23/03/2009
Marvelman e a recriação genial dos super-heróis.
A história do personagem britânico Marvelman (que seria mais tarde rebatizado como Miracleman) começa nos Estados Unidos, no início dos anos 50. Na época a Fawcett Comics, editora responsável pelas aventuras do Capitão Marvel e sua “Família”, enfrentava um infame processo judicial movido pela National Periodical / DC Comics. No processo, a editora do Super-Homem acusava a concorrente de ter infringido os direitos autorais de seu personagem. A verdade, no entanto, era que em várias ocasiões as revistas do Capitão Marvel haviam superado as vendas das publicações do Homem de Aço, o que motivou a ação judicial baseada numa infundada acusação de plágio (afinal, o Capitão Marvel original é muito diferente do Super-Homem e até mesmo mais interessante que seu predecessor). No fim, o maior poder econômico da DC prevaleceu e a Fawcett, além de pagar uma indenização vultuosa, foi obrigada a suspender definitivamente a publicação do Capitão Marvel.
Acontece que o simpático herói da palavra mágica “Shazam!” também fazia sucesso na Grã-Bretanha, onde era reeditado por L. Miller & Son. Mas, com a suspensão da publicação do personagem nos Estados Unidos, Len Miller logo veria uma importante fonte de renda desaparecer. O sagaz editor não pensou duas vezes: contratou o estúdio do roteirista e desenhista Mick Anglo para produzir uma cópia mal-disfarçada do Capitão Marvel. Nas palavras do próprio Anglo (reproduzidas pelo editor Dez Skinn em seu texto especial sobre Marvelman, para a Warrior n°1): “Um dia Len me ligou e disse que queria me ver com urgência. Seu suprimento de material americano para a série Capitão Marvel havia sido repentinamente cortado. [Ele me perguntou:] Você tem alguma idéia? [...] Eu rapidamente respondi a ele que tinha um monte de idéias, e acabei recebendo uma demanda regular de trabalho pelos próximos seis anos”. Assim, por um artifício editorial, em fevereiro de 1954 nascia Marvelman, o mais popular super-herói britânico de todos os tempos.
No processo de transformação do Capitão Marvel em Marvelman, a capa foi deixada de lado e no lugar da roupa vermelha surgiu uma azul. Em vez de moreno, o novo personagem era loiro, trocando a identidade secreta de Billy Batson por Mike Moran. O herói britânico não deixaria de ter uma palavra mágica, substituindo a popular “Shazam!” pela bombástica “Kimota!”. Os demais membros da Família Marvel não foram esquecidos: Capitão Marvel Junior e Mary Marvel deram lugar a Young Marvelman e Kid Marvelman, originando a Família Marvelman. E para não quebrar a ligação dos leitores com as publicações, a numeração das revistas não foi zerada (a despeito da mudança de nome). Além disso, as HQs produzidas pelos roteiristas e desenhistas britânicos mergulhavam em elementos da fantasia e da ficção científica, sendo até mais ingênuas que as similares norte-americanas. O trabalho agradou em cheio, e segundo Anglo: “Os novos títulos foram recebidos com vendas crescentes e uma chuva de cartas de garotos entusiasmados”.
Publicadas entre 1954 e 1963, as revistas (inicialmente) semanais Marvelman e Young Marvelman somaram quase trezentas e cinquenta edições cada uma, tendo ainda a companhia mensal de Marvelman Family que somou trinta edições (isso sem falar em duas dezenas de anuais e álbuns especiais, livros para colorir, brinquedos, jogos e até mesmo uma carteirinha do fã-clube do herói). Em suma, um sucesso mercadológico! Contudo, na virada para os anos 60, nem todos os garotos britânicos eram fãs das revistas de Marvelman & Cia., com seus miolos em P&B e sua impressão em papel-jornal de baixa qualidade. Muitos preferiam mesmo os super-heróis das coloridas revistas da DC e Marvel, saídas do outro lado do Atlântico. Entre os meninos que prestigiavam as HQs do Flash ou do recém-lançado Quarteto Fantástico, estava um certo Alan Moore. Um dia, porém, não encontrando uma de suas revistas preferidas, o garoto resolveu dar uma chance a Mavelman. Por algum motivo, daquela vez as histórias do herói britânico conseguiram lhe agradar bastante.
