19/05/2008

Talento Monstruoso: uma entrevista com Steve Bissette, parte2.


Segunda parte de nossa entrevista exclusiva e Steve Bissette revela detalhes de como foi trabalhar com Alan Moore e John Totleben na revolucionária série do Monstro do Pântano.

Wellington Srbek: Se eu tivesse que escolher um único quadrinho que tenha me influenciado como quadrinista, sem dúvida que seria a Swamp Thing n°21 com a história “The Anatomy Lesson”. Ela tirou seu nome de uma famosa pintura de Rembrandt e é, em sua própria maneira, uma “lição” de como escrever quadrinhos. Você e John Totleben já conheciam o trabalho de Alan Moore das páginas da Warrior, assim trabalhar a partir daquele roteiro deve ter sido uma experiência absolutamente empolgante.

Steve Bissette: “The Anatomy Lesson” foi minha estréia trabalhando sobre um roteiro de Alan, e ela foi um verdadeiro despertar. Alan condensou em seu roteiro quase TUDO que eu havia penado para fazer em quadrinhos, mas nunca tive a clareza e habilidade como escritor para realizar, a despeito de já estar trabalhando profissionalmente com quadrinhos por mais de seis anos. Naquele ponto, John e eu de fato já vínhamos lendo o trabalho de Alan na Warrior (e eu na 2000 AD) por mais ou menos três anos, e meu bom amigo Rick Veitch era também parte daquele improvisado fã-clube colonial de Alan Moore – por isso, Rick foi a primeira pessoa a quem eu mostrei o roteiro, e ele me ajudou a desenhar umas três páginas de “The Anatomy Lesson” para que eu cumprisse o prazo. Foi um esforço em conjunto, e já então John e eu havíamos começado a trocar longas cartas e pacotes com Alan via correio vagaroso, através do Atlântico (isso foi muito, muito antes da internet e do e-mail).
Embora eu tenha também lido seu roteiro para Swamp Thing n°20, eu não desenhei aquela edição e ela também não era representativa do quê Alan era capaz de fazer. Algo que Alan conseguiu realizar bem em “The Anatomy Lesson” foi incorporar técnicas narrativas e uma orientação para a narrativa que eu associo com os filmes de Nicolas Roeg dos anos 70, que permanecem entre meus favoritos de todos os tempos. Em nossas primeiras cartas, Alan e eu rapidamente estabelecemos que esse era um de nossos pontos comuns de interesse, uma influência que eu também reconheci nas histórias e na graphic novel de Luther Arkwright de Bryan Talbot. Essa concepção – a qual eu posso melhor descrever como sendo algo do tipo contar uma história a partir do meio, quase como um mosaico, criando ligações não-lineares na mente do leitor, particularmente em sintonia com como imagens e ações reverberam além dos modelos tradicionais de narrativa – foi algo central para o que eu há muito QUERIA fazer nos quadrinhos, mas não conseguia achar uma maneira. Alan fez isso sem esforço, em somente vinte e três páginas. Magia.

WS: É amplamente sabido que Alan Moore aceitava contribuições suas e de John Totleben para os roteiros, fazendo de Swamp Thing realmente um trabalho colaborativo. O uso de Etrigan e a criação de John Constantine são exemplos de sugestões que vocês deram a ele, certo?

