartunístico (de formas arredondadas e proporções reduzidas), uma vez que, até então, predominavam traços mais caricaturais.
Com a enorme popularidade de seus personagens, Dirks envolveu-se num processo judicial em 1914, quando tentou transferi-los para um jornal concorrente. Apesar de ter mantido o direito de desenhar os personagens que criara, o desenhista perdeu os direitos sobre o nome da série, passando a publicá-la com o nome The Captain and the Kids. Isso deu origem a uma situação incomum, pois enquanto Dirks desenhava Hans e Fritz para outro jornal, Harold Knerr assumiu seu lugar, o que fez com que duas séries distintas, mas com os mesmos protagonistas, fossem publicadas ao mesmo tempo.
A competição entre os desenhistas era um duelo de talentos que enriqueceu ambas as séries. Além das tradicionais travessuras de Hans e Fritz, os autores exploraram viagens a fantasiosas ilhas povoadas por piratas e nativos hostis (algo bem ao gosto do imaginário colonialista ocidental). Assim, motivados pela rivalidade criativa, Dirks e Knerr aprimoraram seus estilos, contribuindo para o desenvolvimento da arte e também da indústria dos quadrinhos.
O Homem de Canudos.
Cada cidade tem uma alma própria. Nos prédios que lhes dão forma e nas pessoas que lhes dão vida, as cidades refletem sua História. Logo, ter domínio sobre a História de uma cidade é muito mais que estabelecer monumentos e datas comemorativas; é influenciar a própria vida das pessoas. Por isso, às vezes, para apagar o que representa uma indesejável cidade, não basta destruir seus prédios; é necessário também eliminar aqueles que os construíram, como aconteceu há 110 anos, no povoado de Canudos no norte da Bahia.
Ao contrário do que muitos pensam, os monumentos históricos não são apenas as estátuas ou os prédios erguidos em comemoração a algum feito ou pessoa notável. Um acontecimento, por si só, pode tornar-se um monumento histórico, sobre o qual se constrói uma nação (como é o caso da Revolução Francesa, por exemplo). Assim como a construção da moderna Belo Horizonte, a destruição da sertaneja Canudos deveria ser um “monumento” à República do Brasil, que há pouco fôra proclamada. Mas isso se fez, é claro, às custas do sangue da população que esta mesma república deveria representar. Parte dessa história de contrastes, que marca o nascimento da república brasileira em fins do século 19, é contada em O Homem de Canudos, HQ desenhada pelo mestre Jô Oliveira.
Publicada na Itália em formato álbum, com o título L’uomo di Canudos, e ainda inédita no Brasil, a HQ é o amadurecimento de um trabalho de pesquisa e recriação em quadrinhos, iniciado nos primeiros anos da década de 1970 pelo ilustrador e quadrinista Jô Oliveira. A história começa algum tempo antes da destruição de Canudos, quando um jovem sertanejo chamado Francisco vê sua família ser assassinada pelos homens do coronel local. Para vingar a morte de seus pais e irmã, ele se junta a um grupo de cangaceiros. Vingado, Francisco parte para o interior do sertão, onde encontra peregrinos que se dirigem ao povoado de Canudos, onde vive um “homem santo”. Chegando à cidade prometida, Francisco acaba nomeado comandante das forças de defesa, pelo próprio Antônio Conselheiro.
Trazendo uma boa reconstituição de época, os desenhos de Jô Oliveira reproduzem ícones da cultura nacional, como o cangaceiro, o coronel, o beato e a própria seca do sertão. Contudo, se em seus primeiros quadrinhos os personagens e ambientes valorizavam a dimensão mítica do sertão, em O Homem de Canudos a reconstituição histórica do tema e o maior realismo dos desenhos ficam em primeiro plano. Tendo incorporado o grafismo da literatura de cordel (que tornou seus trabalhos aclamados nos anos 70), Jô Oliveira mostra um outro estilo nesse álbum, que se adequa perfeitamente à função de representar o cenário e os acontecimentos históricos retratados.
A história em quadrinhos é um importante veículo na formação da consciência e imaginário nacionais. Infelizmente, o mercado brasileiro é ainda muito pouco favorável aos autores locais, dificultando que obras brasileiras ocupem o merecido espaço nas bancas e livrarias. Se nos últimos anos nossos quadrinhos têm recebido mais atenção por parte das editoras, a situação ainda está longe de ser a ideal. Ter uma indústria de quadrinhos que privilegie a produção nacional e ofereça ao público temas e traços brasileiros deveria fazer parte de nossa formação como povo e nação. Não faltam qualidade e criatividade a nossos autores, e há ainda muitas obras por se produzir e outras que aguardam inéditas ou fora de catálogo. A HQ O Homem de Canudos é um bom exemplo!
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