Mais ou menos na mesma época, Moore leu uma reedição da revista de humor norte-americana Mad, que trazia a história “Superduperman”. Uma criação do genial Harvey Kurtzman e do talentoso Wally Wood, a HQ era uma inteligente sátira ao Super-Homem. Para Moore, o que Kurtzman fez naquele trabalho foi aplicar uma “lógica do mundo real” aos super-heróis, buscando alcançar o máximo de efeito cômico. Inspirado por “Superduperman”, o jovem fã de quadrinhos imaginou então uma história no estilo: o que aconteceria se Marvelman esquecesse sua palavra mágica? (e aquilo que na época não passou dos devaneios de um leitor, tempos depois se tornaria a semente de uma revolução). O que acabou caindo no quase total esquecimento foi o próprio Marvelman, depois que a L. Miller & Son foi à falência em 1963. Mas, passado o tempo, o promissor autor de quadrinhos Alan Moore disse, numa entrevista em 1981, que gostaria que alguém relançasse Marvelman para que ele pudesse escrevê-lo, pois tinha uma idéia “absolutamente brilhante” de como fazer isso.
Numa feliz coincidência, o editor Dez Skinn leu a entrevista e estava justamente pensando em resgatar Marvelman para uma antologia de quadrinhos que planejava lançar. Skinn entrou então em contato com Moore, que redigiu uma proposta para a reformulação do herói. Empregando uma técnica de desconstrução e partindo de seu devaneio juvenil, o roteirista criou uma história na qual um Mike Moran de meia-idade segue a vida, tendo se esquecido de que fôra o herói Marvelman (apenas “um sonho sobre voar” recorrente lhe dá alguma pista sobre aquele passado). Para completar, Moore inspirou-se na HQ “Superduperman” para aplicar uma “lógica do mundo real” aos super-heróis, voltada nesse caso a um efeito dramático (e não cômico, como no trabalho de Kurtzman). Dessa forma, é um incidente com terroristas numa usina nuclear que faz o personagem se lembrar da palavra mágica “Kimota!” (atomic de trás para frente). E assim, em março de 1982 nas páginas da Warrior n°1, ressurgia Marvelman e começava também uma revolução nos quadrinhos de super-heróis!
Com periodicidade mensal, a Warrior era publicada em P&B, formato magazine (21cm x 30cm), trazendo séries divididas em capítulos de cinco a oito páginas. A maior parte dos direitos autorais sobre personagens e histórias permanecia com os roteiristas e desenhistas, que se sentiam assim motivados a produzir seus melhores trabalhos. Inovadora, a revista chegava aos pontos de venda com bons desenhos e uma incomum mistura de terror, aventura, suspense e ficção científica (incluindo aí a originalíssima V for Vendetta, criada por Moore em parceria com David Lloyd). Logo de saída, Marvelman tornou-se a principal atração da Warrior, enquanto a genialidade dos roteiros era notada por autores de quadrinhos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Nos capítulos iniciais, a série contou com o minucioso traço de Garry Leach (que acumulava o cargo de diretor de arte da revista). A partir do sexto capítulo, Marvelman passou a ter os dinâmicos desenhos de Alan Davis (que na época também passava a colaborar com Moore nas séries Captain Britain para a Marvel UK e D.R. and Quinch para a 2000 AD).
Com o sucesso da nova versão, Skinn decidiu lançar Marvelman Special n°1, que trazia basicamente reimpressões de HQs dos anos 50, produzidas pela equipe de Mick Anglo. Mas, devido à utilização do nome do personagem no título da revista, a Marvel Comics (que se considera dona da palavra marvel no ramo dos quadrinhos) interferiu judicialmente. É interessante notar, porém, que o nome Marvelman (surgido em 1954 na revista que lançou o personagem) antecede a utilização do nome Marvel Comics, o que tornaria infundadas as alegações da editora norte-americana (não fosse seu maior poderio econômico). O fato é que a disputa judicial dificultou a continuação da série, causando também desavenças entre Skinn e Moore, o que resultou na suspensão de Marvelman no número 21 da Warrior (deixando incompleto o “Livro II” da série). Sem seu personagem mais popular e não sendo uma campeã de vendas, a revista chegou ao fim no número 26, em janeiro de 1985. De qualquer forma, sua contribuição para a história dos quadrinhos ocidentais já estava assegurada.
