16/05/2008

Talento Monstruoso: uma entrevista com Steve Bissette, parte1.


Quando penso em que artistas dos quadrinhos eu gostaria de entrevistar, o nome Steve Bissette está bem no topo da lista! Junto com Alan Moore e John Totleben, ele criou minha HQ favorita: The Saga of the Swamp Thing n°s 21-27. Nesta extensa e detalhada conversa em quatro partes, nós falamos sobre a revolucionária série do Monstro do Pântano, sua experiência de editor independente com a revista Taboo, sobre a problemática minissérie 1963 e muito mais.

Wellington Srbek: É uma grande alegria estar falando com você, Steve. Por favor, diga aos leitores brasileiros onde e quando você nasceu e como a arte dos quadrinhos entrou em sua vida?

Steve Bissette: Nasci em Burlington, Vermont, na Nova Inglaterra, em março de 1955. Eu cresci em Vermont, e ainda vivo em Vermont, embora tenha viajado muito e vivido por um tempo em Nova Jersey (quando frequentava a Joe Kubert School of Cartoon & Graphic Art, Inc., em 1976-78 e um ano depois) e no Novo México. Havia quadrinhos por toda parte quando eu era criança – ainda vendidos no que chamávamos de lojas “do Papai e Mamãe”, em expositores giratórios e nas lojas de cigarros e revistas – e todo garoto da vizinhança que eu conhecia tinha quadrinhos. Eles ainda eram bem baratos então (10 a 25 centavos de dólar), assim eu fui apresentado às revistas-em-quadrinhos ainda bem novinho. Meus favoritos eram os quadrinhos de aventura da Dell, como Tarzan (desenhado por Jesse Marsh), Turok Son of Stone e Kona – Monarch Of Monster Isle (desenhos de Sam Glanzman), os quadrinhos da Atlas pré-Marvel com as histórias de monstros de Jack Kirby e Steve Ditko, e os quadrinhos de guerra e ficção científica/fantasia da DC, nos quais eu vi pela primeira vez os desenhos de Joe Kubert. "A guerra que o tempo esqueceu" com as histórias de soldados-versus-dinossauros foram uma obsessão de infância. Eu copiava os desenhos em todas aquelas histórias, e copiava qualquer ilustração da pré-história de Charles Knight que eu pudesse encontrar (inicialmente em enciclopédias), que foi como comecei a desenhar com três ou quatro anos.
Com cinco ou seis anos eu desenhava meus próprios quadrinhos, depois de ver Mitch Casey, meu vizinho ao lado em Duxbury (VT), desenhar seus próprios quadrinhos com caneta esferográfica. O título era “Ataque das Moscas Tse-Tse Gigantes” e eu adorei, e tinha que desenhar os meus também. Eu desenhava minha própria versão dos filmes de terror e monstros gigantes dos anos 50 que eu via na televisão, e copiava fotos de Famous Monsters of Filmland – tudo começou ali.
Quando adolescente, foram os quadrinhos underground que me inspiraram a fazer meus próprios quadrinhos. ZAP fundiu minha cuca, como era seu objetivo, e não pude me fartar dos undergrounds; foi o trabalho de Greg Irons que realmente abasteceu meu próprio trabalho mais tarde, embora eu também deva notar a profunda influência que o cinema teve em meus desenhos e escrita. Os monstrous de Ray Harryhausen's (as criaturas de animação em stop-motion em The 7th Voyage of Sinbad, Jason and the Argonauts, etc.), os filmes de terror de Mario Bava e os faroestes de Sergio Leone, a abordagem sem nonsense da narrativa e dos personagens feita por Don Siegel e Sam Peckinpah, Night Of The Living Dead de George Romero e tudo que ele fez depois, os incríveis clássicos de Nicolas Roeg nos anos 70 como Performance, Walkabout and Don't Look Now – tudo isso e mais tiveram impacto em tudo que fiz e ainda faço, Bava e Harryhausen acima de tudo.

