22/05/2008

Talento Monstruoso: uma entrevista com Steve Bissette, parte3.


Terceira parte de nossa entrevista e Steve Bissette nos conta porque motivo ele deixou a revista do Monstro do Pântano e também sobre sua experiência de editor independente com a antologia de terror Taboo.

Wellington Srbek: Para mim, Len Wein foi muito competente ao contratar um talentoso mas relativamente desconhecido roteirista, e também ao montar a equipe para a Swamp Thing. Mais tarde, Karen Berger foi muito efetiva em defender a revista quando o número 29 chegou com todo seu amor, morte e necrofilia. No entanto, você já disse que o número 46, com a história ligada a Crise nas Infinitas Terras, foi “o começo do fim” para você na Swamp Thing, o que eu acredito ter alguma relação com problemas editorias.

Steve Bissette: Bem, antes de tudo, Karen levou porrada de todos os lados com a n°29 – inicialmente, ela não estava “efetivamente defendendo” e sim na defensiva. Ela estava sob uma tremenda pressão da administração da DC, devido à Comics Code Authority (Autoridade do Código dos Quadrinhos) ter se recusado a aceitar a n°29 – primeiro pelas imagens de zumbis, o que eu rebati enviando recortes de seções de entretenimento de jornais locais (com anúncios dos últimos filmes italianos de zumbis dos anos 80 que, por sorte, ainda estavam nos cinemas). Mas aí a CCA leu a história e a implícita necrofilia e a sugestão de incesto (Abby ter relações com seu marido Matt, um morto-vivo que estava possuído pelo espírito de seu falecido tio Arcane) estourou no colo da Karen na DC. Para complicar as coisas para ela, seu superior Dick Giordano estava fora – e ele era um membro da CCA na época, então isso realmente colocou a Karen numa posição difícil. No final, foi o argumento das vendas crescentes e o apertadíssimo prazo final que fizeram passar aquela edição da Swamp Thing sem o selo de aprovação da CCA – simplesmente não havia tempo para fazer mais nada, exceto cancelar a edição, ponto final, ou lançá-la como estava. Por causa do arduamente conquistado crescimento nas vendas da revista, as apostas foram por lançar a edição sem a aprovação da CCA, e o resto é história – a Vertigo emergiu daquela decisão crucial.
Assim, Karen de fato lutou o bom combate, mas ela o fez relutantemente – o relógio estava tão contra ela, e eu era um desenhista que estava sempre tão em cima dos prazos, que a decisão final veio de um mau momento que se tornou o “momento perfeito”.
Dito isso, eu de fato senti que a intrusão dos super-heróis e de toda a maluquice do evento Crise eram tóxicas para o que estávamos fazendo. Eu fui tão contra a introdução de super-heróis logo no início que Len Wein alegou que tinha sido ele quem insistiu nisso – quando Lantern Verde, Gavião Negro e o resto da Liga da Justiça pipocaram no capítulo final do arco com Jason Woodrue / Homem Florônico, nosso primeiro arco de histórias como uma equipe [publicado nos números 21 a 24] . Foi isso que me disseram, então eu tive que aceitar. Só mais tarde Alan admitiu que tinha sido ELE quem enfiou o Universo DC no meio do quê estávamos fazendo. Eu fui contra [a introdução de super-heróis] o tempo todo, e fui bastante eloquente quanto a isso o tempo todo.
A intromissão de Crise foi só uma chateação e uma interrupção maior. Nós tivemos que lidar com ela apenas naquela edição, mas considerando quão poucas edições me restavam na série naquele ponto, eu lamento ter desperdiçado o trabalho numa edição com aquela bobajada da Crise. A Crise, infelizmente, foi só um arauto das coisas por vir: hoje quase todos os quadrinhos da DC e Marvel são construídos do plano editorial para baixo, requerendo extensivos cruzamentos e polinizações cruzadas entre as séries, e é uma porcariada pela qual eu, enquanto criador e leitor, não tenho absolutamente nenhum interesse ou paciência.
Bom, compreenda, havia outras coisas acontecendo também entre mim e a DC Comics, algumas sobre as quais não posso comentar – se quiser saber mais, confira minha entrevista no The Comics Journal n°185 e a de Rick Veitch no n°175. Basta dizer que a DC tinha, na melhor das hipóteses, tornado as coisas difíceis para eu continuar trabalhando na série, ou em qualquer outro projeto da editora. Eu finquei pé em parte graças à química e à ligação que eu sentia com Alan, John, Rick e o Monstro do Pântano, e em grande parte graças a Karen Berger. Eu sentia grande lealdade e afeição por Karen; eu gostaria que tivéssemos feito mais coisas juntos, mas eu era realmente um “artista problema” e eu entendo perfeitamente porque ela não quis fazer mais nada comigo. Mas eu só permaneci na série por tanto tempo, incluindo as subsequentes capas e roteiros especiais, graças a Karen. De qualquer jeito, o destino já estava traçado quando alcançamos o n°40, e eu cheguei ao n°50 a duras penas. Devo dizer que minha permanência na revista – o trabalho que fiz entre os números 40 e 50 – aconteceu sob uma considerável pressão. Eu não estava feliz lá, meu coração já não estava ali.

