06/02/2009

Super-heróis: um fenômeno dos quadrinhos (II).


Entre 1938 e 1945, aconteceu o auge do que se chama nos Estados Unidos de “Era de Ouro dos Quadrinhos”. Por motivos intrínsecos ao gênero e relativos ao contexto do fim dos anos 30 e início dos anos 40, os super-heróis proliferaram no mercado norte-americano (praticamente como na multiplicação infinita sugerida pela criativa capa ao lado, criada por Alex Schomburg para a revista America’s Best Comics). Afinal, a superação dos anos da Grande Depressão e principalmente o patriotismo do período da Segunda Guerra Mundial foram um terreno fértil para o crescimento exponencial do gênero dos coloridos seres superpoderosos e suas aventuras maniqueístas. Não é à toa, portanto, que personagens como o Capitão América apareceram nas capas de revistas esmurrando o próprio Adolf Hitler, enquanto outros como o Fighting Yank faziam pose relaxada, tendo aos pés um destacamento de bestializados soldados japoneses e ao fundo o próprio Imperador Hirohito amarrado em seu trono. Mesmo se considerarmos o contexto, aquele foi um triste momento em que estereótipos étnicos desdobraram-se em racismo, enquanto os super-heróis tornavam-se veículos perfeitos para o ufanismo e a propaganda pró-guerra.

A partir da segunda metade dos anos 40, porém, os quadrinhos de super-heróis foram perdendo espaço para outros gêneros (como o terror, o faroeste e a ficção científica) e a maior parte dos personagens teve suas revistas canceladas ou simplesmente desapareceu. Entre os poucos sobreviventes estavam os heróis da National Periodical / DC Comics: Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha (uma super-heroína criada para contemplar o público feminino e corresponder à condição mais ativa que as mulheres assumiram a partir dos anos 40). Seria a própria DC a responsável por reativar o gênero, quando em 1956 o lendário editor Julius Schwartz decidiu lançar a versão modernizada de um clássico personagem da editora: o Flash. Bem recebida pelo público, essa primeira reformulação motivou o relançamento do Lanterna Verde e de outros personagens, que ganharam um visual anos 50 e uma forte influência da ficção científica. Mais tarde viria a Liga da Justiça da América, grupo que reunia alguns dos principais super-heróis da editora (e era ela própria uma reedição da Sociedade da Justiça, o primeiro grupo de super-heróis, lançado nos anos 40). Tinha início ali a chamada “Era de Prata dos Quadrinhos”, na qual os seres superpoderosos ganharam até similares em outros países (como os brasileiros Capitão 7 e Raio Negro).

Na virada para os anos 60, as coisas iam bem para a DC. Contudo, mesmo com as modernizações, havia algo de monolítico e infalível em seus personagens que já não agradava tanto a alguns leitores. Por isso mesmo, os super-heróis mais complexos e novos em folha lançados pela Marvel Comics, a partir de 1961, logo fariam a cabeça da garotada nos Estados Unidos e em outras partes do mundo (como o Brasil, onde chegaram na segunda metade daquela década, como parte de uma campanha publicitária da Shell). A verdade é que com seus dramas, problemas, ideais e paixões, o Quarteto Fantástico, o Homem-Aranha, o Hulk, os Vingadores e outros super-heróis criados por Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko tomaram de assalto o mercado de quadrinhos e o imaginário ocidental. E em relação à qualidade das HQs em si, as revistas da Marvel foram as verdadeiras responsáveis pela renovação do visual nos quadrinhos norte-americanos, imprimindo mais dinamismo e estilização às páginas. Neste ponto, é claro, destaca-se acima de todos o nome de Jack Kirby, um dos maiores artistas da história dos quadrinhos e o gênio responsável por um enriquecimento sem precedentes no repertório visual e narrativo das revistas de super-heróis.

Com tudo isso, o que se seguiu ao longo dos anos foi uma disputa titânica pela preferência dos leitores, tendo como protagonistas a DC e a Marvel, além de coadjuvantes passageiras, como a Charlton. No início dos anos 70, houve um amadurecimento na temática e no visual das revistas, com o trabalho de quadrinistas inovadores como Dennis O’Neil e Neal Adams (que incorporaram questões sociais e um traço mais dramático às HQs), o que deu início à chamada “Era de Bronze dos Quadrinhos". E enquanto desenhos animados como Superamigos e Homem-Aranha cativavam o público infantil, as publicações das duas grandes editoras voltavam-se cada vez mais para o público adolescente, com desenhos mais elaborados e tramas mais complexas, refletindo o sucesso dos X-Men e dos Novos Titãs. Na primeira metade dos anos 80, a Marvel parecia ter todos os trunfos na mão, contando com os personagens mais populares e alguns dos mais destacados roteiristas e desenhistas da época, como Chris Claremont, Bill Sienkiewicz, John Byrne e Frank Miller. Mas a DC tinha Marv Wolfman e George Pérez, e tratou de contratar os principais astros da concorrente, sem falar num relativamente desconhecido roteirista inglês chamado Alan Moore, que influenciaria os rumos dos quadrinhos norte-americanos definitivamente.