WS: Em 1978, você se formou na primeiríssima turma da Joe Kubert School of Cartoon & Graphic Art. Essa escola ofereceu aos quadrinhos norte-americanos outros nomes importantes como Timothy Truman, Rick Veitch e John Totleben. Você pode nos dar uma idéia de como era lá? Que tipo de cultura foi responsável por fermentar tal qualidade criativa?

SB: Quando frequentei a escola, era tudo uma grande experiência e muito íntima. Nós tínhamos um extraordinário acesso individual aos instrutores, Joe Kubert mais que nenhum outro – naquele primeiro ano ou algo assim, o estúdio de Joe era na própria escola, que era a Mansão Baker (agora um dormitório para a escola). Era um tipo de monastério também, em que estávamos tão focados em nosso desenho e quadrinhos que tudo mais no mundo parecia bem distante, e para alguns de nós (incluindo eu mesmo) foram uns dois anos bem celibatários. Toda minha energia era inteiramente devotada a meus quadrinhos: muitos de nós trabalhávamos quase dia e noite, nós desenhávamos, bebíamos, líamos, comíamos, dormíamos e cagávamos quadrinhos. Era uma incrível incubadora, e para alguém como eu que tinha como objetivo fazer meu caminho no mundo COMO um cartunista e indivíduo criativo, ganhar a vida com meu trabalho, a Kubert School foi uma verdadeira dádiva divina.
Desde então, eu visitei a escola, que em alguns sentidos continua a mesma – ela ainda parece ser, antes de tudo, uma verdadeira panela de pressão para a criação de quadrinhos – mas muito diferente. A Mansão Baker e o prédio do dormitório em que morávamos (originalmente um estábulo) ficavam num pequeno oásis arborizado, longe da empobrecida ruína suburbana que é Dover (NJ); a nova escola é apenas a uns poucos quarteirões do centro de Dover, no antigo prédio do colégio, então [a Kubert School] tem um ar bem mais institucional agora. Eu não teria me saído tão bem lá; a Mansão Baker era rodeada por um gramado e por árvores enormes em cujos galhos nós subíamos quando o tempo estava quente. Você podia se sentar no alto daquelas árvores enormes e conversar e desenhar no seu caderno de esboços; isso era importante para um garoto criado no campo como eu. O ambiente de New Jersey, ao contrário, era estranho e ameaçador para mim, embora eu tenha vindo a amá-lo, com seu acesso a Manhattan a apenas uma pequena corrida de ônibus de distância.

WS: Da forma que o percebo, o fim dos anos 70 foi um momento de transição para os quadrinhos norte-americanos. Velhos modelos estavam em colapso e um forte desejo por mudança estava no ar. Novas ideais, experimentos com técnicas, a cultura alternativa, a influência dos artistas europeus, a revista Heavy Metal, e você fez parte daquele momento. Na época, vocês sentiam que estavam plantando as sementes de uma revolução artística ou estavam todos apenas tentando ganhar a vida com uma forma de arte que amavam?