SB: Bem, sim, embora elas tenham se desenvolvido de forma bem diferente. Resumidamente, quando Marty Pasko ainda escrevia Saga Of The Swamp Thing (ele foi o escritor do número 1 ao 19), John Totleben e eu confabulamos um pacote de idéias e as postamos para Marty e nosso editor Len Wein [e um dos criadores do Monstro do Pântano]. Entre elas estava o conceito envolvendo o demônio Etrigan, que nós articulamos com uma premissa bem semelhante ao que Alan escreveria no fim, incluindo a escola para crianças autistas, o Rei Macaco (da série original The Demon de Jack Kirby) e por aí vai. Minha (primeira) esposa, com quem eu era casado na época, trabalhava numa escola para crianças autistas em Wilmington, Vermont, chamada The Green Meadows School. Significativamente, quando Alan selecionou aquele conceito como um dos que gostaria de desenvolver, ele escreveu e conversou longamente com minha primeira esposa Nancy O’Connor (ela também co-editou e co-publicou Taboo n°1 e 2). As conversas de Alan com ela deram, de forma considerável, substância à história e eu desenhei muitos dos colegas de trabalho de minha esposa como colegas de trabalho da Abby [amiga e depois amante do Monstro do Pântano]. Nosso (falecido) amigo Michael Anderson, que trabalhava em Green Meadows na época, também fez alguns dos “desenhos de criança” que eu usei na página dupla do capítulo final e no meio da história. Michael tinha um estilo de desenho genuinamente primitivo e isso funcionou belamente naquele contexto.
Constantine aconteceu de forma diferente. Distintamente da sequência de histórias com Demônio / Rei Macaco [publicada nos números 25 a 27] ou Nukeface [dos números 35 e 36] – personagem este que foi inteiramente uma criação de John Totleben, num conceito de história que John e eu tínhamos trabalhado um pouco, embora também não na extensão que Alan faria no fim – Constantine surgiu de uma piada interna de artistas. John e eu éramos grandes fãs da então nova banda The Police, e eu achava que o Sting tinha realmente uma cara impressionante. Eu o desenhei no meio dos curiosos no fim do primeiro capítulo da história do Demônio / Rei Macaco, e John arte-finalizou-o com cuidado. Nós dissemos a Alan na época: “Olha, nós vamos continuar colocando o Sting no fundo de qualquer cena de multidão, é melhor você pensar num personagem para ele, já que ele não vai embora tão cedo”. Alan fez exatamente isso, pegando um pouco emprestado do Jerry Cornelius de Michael Moorcock, enquanto nós – incluindo Rick Veitch, que acabou sendo o desenhista da edição em que John Constantine estreou – adaptamos o personagem Ace-Face que Sting fez no filme Quadrophenia para combinar com o que Alan havia bolado. Funcionou muito bem, embora nenhum de nós tenha pensado nem por um nano-segundo que John Constantine duraria mais que o Monstro do Pântano, muito menos que ele teria sua própria revista ou ajudaria a lançar o que se tornaria a influente linha Vertigo de nossa editora Karen Berger.

WS: Seu trabalho com John Totleben em Swamp Thing tem um senso de composição e uma qualidade gráfica que faltam na maioria dos quadrinhos das grandes editoras norte-americanas. A arte-final dele sempre traz substância e atmosfera para seus desenhos, mas ao mesmo tempo a página finalizada é tão “orgânica” e expressiva que parece ser o trabalho de um só artista. Como você explica esse grau de sinergia artística?