O resultado foram os clássicos imediatos dos quadrinhos de super-heróis, lançados entre 1985 e 1987: Crise nas Infinitas Terras, O Cavaleiro das Trevas, Watchmen e as reformulações racionalistas dos principais personagens da DC, como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha. Com esses trabalhos marcantes, teria início o que os fãs norte-americanos chamam de “Era Moderna dos Quadrinhos”. Mas vendo sua rival retomar espaço no mercado, a Marvel reagiu reforçando as revistas dos heróis mutantes e do popular Homem-Aranha, com um visual arrojado que agradava em cheio aos leitores de fins dos anos 80. Mas sua alegria durou pouco, pois em 1992 os desenhistas Todd McFarlane, Jim Lee e Rob Liefeld, que haviam feito suas revistas baterem os recordes de vendas, deixaram a editora para fundar a Image Comics. Além disso, no que diz respeito ao conteúdo das revistas, a proposta de uma abordagem mais realista dos super-heróis (trazida por Alan Moore e Frank Miller) acabou desvirtuada numa concepção meramente pessimista e hiperviolenta, com a qual as diferenças entre heróis e vilões tornaram-se mais e mais difusas. Acumulando erros editoriais, com a concorrência de outras mídias e problemas financeiros, em meados dos anos 90 a Marvel quase faliu e as coisas na DC já não andavam muito bem (não aprender com os erros do passado é realmente um grande erro!).

Debatendo-se entre múltiplas “guerras” e “crises” Marvel e DC fizeram até “amálgamas” ao longo do caminho, sempre buscando sobreviver num mercado cada vez mais restrito e corresponder aos interesses mais imediatos dos leitores. Ao que parece, contudo, a aliança definitiva das grandes editoras não foi entre si ou com os fãs de quadrinhos, mas sim com os grandes produtores de cinema, tevê, jogos, brinquedos e outros ramos mais lucrativos da indústria do entretenimento. Embora tenham hoje condições de contratar a peso de ouro medalhões como Neil Gaiman e Joss Whedon, além de relançarem suas séries em luxuosas edições em capa-dura, as editoras de super-heróis parecem cada vez mais subsidiárias de Hollywood. E com isso, cada vez menos, os personagens que fizeram sua glória e sucesso parecem ser capazes de gerar interesse e cativar a atenção dos leitores de HQs (da forma como faziam em décadas mais simples e de menos recursos). Talvez algo da “magia” dos clássicos e até ingênuos quadrinhos do Capitão Marvel tenha mesmo se perdido definitivamente. Ou mesmo algo mais recente, como a força criativa das séries e reformulações dos anos 80, tenha já se perdido no pântano da exploração comercial e baboseiras editoriais.

Temos a tendência, é claro, de acharmos que “na nossa época” as coisas eram melhores. Mas os quadrinhos de super-heróis são um daqueles poucos casos (como o futebol, aliás) em que podemos dizer, com segurança e sem nostalgia, que antigamente as coisas eram mesmo melhores! Porque atualmente... Felizmente, temos hoje nossas coleções e também reedições de qualidade que nos permitem experimentar a magia e a força de outros tempos mais criativos e cativantes. De outras épocas ou “eras” que fizeram dos super-heróis um verdadeiro fenômeno dos quadrinhos.

8 comentários:

Ismael Sobrino disse...

O Grant Morrison também aposta pela imaginação e a psicodelia superheroica em sua última entrevista (revista Wizard). Ainda que eu não creio que na Marvel ou na DC lhe permitam imaginar muito se não existe uma catastrófica baixada de vendas.

Ismael Sobrino disse...

"3. As fantasias coloridas ou os aspectos físicos incomuns."
Essa característica fundamental é a que Morrison deseja para seus novos quadrinhos de super heróis. Os autores propõem uma fantasia quase inconsciente na que os leitores são o órgão inteligente; roteirista e desenhista seriam o Doutor Gargunza e o leitor um pequeno Miracleman mooreniano. Submergir-se nessa fantasia e emergir esporadicamente para boiar em sua superfície seria maravilhoso.

Wellington Srbek disse...

Salve! Já estava achando que ninguém iria comentar nestes dois extensos textos sobre os super-heróis...

Wellington Srbek disse...