SB: Alguns de nós realmente sentimos a mudança de eixo, e isso foi incrivelmente revigorante e empolgante. O lado negativo da transformação fazia parte de nosso dia-a-dia na Kubert School durante nossos dois anos lá – por exemplo, nós sentimos a assim chamada “implosão da DC” em 1977 bem diretamente. Joe tinha nos mostrado trabalhos em andamento na linha de revistas que ele estava editando na DC – Savage World de Doug Wildey, Panzer de the Bob Kanigher/Lee Elias, e a parceria de Joe e Kanigher para Ragman – e foi de morte quando elas foram canceladas antes da publicação, e vimos como isso atingiu Joe. Apenas Ragman foi lançada; o restante daquele belo trabalho que ele nos mostrou foi para sempre enterrado ou (no caso da primeira edição de Panzer) retrabalhado para publicação depois num formato e título diferentes. Nós tínhamos professores chegando para ensinar que ficaram farrapos emocionais quando eles, ou seus cônjuges, foram demitidos pela DC durante aquele fatídico período – então, nós realmente sentimos o colapso do mercado que estava remodelando o meio dos quadrinhos em 1976-78, e o custo bem real, bem humano cobrado sobre aquela geração de cartunistas e profissionais. Nós também experimentamos menos diretamente – como leitores e fãs – os últimos estertores do movimento underground: os quadrinhos alternativos estavam desaparecendo, a última edição da grande revista Arcade foi publicado enquanto ainda estávamos na Kubert School, o [trabalho] auto-erótico de Vaughn Bode pendurado morto, e por aí vai. Assim, tanto os quadrinhos das grandes editoras quanto os quadrinhos alternativos estavam “nas cordas”. Foi triste, de muitas maneiras.
Por outro lado, coisas incrivelmente empolgantes estavam acontecendo também. Will Eisner visitou nossa turma durante o primeiro ano na Kubert School e falou sobre essa nova forma na qual ele estava trabalhando, e Um contrato com Deus foi publicado no ano seguinte: bem ali, o nascimento do que hoje é comumente chamado de graphic novel. Eu fui para a Kubert School com minha coleção de Métal Hurlant e National Lampoon lançou a Heavy Metal logo depois, e isso empolgou muitos de nós. Nossa colega Cara Sherman (mais tarde Cara Sherman-Tereno) chamou nossa atenção para essa estranha revista chamada Fantasy Quaterly que trazia na capa Elfquest de Wendy Pini, então ficamos de olho quando Wendy e seu marido Richard relançaram Elfquest como um quadrinho independente, na trilha de Dave Sim e seu completamente peculiar Cerebus. Tudo isso aconteceu enquanto estávamos na Kubert School, entre o outono de 1976 e nossa graduação na primavera de 1978. Foi incrível – podíamos ver a mudança e sentir que éramos PARTE dela, que podíamos contribuir com ela e deixar nossa própria marca (de fato, eu fiz minha primeira venda para a Heavy Metal como freelancer antes de me graduar). O crescimento do mercado de vendas diretas foi algo que nós sentimos também, através do novo acesso a lojas de revista-em-quadrinhos, que não existiam no início da década.
Tudo que se seguiu – Cerebus e Elfquest inaugurando a produção independente, graphic novels mais originais (Sabre foi lançada semanas depois de Um contrato com Deus, se não me falha a memória), novas editoras como a Eclipse, as coletâneas da Heavy Metal aparecendo nas livrarias, e por aí vai – manteu-nos indo, fez-nos querer desempenhar nossa parte. Muitos de nós conseguiram, no fim das contas, graças tanto à pura sorte e por estarem no lugar certo na hora certa, quanto ao trabalho duro e às visões criativas que possamos ter cultivado. Foi um tempo assustador, mas foi também um tempo empolgante. Nós cavamos nossos próprios nichos aqui e ali, e trabalhamos coletivamente no objetivo comum de ganharmos a vida como cartunistas e quadrinistas profissionais.
Rick Veitch, Tom Yeates, John Totleben e eu dividimos uma casa em Dover depois de nos formarmos, e Tim e Beth Truman viviam perto em Hopatcong; todos dividíamos conquistas e conexões profissionais e trabalhávamos em equipe feito loucos. Tom nos introduziu à cena da New York Creation Convention, onde encontramos caras como Charles Vess, Bob Schreck e Adam Malin que eram de nossa geração, e veteranos como Roy Krenkel, al Williamson e muitos outros. Embora fossem tempos ruins para as grande editoras, era um ótimo momento para estarmos nos insinuando nas ruínas e encontrando ou fazendo novos caminhos que estavam se abrindo – o que é algo que eu digo hoje a meus alunos no Center for Cartoon Studies [onde Steve atualmente dá aulas de desenho e quadrinhos].

WS: A revista Spiderbaby n°1 e 2 são coleções de seus primeiros quadrinhos de terror. A primeira capa me lembra muito a estética das revistas de terror da EC. Aqueles quadrinhos de terror clássicos foram uma influência para seus primeiros trabalhos?