SB: Eu não posso explicar, realmente. Era como se fosse o trabalho de uma terceira pessoa, nossa química era realmente algo único, e eu digo isso sem vaidade, com toda modéstia.
John e eu realmente nos ligamos quando nos conhecemos na Kubert School – ele chegou um ano depois de mim e fez parte da segunda turma de alunos. Nós combinávamos em muitos níveis, incluindo nossa formação católica e o amor partilhado por filmes, quadrinhos e livros de terror. John, deve-se dizer, era o verdadeiro devoto do Monstro do Pântano e de Berni Wrightson [desenhista co-criador do personagem], mais que qualquer um de nós – todos adorávamos o trabalho de Berni e o que ele e Len tinham feito em Swamp Thing, mas John já estava desenhando sua peculiar abordagem do personagem antes e durante a Kubert School. Foi John quem trouxe aquele conceito do personagem ser um verdadeiro homem vegetal, coberto de musgo e líquen, infestado de insetos – quando nosso colega de classe Tom Yeates conseguiu o trabalho como desenhista de Saga Of The Swamp Thing, John passou a ser seu assistem na secunda edição. Foi a concepção de John para o personagem que nós acabamos fazendo, o que por pura sincronicidade alinhou perfeitamente com a concepção que Alan tinha do Monstro do Pântano. De fato, as PRIMEIRAS cartas de Alan para mim e John expressavam aquela concepção, e ambos respondemos: “SIM!”.
Antes do envolvimento de Alan, John tinha feito um adorável desenho do Monstro do Pântano como ele o imaginava. Um dia, Tom Yeates mostrou o desenho para Len Wein, e na época Len achou que era “arrojado demais”. Isso deve ter sido durante o primeiro ano de Tom trabalhando com Marty Pasko em Saga Of The Swamp Thing. Quando Alan chegou e propôs uma abordagem muito similar do personagem, com a fundamental “The Anatomy Lesson” e a idéia de o Monstro do Pântano regenerar um novo corpo, Len topou tudo. Isso foi, novamente, uma maravilhosa porção de sincronicidade, e não poderíamos estar mais felizes. Quando John e eu fizemos os testes para assumir a arte de Swamp Thing, nós apresentamos dois conjuntos de páginas de amostra: John arte-finalizando meu lápis numa sequência imaginária envolvendo um sapo mutante gigante, e minha arte-final sobre o lápis de John numa sequência envolvendo Nukeface. Len gostou do que viu e entendeu naquele momento que eu era um desenhista melhor em termos de narrativa e composição de página – John não tinha realmente feito qualquer narrativa mais longa naquele ponto de sua carreira, enquanto eu já tinha trabalhado para Joe Kubert em Sgt. Rock, uma série de quadrinhos de terror para revistas de pesquisa e undergrounds, bem como histórias para Heavy Metal, Epic, Bizarre Adventures e por aí vai. A arte-final de John realmente trouxe vida a meu lápis de uma forma que eu não conseguia então, assim não há dúvida de que Len fez a escolha certa em como deveríamos trabalhar juntos.
Após mais ou menos um ano na Swamp Thing, John já dominava a narrativa também: ele fez um trabalho solo num roteiro de Bruce Jones para Twisted Tales e depois, é claro, ele e Alan colaboraram no que é a obra-prima de John nos quadrinhos: Miracleman: Olympus. Eu gostaria de pensar que John pegou algo desse traquejo por trabalhar comigo, mas foi realmente por trabalhar com Alan, a partir dos roteiros de Alan – que é um narrador tão consumado que é quase impossível não ter sua mente alterada e expandida como artista depois de ter trabalhado com ele. O trabalho que John e eu fizemos juntos em Swamp Thing, especialmente durante nossos primeiros dois anos, realmente foi uma fase fantástica para nós. Nós sabíamos que estávamos “mandando ver”, que estávamos realizando algo. Nós também sabíamos que aquilo era finito, que um dia acabaria, então nós nos forçamos a experimentar e desafiar a nós mesmos e fazermos absolutamente o melhor trabalho que pudéssemos. Na época, foi como algo mágico.
Anos depois, quando Neil Gaiman pediu que John e eu desenhássemos seu roteiro “Jack-in-the-Green” para Midnight Days, nós rapidamente pulamos de volta no barco, embora essa experiência tenha sido comprometida pela usual sacanagem que rola na DC. Ainda assim, foi divertido e nós voltamos à velha forma. Neil nos congratulou, dizendo que ele temia que nós não conseguíssemos repetir a química, mas nós conseguimos. Foi como calçar novamente um velho e confortável casaco ou par de chinelos – foi bom por nove páginas (John fez uma página sozinho). Mas ambos sabíamos que era uma revisita ao passado e levamos a coisa toda assim, com um tanto de melancolia ligada ao processo (incluindo todo o nonsense da DC nos bastidores), apropriada ao roteiro de Neil.
Eu decidi que não poderia ter um melhor canto de despedida da indústria dos quadrinhos, daí meu “Adeus” e minha assinatura no final. Ninguém deu a mínima, ninguém tomou conhecimento na época, mas ao menos eu me despedi de todos na saída, e foi um veículo adequado para isso – com meu velho amigo John fazendo sua mágica sobre meus desenhos uma última vez.
Devo também mencionar que John e eu descobrimos mais tarde contra quem estávamos competindo para conseguir o trabalho em Swamp Thing ainda em 1983. Dave Gibbons era um dos artistas na disputa, e Art Suydam. Eu tenho um esboço feito por Suydam de sua visão para o Monstro do Pântano que ainda é interessante: com olhos de sapo, num visual bem anfíbio. Nós não tínhamos idéia de estar competindo contra aquelas artistas!

WS: Vamos falar da Swamp Thing n°34 com sua bela capa pintada e a incomum história “Rites of Spring”. Seguindo o exemplo da peça musical de Stravinsky que lhe deu o título [A Sagração da Primavera], a edição é um experimento com a linguagem e também uma transgressão nos temas. Afinal de contas, tubérculos alucinógenos e sexo com vegetais nunca foram lugares-comuns nos quadrinhos. Por favor, faça algum comentário sobre essa edição, porque eu acho que só quero dizer muito obrigado por ela e também pelos fabulosos números 35 e 36 com “The Nukeface Paper”!