Hola, amigo Ismael!
Não conheço esta entrevista do Grant Morrison, mas por coincidência um dos próximos textos deste blog deverá ser "O estranho mundo de Grant", no qual analiso os quadrinhos de super-heróis metalinguísticos que ele produziu nos anos 80.
Quanto a seu segundo comentário, como você bem percebeu, no texto eu aproveito a duplicidade da palavra "fantasia", que tanto pode se referir às viagens imaginárias que fazemos, quanto às roupas que os super-heróis usam (já que estas, em certa medida, são uma extensão daquelas).
A viagem id-ílica da qual você fala, pegando carona nas idéias de Grant Morrison, parece-me um pouco com o que Alan Moore intentou fazer em sua linha ABC, com as revistas de aventuras fantasiosas e personagens nostálgicos (penso aqui em Tom Strong e Tomorrow Stories especialmente). E creio que o roteirista inglês alcançou algo como uma imersão do leitor numa realidade imaginária com as edições de Promethea, que é uma verdadeira viagem iniciática não apenas para as personagens da HQ (mais detalhes sobre o tema no marcador PROMETHEA deste blog e no texto que publiquei na Fábulas Pixel n°4).
Dito tudo isso, Ismael, creio que sua explicação das idéias de Morrison sugere um passo além nessa concepção de imersão do leitor, no qual as HQs teriam a função de possibilitar uma experiência quase psicodélica, através de concepções estéticas e conceitos fantasiosos intensos. Algo que seja propositalmente surreal, no sentido de ir além dos padrões e dos esquemas a que estamos acostumados, mas que talvez ao mesmo não demande muito de uma apreensão intelectual, permitindo ao leitor imergir completamente na fantasia da história, ao mesmo tempo em que lhe dá sentido.
Não sei se minha interpretação do que você falou foi limitadora, mas de certa forma já alcançamos isso quando lemos uma boa história com a qual nos identificamos (experimentei algo assim quando li, por exemplo, as HQs do terceiro livro de Miracleman, Olympus).
Bom, o certo é que um autor como Grant Morrison terá todos os recursos técnicos e artistas de talento para colocar em prática suas experiências artístico-psicodélicas. E acredito, amigo Ismael, que as editoras não se importarão em publicar quase tudo que ele propor, pois hoje elas estão interessadas mesmo em aproveitar o talento de autores de renome que lhes rendam muito dinheiro.
Grande abraço!

Ismael Sobrino disse...

Desfrutei muito este texto, o mês passado comecei um blog junto a um amigo para render culto aos quadrinhos de Bill Mantlo e creio que suas histórias também poderiam ver-se nessa vertente da fantasia. Inconsciente ou conscientemente (eu creo sempre no domínio consciente do autor), aquelas histórias de Hulk, Micronautas ou Rom são muito especiais.
Voltei a Cloak & Dagger (Capa e Punhal em Espanha) e, asuperando a estranha tradução ao espanhol de muitos dos diálogos, cri ver a impressão de Dietrich Bonhoeffer numa história em quadrinhos de superherois. Quiçá não é importante se essa intuição é verdadeira ou não, senão o fato de que ao optar pela fantasia aqueles quadrinhos ainda serviam como projéteis na imaginação dos leitores. E este texto 'me anima' a acreditar no que tentamos criar com nosso novo blog.
Se escreves um post ou conheces algum outro blog português ou brasileiro no que falem dalgum quadrinho do Bill Mantlo fabricaremos um link de cores como os cartazes luminosos dessas cafeterias que Holywood situa nos desertos dos USA.
admiradoresdebillmantlo.blogspot.com

Wellington Srbek disse...

Não sou um grande conhecedor dos trabalhos do Bill Mantlo. Mas quando comecei a colecionar quadrinhos, eu curtia muito a série Micronautas (que era publicada na Heróis da TV) por lembrar Guerra nas Estrelas. Eu também lia a série Rom, porque afinal tinha um monte de robôs (e eu adorava robôs).
No Brasil, os nomes Cloak & Dagger foram traduzidos como Manto e Adaga. Também lia as HQs deles (pois lia simplesmente tudo que vinha nas revistinhas da Abril), mas não acho que foi publicado muita coisa deles depois que comecei a colecionar.
Já dei uma passada no novo blog e depois voltarei com mais calma para ler a entrevista e os textos. Aliás, obrigado pela divulgação do Solar no seu outro blog!
Grande abraço!

Amalio Damas disse...

Parabéns pelos textos! O tema da minha monografia da especialização foi "O Marketing e os Super-Heróis", o qual permeou alguns assuntos que você tratou aqui.

Wellington Srbek disse...

Legal que gostou dos textos, Amalio! Grande abraço!