SB: Antes de tudo, saiba que eu não li qualquer quadrinho da EC até estar na faculdade – a primeira vez que vi quadrinhos da EC foi via as coleções em capa-dura da Nostalgia Press no início dos anos 70, e li a primeira reimpressão da EC quando estava na Johnson State College (1974-76), cortesia de meus amigos lá, Jack Venooker e Mark “Sparky” Whitcomb. Assim, entenda, eu já tinha sido profundamente afetado pelos trabalhos que a EC tinha influenciado – filmes como Night Of The Living Dead e todo o movimento underground de quadrinhos, particularmente quadrinhos como Skull, Bogeyman e Slow Death, e artistas como Richard Corben, Greg Irons, Rory Hayes, Spain, e escritores como Tom Veitch. De fato, quando estava no meu último ano do colegial ou algo assim, eu vi o filme da Amicus Tales From The Crypt na telona antes de ter lido qualquer quadrinho da EC. Assim, eu experienciei a linha da EC vicariamente antes, através da regurgitação da imagética EC e tal pela cultura pop, e depois através das reimpressões. Eu realmente não cheguei a experienciar todo o impacto dos quadrinhos EC até 1978 e depois, quando minha primeira viagem com Rick Veitch para visitar seu irmão Tom em San Francisco levou-me a conhecer Gary Arlington, o dono de loja de quadrinhos que foi tão instrumental para o movimento dos quadrinhos alternativos. Gary tinha de fato encaminhado muitos cartunistas underground para a EC no fim dos anos 60, e Gary editou e publicou o primeiro quadrinho de terror underground, Bogeyman. Tom e Rick levaram-me à loja de Gary em San Francisco e insistiram que eu levasse meu portifólio; Gary curtiu meus desenhos e insistiu em me vender, na hora a preço de CUSTO, a primeira coleção em estojo de reimpressões da EC que Russ Cochran lançou. Mesmo assim ainda era muito dinheiro para mim na época, mas Gary era insistente: “Você PRECISA ler isto!”. Ele estava certo, e eu subsequentemente comprei cada coleção em estojo assim que Cochran as lançou, direto até as coleções de reimpressões em cores da MAD. Foi aí que eu realmente, realmente experienciei os quadrinhos da EC – lendo-os, volume a volume, através das reimpressões de Cochran, de 1978 em diante.
Nessa época, porém, meu trabalho já tinha a inclinação que você vê na Spiderbaby. Sim, a capa da Spiderbaby n°1 segue mesmo o padrão de visual e atmosfera dos quadrinhos de terror pré-Código [de Ética], mas menos os quadrinhos da EC do que de seus imitadores (aquela mulher, devo notar, foi desenhada por John Totleben que desenha mulheres muito mais sensuais que eu jamais pude ou poderei desenhar). Eu acumulei uma considerável coleção de revista-em-quadrinhos de terror Pré-Código (1950-1954) originais, e Spiderbaby n°1 é mais próxima do absurdo sinistro dos imitadores da EC, como a Harvey (Tomb Of Terror, Witch's Tales, Black Cat Mystery, etc.) ou Tobian. A revista também é inspirada pelos terríveis fanzines de terror em P&B da Eerie dos anos 60 e 70, que eram incrivelmente vis e tinham uma atmosfera e um visual muito distinto, diferente de qualquer coisa que a EC publicou. Spiderbaby n°1 e 2 são também mais próximos da sinistra exploração dos anúncios e pôsteres de filmes de terror dos anos 60 e 70 que eu tanto amo – alguns desses anúncios eram e continuam sendo espetaculares! Eu amo aquela imagética "além da conta", e isto era o que eu estava almejando com a capa de Spiderbaby n°1.

A seguir: Steve Bissette fala sobre a fantástica série do Monstro do Pântano e dá detalhes de sua colaboração com John Totleben e Alan Moore.

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