WS: Enquanto gênero, o terror tem uma longa tradição nas artes ocidentais, tirando sua força vital do imaginário grotesco. O artista flamengo Hieronymus Bosch, o artista germânico Albrecht Dürer e o espanhol Francisco de Goya são três dos grandes mestres da tradição grotesca. Claro que vemos referências ao trabalho desses mestres nas páginas da Swamp Thing. Você estava realmente desenterrando as raízes do terror, não estava?

SB: Sim, e eu teria ido mais longe, caso tivesse a oportunidade. A Taboo foi para onde eu fui após a Swamp Thing, e eu acho que ela é uma melhor representante de minha filosofia pessoal e devoção ao gênero. Tenho muito orgulho da Taboo e de tudo que essa antologia incorporou e alcançou.

WS: À sua maneira, a série Swamp Thing abordou temas raciais, sexuais e ambientais. Como você vê o papel dos quadrinhos em abordar temas sociais e políticos?

SB: Eu estava na ponta dos cascos nos anos 80, e eu realmente coloquei o máximo disso que pude (o que fosse possível em meros 30 dias) em histórias como “The Nukeface Papers”. John Totleben, Tom Yeates (especialmente Tom) e eu também trabalhamos na época em projetos como Real War Stories e coisas do tipo – e devo também notar que o exército dos Estados Unidos montou uma batalha legal, a qual eles perderam, contra Real War Stories. Neil Gaiman, Michael Zulli e eu trabalhamos numa história para PETA, Rick Veitch e eu doamos trabalho e desenhos para o projeto inicial da editora Mad Love do Alan, a revista AARGH destinada a angariar fundos para combater a homofobia no Reino Unido. Nós fizemos o que pudemos durante nossa temporada na Swamp Thing, dentro dos parâmetros de uma revista-em-quadrinhos da DC de meados dos anos 80. Na época, eu sentia que era possível efetivamente abordar temas sociopolíticos nos quadrinhos. Dito isso, você mexeu num vespeiro com esta pergunta. Por um lado, nenhum ativista anti-nuclear que eu conheça jamais levou “Nukeface” a sério – mas um monte de gente notou o impacto que aquela história teve neles pessoalmente (se não acredita no que digo, veja o comentário espontâneo de um leitor no meu blog hoje,
http://srbissette.com/?p=1396#comments, que chegou ENQUANTO eu estava escrevendo esta resposta para você, Wellington). O gênero do terror, no meu entendimento, é um meio muito efetivo de abordar males sociais, mas aqueles ativamente engajados em lutar contra tais males geralmente desprezam o gênero, então é um tipo de círculo vicioso, conceitualmente. Ainda assim, eu acho que ele é válido e tem sua força.
Na cultura pop, filmes alcançam muito mais pessoas do que os quadrinhos; assim, eu vou discutir, por um momento, minhas percepções sobre o gênero naquele meio, para enfatizar o que quero dizer. Por exemplo, eu escrevi longamente algumas vezes sobre como a presidência de George W. Bush gerou um ciclo de filmes de terror que trataram de temas com os quais o público norte-americano só recentemente lidou. Na minha percepção, todo o subgênero do “terror de amnésia” (The Jacket, The Mechanist, etc.) foi a forma de a cultura pop lidar com o fato de o país não querer tratar das consequências de sua política exterior; o chamado ciclo de filmes de “tortura” (Hostel, Saw, Captivity, etc.) foi a primeira e por algum tempo a única abordagem das consequências de Abu Ghraib e Guantânamo; e pérolas como o brilhante Frailty de Bill Paxton refletiram e anteciparam, com perspicácia, clareza e invariável honestidade, toda a era Bush.
Dito isso, os quadrinhos são uma mídia muito potente. Mas eu acho que o quer que tenhamos feito em Swamp Thing foi relativamente insignificante se comparado à integridade e força de, digamos, Palestina de Joe Sacco. Joe realmente inaugurou uma forma de jornalismo em quadrinhos mais poderosa do que qualquer outra que eu tenha visto desde as graphic novels do pós-Segunda Guerra, como Southern Cross. Mesmo em quadrinhos de gênero, é significativo que a antologia de FC / terror e ativismo ambiental Slow Death tenha se transformado, após umas poucas edições, numa forma mais jornalística, culminando em trabalhos como os de Greg Irons e Bill Stout. A infindável procissão de tratados religiosos de Jack T. Chick demonstrou QUÃO poderosos os quadrinhos podem ser em atingir as pessoas onde elas vivem – se ao menos aquele tipo de panfletagem em quadrinhos estivesse sendo direcionada a alvos que importam.
Eu ainda acredito que eles são uma mídia notavelmente efetiva em abordar todo e qualquer tema social, político e religioso, mas da minha parte eu fiz muito pouco para contribuir com essa crença. Nunca há tempo ou dinheiro bastante, raramente um veículo viável – sempre que busquei isso, terminou com os cartunistas (que são, em sua maioria, um bando empobrecido) doando tempo, trabalho, desenhos e por aí vai, trabalhando com caras que são pagos por seu tempo e esforços. Agora que estou na casa dos 50, eu me cansei daquele processo de convite / proposta / trabalho / esboços / voluntarismo quando estou eu mesmo, muitas vezes, mal ganhando o bastante para viver. Dito isso, eu tenho alguns apaixonados e talentosos jovens cartunistas no Center for Cartoon Studies que são absolutamente dedicados a este caminho, e eu tenho dado todo o apoio a eles. Eles são jovens e estão na ponta dos cascos – então eu farei tudo que puder para ajudá-los.