Desde o início, exemplares da Warrior chegavam aos Estados Unidos, sendo apreciados por novos artistas, que viam ali exemplos a serem seguidos. Marvelman em especial teve grande influência, por ser uma obra inovadora no gênero predominante naquele mercado. Os desenhos impecáveis criados por Leach e Davis já valiam uma olhada mais atenta. No entanto, o diferencial eram mesmo os roteiros de Moore, com sua aplicação de uma “lógica do mundo real” aos super-heróis. Trazendo textos marcantes e uma trama inteligente e contemporânea, Marvelman mistura História e ficção científica, maravilhamento e vida cotidiana, não faltando elementos intertextuais e metalinguísticos (que explicam o desaparecimento do herói por quase vinte anos e até mesmo como ele veio a ser um plágio do Capitão Marvel). Brilhante e original, a série foi a primeira recriação racionalista de um super-herói clássico, abrindo caminho para a reformulação dos heróis da DC Comics, para o Novo Universo Marvel e para obras revolucionárias como O Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Enfim, um clássico genial e imperdível!
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10 comentários:
Hummm...E onde será que encontramos todas as edições :)
Tiago, no texto especial sobre a Warrior que escrevi aqui pro blog, coloquei links para um saite norte-americano e outro britânico onde você pode comprar as edições da Warrior ou da Miracleman (para achar o texto clique no marcador abaixo desta postagem). As revistas não são baratas, mas valem cada centavo investido!
Grande abraço!
Só pra completar, Wellington.
Vc poderia confirmar se Miraclemen foi mesmo publicado no Brasil?
Pela Taurus, se não me engano.
As edições americanas são caras mesmo! dai o motivo de eu nunca ter lido Marvelmen interio!snif,snif!
Tentei por edições romena (sacans), mas me cansa ler gibi na tela!
Boa matéria!
Olá Doutor,
Sim, Miracleman saiu por aqui no início dos anos 90, por uma pequena editora chamada Tannos. O trabalho não foi dos mais profissionais, pois parece que os editores tiveram problemas logo depois de lançar a série. Saíram ao todo 4 revistas (em papeis e tamanhos diferentes), com o Livro Um completo e alguns capítulos do Livro Dois. Apesar dos problemas, essa edição teve a virtude de trazer Marvelman/Miracleman ao Brasil. Foi nela que li a série pela primeira vez inclusive.
Para quem lê em inglês e puder dispor da grana, eu recomendo totalmente a compra das revistas ou TPBs da Eclipse norte-americana. Não são baratos, mas valem cada centavo.
Grande abraço!
Fiquei muito curiosa sobre esse Superduperman! Mas deve ser impossível de achar...
Excelente a matéria, abraços!
A HQ saiu recentemente nos Estados Unidos, no vol.1 da coleção com as primeiras edições da Mad, lançada pela DC Comics. Ando pensando em comprar, mas a grana anda curta aqui...
Beijos, Aline!
Eu também fui um dos felizes compradores das ´"revistas" Miracleman lançadas pela Tannos. Um apena que a reedição deste material, que teve uma continuação escrita por Neil Gaiman, esteja envolvida num imbroglio jurídico envolvendo os criadores e ninguém menos que Todd "Show me the Money" McFarlane. Seria interessante ler este material inteiro, imagina só ler Alan Moore e Neil Gaiman, geniais já no início de suas carreiras.
Olá Amálio, como expliquei num comentário em outra postagem, parece que a pendenga juríca envolvendo Todd McFarlane e Neil Gaiman já foi resolvida. Mas aí descobriram que na verdade não se sabia ao certo quem era o detentor legal dos direitos sobre Miracleman (por causa da falência da L. Miller & Son, que teria passado os direitos em 1963 para um depositário oficial, do qual Dez Skinn jamais teria adquirido os direitos para relançar o personagem em 1982). Escreverei detalhadamente sobre Miracleman e sua situação jurídica numa futura postagem.
Abraço!
Olá Su,
Miracleman teve 16 edições escritas por Alan Moore divididas em 3 "livros" (além de mais algumas escritas por outros autores, como Neil Gaiman).
No Brasil só foram publicadas quatro revistas, trazendo o primeiro livro e algumas histórias do segundo. Você encontra essas edições nacionais em lojas virtuais. As edições originais em inglês são bastante caras e raras (atualmente é quase impossível ou pelo menos caríssimo conseguir comprar a série completa).
Se quiser saber mais sobre Miracleman, ainda este mês deverei publicar um texto especial sobre esta fantástica HQ. E se quiser saber mais sobre os quadrinhos de Alan Moore há diversos textos aqui no blog.
Abraço!
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