28/12/2008
A capital brasileira dos quadrinhos.
Por mais objetivo que se queira ser, toda história é narrada de um ponto de vista, constituindo uma versão dos acontecimentos. Assim, este texto constitui-se como um relato subjetivo, baseado em memórias e documentação do próprio autor. A história que aqui conto se passa na década de 1990, quando uma verdadeira “cena quadrinística” tomou forma e se desenvolveu em Belo Horizonte, capital de Minas Gerais. Talvez para alguém que não tenha vivido aquele momento possa parecer exagero, mas como escrevi numa matéria de jornal na época, entre 1995 e 1998, BH foi a capital brasileira dos quadrinhos.
Tudo começou no início daquela década. Fanzines em xérox, aspirantes a quadrinista e os mais diversificados projetos surgiam a cada dia. Na onda de um mercado de quadrinhos em crescimento e relativo amadurecimento, várias lojas especializadas se sucederam: Livro Arbítrio, Valer, Mandarim, Gibis & Afins. Numa escola da periferia de BH, teve lugar a exposição de um grupo de desenhistas auto-intitulados os “Mutanóides Associados”. No antigo prédio da Faculdade de Filosofia e Ciências Humanas da UFMG, o italiano Piero Bagnariol ministrava um curso de quadrinhos. O mesmo Piero, que trocou as ondas do Mediterrâneo pelas montanhas de Minas, logo estrearia o programa BOOM!, veiculado por um dos primeiros canais a cabo locais.
O burburinho em torno dos quadrinhos começava a ser notado. Em 1994, a livraria Leitura Savassi assumiu o papel de principal loja especializada da cidade. No ano seguinte, uma ampliação de sua seção Quadrinhos/RPG foi montada na Leitura Amazonas. Para inaugurar o espaço, em maio de 1995, fui convidado para ser um dos organizadores da BHQ (Primeira Convenção de Quadrinhos de Belo Horizonte). Na noite de abertura, uma verdadeira multidão de fãs de quadrinhos superlotou o espaço em busca de lançamentos importados e raridades do mercado nacional. A programação durou uma semana e contou com vídeos, palestras, debates e oficinas. O evento foi um sucesso e teria uma segunda edição no ano seguinte.
Ainda em 1995, estreei uma página semanal com crítica de quadrinhos no jornal Hoje em Dia. No ano seguinte, quando fui convidado para levar meus textos sobre quadrinhos para o jornal O Tempo (lançado em novembro de 1996), a página sobre quadrinhos do Hoje em Dia foi mantida a cargo de Paulo Dias e Gustavo Marcarenhas. Na mesma época, o jornalista Marcelo Castilho Avelar já escrevia uma seção de críticas de HQs para o Estado de Minas (sendo a única mantida, de forma esporádica, até hoje). Também entre 1995 e 1996, foi minha vez de levar os quadrinhos para a telinha, quando produzi o quadro “Quadrinhos & Afins” para o programa Agenda da Rede Minas de Televisão. Lojas especializadas, convenções, páginas de jornal, matérias na tevê... Isso já faria de 1995 um ano singular. Mas teve mais!
Primeiro a Legenda, revista do Núcleo de Quadrinhos da Universidade Estadual de Minas Gerais. Em seguida, a experimental e inovadora Graffiti - 76% Quadrinhos, capitaneada por Piero Bagnariol e Marcos Malafaia. E enquanto eu produzia as edições do fanzine Ideário, consegui a aprovação pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura para os sete números da revista Solar, lançada em 1996. A ela se seguiriam as sete edições da Caliban, lançadas entre 1997 e 1998, também com o apoio da Lei de Incentivo. Essas e outras publicações, além de toda a movimentação em torno dos quadrinhos, acabaram dando origem ao Estúdio HQ. Chegando a reunir algumas dezenas de pessoas, a associação tinha uma sede própria, atuando na organização de festas de lançamento, distribuição das publicações e como espaço de confluência para pessoas interessadas em criar e publicar quadrinhos.
Pode-se dizer que um dos efeitos indiretos daquela cena quadrinística dos anos 90 foi a realização em BH da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Afinal, foram a efervescência criativa e a repercussão midiática de nosso movimento de quadrinhos que associaram fortemente o nome da cidade a essa arte. Assim, quando surgiu a proposta para que BH sediasse a Bienal, já estava disseminada a idéia de que os quadrinhos eram parte importante de sua vida cultural. Integrando as comemorações pelo centenário da capital, o evento aconteceu em outubro de 1997. Com uma estrutura admirável, que incluía diversos espaços culturais, a 3ª Bienal teve como ponto alto as fantásticas exposições de artistas franceses, belgas, italianos, norte-americanos e brasileiros.
O evento contou ainda com um concurso, palestras, debates e a presença de convidados ilustres. O fato é que, num rápido passeio pelos corredores das exposições na Serraria Souza Pinto, podia-se passar das páginas de Henfil às de David Mazzuchelli, das pinturas realistas de um Schultein ao traço cartunístico de Ziraldo. E também não era difícil encontrar-se frente a frente com figuras consagradas, como Angeli, Bryan Talbot, Jô Oliveira, Lourenço Mutarelli e Paolo Serpieri. Isso sem falar no grande homenageado da festa, o amável e genial Will Eisner (não perdi, é claro, a oportunidade de fazer entrevistas com esses convidados da Bienal, as quais você pode conferir aqui no blog).
No ano seguinte, incentivado pelo sucesso da Bienal, o movimento de quadrinhos em BH ganhou força total! Novas edições de revistas (como os últimos números da Caliban), o surgimento de jovens quadrinistas (como Cleuber da tira Arroz Integral), o retorno de veteranos (como Lacarmélio da revista Celton) e o reconhecimento dos talentos locais (como Guga, Irrthum e Chantal) fizeram de 1998 um ano especial para todos que estiveram envolvidos. O coroamento disso tudo veio com a 3ª BHQ, organizada pelo Estúdio HQ, com financiamento da Leitura Savassi e participação do recém-fundado Estúdio Big Jack (que se tornaria um dos principais produtores de quadrinhos e animações publicitárias da cidade).
Aquela convenção foi, no entanto, uma espécie de “canto do cisne” de nosso movimento de quadrinhos. O ano de 1999 trouxe dispersão de participantes e iniciativas que não se concretizaram. Para completar, a realização do primeiro FIQ (Festival Internacional de Quadrinhos) teve, para muitos de nós, o efeito de um “balde de água fria”. O fato é que a organização do evento não teve a devida participação dos produtores locais, funcionando como um desestímulo para nosso trabalho. Mas, seja pelos motivos que forem, o movimento de quadrinhos de BH já não tinha a força dos anos de 1995 a 1998. Para aqueles que participaram, porém, ficou certamente a memória de uma época única, em que BH foi a capital brasileira dos quadrinhos.
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