WS: Em 1989, você começou a publicar Taboo, a antologia de terror em que os primeiros capítulos de From Hell e Lost Girls foram inicialmente publicados, junto com outros trabalhos inovadores. Por favor, explique a seus leitores no Brasil por que a Taboo foi tão controversa? E por que ela foi cancelada em 1995?

SB: Você deve lembrar que a Taboo precedeu a Vertigo e toda a explosão de quadrinhos de terror nos anos 90. Quando John Totleben e eu fundamos a Taboo no fim dos anos 80, Swamp Thing era um dos poucos quadrinhos de terror existentes; exceto pelos aspectos de terror de X-Men e a série de breve duração Night Force da DC, nós éramos os ÚNICOS quadrinhos de terror nas bancas. O mercado de vendas diretas, as lojas especializadas em quadrinhos tinham umas poucas antologias como Twisted Tales, Death Rattle e Tales of Horror (com as quais John Totleben e eu contribuímos), mas isso era café pequeno e tudo muito no estilo dos quadrinhos de terror pré-Código, da EC nos anos 50. Como eu escrevi em nosso “Manifesto Taboo”, o que quebrava tabus e era subversivo em 1954 certamente não o era mais nos anos 80. Assim, nossa vontade básica de fazer a Taboo emergiu de um relativo vácuo no gênero. Em nossa percepção, ninguém estava realmente lidando nos quadrinhos com o potencial do gênero, não na maneira que víamos o gênero crescer e se expandir no cinema e na literatura, através do trabalho de cineastas como David Cronenberg e escritores como Clive Barker.
Assim, nós lançamos a Taboo antes dos quadrinhos com os quais SEUS leitores cresceram. Nós também sentíamos intensamente que os melhores trabalhos novos no gênero, como as histórias de Charles Burns na RAW, não estavam sendo percebidos, nem apresentados COMO terror. Os quadrinhos de terror inovadores estavam sendo marginalizados e não sendo reconhecidos como terror – presumia-se que o terror nos quadrinhos tinha que envolver os elementos comuns do gênero. John e eu sentíamos que isso era uma realidade obsoleta que estava estrangulando o potencial dos quadrinhos de terror.
Assim, com o apoio e o financiamento de Dave Sim, nós lançamos a Taboo. Levou quase três anos para termos o primeiro volume pronto e lançado, e tudo começou daí. Fomos banidos de muitos países, incluindo Reino Unido e Canadá; tivemos constantes problemas para encontrar gráficas que aceitassem imprimir o trabalho e mesmo uma empresa para fazer o acabamento dos livros impressos! A fusão da Taboo entre o terror tradicional e não-tradicional, e a inclusão de imagens e temáticas adultas (como a cândida sexualidade de From Hell, Lost Girls e outras histórias) de fato mostraram-se contínuas fontes de problemas em várias frentes.
Taboo nunca vendeu excepcionalmente bem; ela era cara para se produzir e alcançava na melhor das hipóteses cerca de 10.000 leitores. Embora ela tenha se provado influente de várias maneiras, a Taboo nunca foi um sucesso – a primeira edição foi lucrativa e os lucros foram divididos entre os colaboradores, e então eu passei a perder dezenas de milhares de dólares por cerca de cinco anos, dando continuidade ao projeto. Kevin Eastman e a Tundra financiaram a Taboo da quarta à sétima edição e também a Taboo Especial. Entretanto, tão-logo a Tundra começou a relançar os capítulos de From Hell que já tínhamos publicado na Taboo, isso eliminou quaisquer vendas que tínhamos graças a From Hell. Isso realmente foi um golpe mortal. Por que comprar a Taboo se bastava você esperar quatro meses para comprar os mesmos capítulos de From Hell em seu próprio título? Foi uma estratégia de publicação kamikaze [por parte da Tundra], mas eu não sentia que tinha qualquer direito de combatê-la – afinal, eu estava pagando aos colaboradores apenas 100 dólares por página, que Alan Moore e Eddie Campbell dividiam, e a Tundra estava oferecendo a eles mais dinheiro para continuarem o projeto. Assim, From Hell saiu como uma série pela Tundra, eu continuei subsidiando From Hell por mais umas duas edições da Taboo e nossas vendas continuaram afundando.
