11/12/2007

Crimes de guerra num documentário em quadrinhos.


Variando na linguagem e na ambientação, desde A Ilíada, narrativas sobre guerras envolvendo cidades sitiadas e o massacre de seus habitantes têm sido uma constante na História ocidental (lembremos da Jerusalém arrasada pelos cruzados ou da Canudos pulverizada por nosso exército republicano). Área de segurança Gorazde, álbum do quadrinista Joe Sacco, faz parte dessa tradição narrativa, num relato contemporâneo e impressionante das atrocidades cometidas contra a população muçulmana durante a Guerra da Bósnia.

Nascido em Malta e naturalizado norte-americano, o repórter e desenhista Joe Sacco surgiu em edições independentes e começou a ganhar notoriedade com a série de revistas Palestine, posteriormente reunidas em livros premiados internacionalmente. Em Palestina: uma nação ocupada e Palestina: na Faixa de Gaza, o autor (que sempre é personagem em suas reportagens e não raramente faz piada de si mesmo) retrata a situação nos territórios ocupados por Israel, realizando o que se tem chamado de “jornalismo em quadrinhos”. Com o excelente Área de segurança Gorazde, Sacco deu um passo à frente nesse novo gênero narrativo.

Localizada na Bósnia Oriental, Gorazde era uma cidade de alguns milhares de habitantes, onde uma maioria de muçulmanos convivia pacificamente com a minoria de sérvios. Porém, com as ambições nacionalistas sérvias e os conflitos ligados à desintegração da Iugoslávia, em 1992 a convivência relativamente harmoniosa transformou-se num sangrento embate, em que vizinhos próximos se revelavam assassinos sádicos. Isolada, atacada e bombardeada ao longo de três anos, a população muçulmana da cidade resistiu, entre privações e solidariedade, tragédias individuais e laços afetivos. Ausente dos principais noticiários (que privilegiavam a capital Sarajevo, cenário do livro seguinte de Joe Sacco), Gorazde foi declarada “área de segurança” pela ONU, porém continuou abandonada à própria sorte e à mercê da limpeza étnica objetivada pelas lideranças sérvias.

Essa é a história que Sacco nos conta em Área de segurança Gorazde, sem maniqueísmos ou heroísmos hollywoodianos, conjugando atrocidades bárbaras e hegemonia política. Tendo passado um total de 40 dias em Gorazde, entre 1995 e 1996, o repórter-desenhista entrevistou sobreviventes e refugiados, visitou hospitais e locais de conflito. Partindo de uma pesquisa sobre o passado recente da ex-Iugoslávia, de fragmentos de histórias pessoais e das ruínas dos prédios da cidade, o quadrinista compôs uma narrativa que tem como características marcantes a diversidade discursiva e a fidelidade documental.

Foi na HQ “Natal com Karadzic” (publicada originalmente na antologia Comic Book: o novo quadrinho norte-americano) que Sacco abordou pela primeira vez a guerra nos Balcãs, descrevendo um breve encontro com o então líder sérvio Radovan Karadzic. Em Área de segurança Gorazde, o autor deixa de lado a excessiva ironia e os maneirismos de quadrinista underground, desenvolvendo uma capacidade de reproduzir em detalhe ambientes e pessoas, acontecimentos e depoimentos. As 230 páginas do livro trazem o amadurecimento de sua proposta estilística (a fusão de duas formas de narrativa modernas: HQ e reportagem), constituindo o que se pode chamar de um documentário em quadrinhos.

Alternando entre tons de cinza e contrastes de luzes e sombras, os elaborados desenhos correspondem perfeitamente à intenção jornalística de seu autor. Enquanto os ambientes são representados detalhadamente, reafirmando os relatos de destruição e violência do roteiro, a retratação expressiva e mais aproximada dos personagens reforça os traços de diferentes trajetórias e personalidades. As divisões de página seguem um padrão regular, explorando a interação de imagem e texto. Legendas e balões de diálogo sucedem-se e se completam num fluxo narrativo através do qual os depoimentos dos personagens alternam-se com a narração do jornalista (que, por sua vez, varia entre textos de contextualização histórica ou simples notas sobre incidentes cotidianos).

Numa história sem “mocinhos”, na qual a “cavalaria” não chegou a tempo de impedir que milhares de pessoas fossem massacradas, Joe Sacco nega a insipidez do discurso de neutralidade (da ONU ou do jornalismo). Sem fazer sensacionalismo com o sofrimento humano (tão afeito à mídia em geral, mas ineficiente nos quadrinhos) e evitando a exploração da violência (quase uma marca das HQs norte-americanas, mas indigna do verdadeiro jornalismo), o quadrinista narra histórias que teriam se perdido ou jamais viriam a público. Área de Segurança Gorazde é um livro importante, uma obra crítica que amplia os horizontes tanto dos quadrinhos (como linguagem artística) quanto do documentário (como forma de narrativa contemporânea).

Na linha de Maus, obra em que o desenhista Art Spiegelman aborda de forma surpreendente o Holocausto, a obra de Sacco partiu da experimentação underground para inovar a linguagem dos quadrinhos. Todos os livros do autor citados aqui foram lançados no Brasil e estão disponíveis pela Conrad. Numa época em que novas guerras se fazem e preparam à sombra do medo e da ignorância, muitos crimes de guerra permanecem impunes ou encobertos. Gorazde é uma das inúmeras histórias de atrocidades das últimas décadas, que com a contribuição de Joe Sacco talvez não seja esquecida. Cumprindo uma função histórica do jornalismo, ele denuncia a barbárie humana, pois negá-la ou esquecê-la é ser cúmplice nos crimes.

2 comentários:

Velho disse...

Muito bom! Perdi de comprar o pacotão do Joe Sacco na conrad... agora vou ter que esperar um pouco para ler essa graphic novel... Mas vou reler a Natal com Karadzic para matar a vontade!

Abraço.

Wellington Srbek disse...

Gorazde vale demais a pena! Quando puder não deixe de comprar.
Abraço, Velho!