SB: "The Rites of Spring" foi outra daquelas histórias produzidas por Alan que emergiram de idéias que John ou eu sugerimos. Enquanto estávamos mandando bala na história do Demônio / Macaco Rei, eu escrevi um postal para o Alan dizendo: “Se Abby fosse uma pessoa de verdade, a esta altura ela já estaria louca de pedra, dado todos os horrores que ela encarou. Por que nós não propomos a Karen uma edição individual na qual nada de terrível acontece – apenas um dia no pântano, com Abby e o Monstro do Pântano curtindo a companhia um do outro? O relacionamento deles merece alguma paz e uma chance para expressar seu amor”. Foi algo assim, escrito a mão num cartão postal. Alan absolutamente amou a idéia e sugeriu-a para Karen, e isso se tornou "The Rites of Spring", nosso quadrinho de amor.
Os tubérculos alucinógenos que figuraram tão proeminentemente naquela edição foram uma idéia de Rick Veitch, sobre a qual ele e John tinham conversado, anos antes de qualquer um de nós trabalhar com o Monstro do Pântano, numa festa na casa de nosso colega na Kubert School, Tim Truman. Após algumas cervejas, eles estavam conversando, na cozinha de Tim e Beth Truman, sobre o que John poderia / deveria fazer se ele tivesse a chance de desenhar o personagem, e quando John falou sobre esses tubérculos semelhantes a batatas crescendo nas costas do Monstro do Pântano, Rick sugeriu que eles tivessem propriedades psicodélicas, como cogumelos ou peyote. Nós rimos pra caralho e nunca nos esquecemos daquilo – John sugeriu a idéia para Alan em uma das muitas cartas que trocaram de mãos, e Alan acabou usando aquele conceito para estruturar toda a "The Rites of Spring".
Um dos meus quadrinhos alternativos favoritos era a revista Light de Greg Irons, a qual era composta principalmente de uma série de desenhos transformativos de página inteira em pincel e tinta. Alan conhecia esse trabalho e também a afinidade de John pelos quadrinhos alternativos de Rick Moscoso, então acho que isso influenciou sua visão final para "The Rites of Spring", o que forneceu um esplêndido veículo para a abordagem que John e eu adotamos. Nós incorporamos muitas colagens a umas das páginas, no que eu devo citar a influência de Jack Kirby também. Eu tinha feito várias experiências com colagem em meu trabalho antes da Kubert School, incluindo alguns trabalhos publicados em Johnson State College – basicamente ilustrações para programas de teatro e dança. Para mim, no entanto, "The Rites of Spring" foi principalmente uma “viagem” influenciada por Greg Irons, cujo trabalho teve uma enorme influência no meu, algo que é mais evidente naquela história que em qualquer outro lugar. Mais tarde nós dedicamos a segunda parte da história dos “vampiros aquáticos” [da Swamp Thing n°39] para Greg, depois de sabermos de sua morte acidental na Ásia.
Quanto a Nukeface, agradeça a John Totleben, Wellington. A concepção do personagem foi toda do John, eu adicionei a idéia de usar a cidade carvoeira na Pennsylvania com os furiosos fogos subterrâneos como locação, o que (o video game e filme) Silent Hill usou mais tarde, embora o que Alan bolou foi muito melhor do que John e eu tínhamos proposto. Mas Nukeface, começando de seus hábitos beberrões, foi todo uma cria de John. O que foi desapontador nessa experiência foi uma crítica no The Comics Journal que delirou sobre a história, mas desmereceu meu trabalho e de John como sendo “um típico quadrinho de super-heróis” da época. Eu escrevi para o Journal esclarecendo que John tinha na verdade criado o personagem e conceito, e o crítico ao menos deu algum crédito a ele; uma curta resposta tristemente típica do Journal. Vivendo e aprendendo.
Nós nunca recebemos crédito pelos conceitos para histórias, embora Alan sempre tenha reconhecido, em entrevistas, nosso papel aí. A DC não queria dividir ou dar crédito, temendo que pedíssemos mais dinheiro ou que isso pudesse diluir a força da estrela ascendente de Alan ou algo assim – nós não nos importávamos realmente. Não importava para nós; nós estávamos trabalhando tão bem como equipe que não nos importávamos com qualquer coisa, salvo sermos deixados em paz para produzir a revista da melhor forma possível dentro do apertado prazo mensal em que trabalhávamos. Sempre que o pessoal na DC fazia jogo duro para reembolsar John e eu pela parte de nossas contas telefônicas envolvendo as ligações para a Inglaterra, nós tínhamos que lhes lembrar das edições que tínhamos idealizado de graça e sem crédito, e eles então de má vontade nos reembolsavam pelos custos das ligações. Na época, nós estávamos trabalhando para a DC pelo preço de página mais baixo, e sabíamos disso. Assim, as casuais concepções para histórias, co-roteirizações sem crédito ou conceitos para personagens foram basicamente barganhados pelo reembolso de nossas ligações para o Reino Unido. Não foi um mau negócio para DC, hein?
Entre as muitas propostas que eu enviei à DC / Vertigo ao longo dos anos e que não deram em nada, estava uma sugestão de sequência para a história de Nukeface, chamada "The Nukeface Manifesto". Eu a postei em meu saite anos atrás no http://www.comicon.com/
, e Rich Handley a incorporou a seu saite sobre o Monstro do Pântano. John me deu sua aprovação para fazer essa história, mas a DC / Vertigo não respondeu – c’est la vie.

A seguir: Steve Bissette conta porque deixou a revista Swamp Thing e nos explica o que foi a Taboo, sua polêmica antologia de terror.

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