Além disso, a Tundra simplesmente não compreendia a Taboo. Eles também, após From Hell, passaram a ver a antologia somente como um campo de cultivo para “novos títulos” – a Tundra considerava, por exemplo, que eles poderiam por extensão relançar qualquer série publicada na Taboo, incluindo Lost Girls (o que fizeram, brevemente) e a Sweeney Todd de Neil Gaiman e Michael Zulli. Mas os dois não viram isso como algo viável e rechaçaram os avanços iniciais da Tundra; fiquei contente por Neil e Michael terem percebido o dano que as reedições de From Hell tinham feito à Taboo e eles se solidarizaram, mantendo a Taboo como o veículo escolhido para o seu Sweeney Todd. Isso rapidamente gerou indevida má vontade para comigo, a Taboo, Neil e Michael, como se fôssemos ingratos ou filhos mimados ou algo assim, por simplesmente não seguirmos o precedente de From Hell.
Tudo aconteceu em poucos meses, na verdade. As relações entre mim e a Tundra azedaram com a má gerência deles em muitas coisas, incluindo a Taboo, mas eu era o menor dos problemas deles, uma vez que Kevin já estava desmantelando a Tundra. Graças ao sucesso financeiro que Alan, Rick Veitch e eu tivemos com [a minissérie] 1963 para a Image Comics, eu fui capaz de negociar um acordo oneroso (para mim), indenizando Kevin Eastman para ter a Taboo totalmente livre. Isso me custou um monte de dinheiro, mas valeu a pena. Eu deixei a poeira baixar e então negociei com Denis Kitchen a publicação dos dois volumes finais da Taboo, o 8 e 9, para assegurar que eu honrasse meu compromisso com os colaboradores. Eu devolvi todos os trabalhos para os colaboradores, incluindo trabalhos pagos mas jamais publicados, e resolvi tudo de uma vez por todas.
O experimento chegava ao fim. Eu acho que foi bem-sucedido, em seus próprios termos, e o tempo parece ter comprovado isso.
Eu aprendi muito, a um grande custo, e muita coisa boa veio da Taboo – incluindo trabalhos publicados, como From Hell e Lost Girls, entre outros. No fim, a Taboo era um anacronismo. Karen Berger tinha sido bem-sucedida no lançamento da Vertigo, e a Vertigo levou o gênero ao próximo nível. Nós tínhamos provado nossa idéia: os quadrinhos de terror não eram apenas este estreito e pequeno gueto que precisa, para vender, de anfitriões horrendos, piadas ruins e histórias de vingança sanguinolentas. Provamos que o terror era uma maneira de ver o mundo, de expressar uma visão da realidade, e que ele era um gênero tão expansivo e expressivo quanto qualquer outro. Nós não deixamos dúvidas quanto a isso, creio eu, através dos trabalhos que apareceram na Taboo. Então a Vertigo levou tudo bem mais adiante e, tendo como apoio a maior musculatura da DC e da Time-Warner (agora AOL Time-Warner), funcionou. Taboo arrastou os quadrinhos de terror para os anos 90, disse ao que veio, e então saiu da porra do caminho após sua temporada sob o luar.
Foi uma boa jornada, o projeto certo na hora certa. Eu não tenho arrependimentos.

A seguir: Na quarta parte de nossa entrevista, Steve Bissette explica tudo que você gostaria (ou deveria) saber sobre a minissérie 1963 e seu problemático “Anual perdido”, e também fala de: Zé do Caixão!

4 comentários:

Unknown disse...

Sberk, parabéns pelo blog, meu cara. Super ressenhas!

Wellington Srbek disse...

Grande Lelis! Seja bem-vindo e volte sempre, meu caro!

Gustavo Carreira (requiem) disse...

Magnífica entrevista, Wellington, e excelente tradução, também.
Abraço

Wellington Srbek disse...

Olá Gustavo,
Bom lê-lo novamente por aqui!
Obrigado. A parte 4 da entrevista estará disponível neste domingo em inglês e a seguir em português.
Por hora, grande abraço!