25/03/2008

O zoológico cartunístico de Fernando Gonsales.


A Devir vem se notabilizando pelo lançamento de boas coletâneas com trabalhos dos principais cartunistas de São Paulo. O mais recente lançamento da editora é Níquel Náusea: Minha mulher é uma galinha, sétimo volume com a popular série de Fernando Gonsales. Em formato 21cm x 28cm, 48 páginas, capa cartonada e caprichada colorização de Marília de Lascio, o álbum é recheado de bons desenhos e humor inteligente, sendo vendido ao preço de R$26,00.

Com um total de 230 tiras, esse novo volume de Níquel Náusea cumpre sua promessa de diversão do começo ao fim. Trazendo o personagem título, além do Rato Ruter e da barata Fliti, o destaque da edição fica por conta de uma verdadeira arca de coadjuvantes e participações especiais, em que não falta sequer o próprio Noé e sobram aves, peixes, insetos e mamíferos em geral. Vindos da cultura popular, personagens como Batman, Hulk e Homem-Aranha, Lobo Mau, Príncipe Encantado e Chapeuzinho Vermelho, anjos, dragões e vampiros são reinterpretados satiricamente por Gonsales. Mas o traço cartunístico do desenhista ainda reserva uma carga extra de gozação para figuras consagradas como Papai Noel, Coelhinho da Páscoa, Adão e Eva.

E se os desenhos concisos dão conta do recado, o melhor mesmo fica por conta das piadas visuais ou textuais. Uma característica recorrente nesse volume são tirinhas que parecem ter nascido de uma expressão linguística corriqueira, embora muitas vezes a expressão em si não apareça textualmente. Alguns exemplos seriam as tiras que parecem ter surgido de “piada de papagaio”, “rinoceronte na loja de louças”, “o cavalo do mocinho” e “ninho de guaxo”. Em outros casos, a expressão aparece textualmente, o que serve para Gonsales empregá-la de forma inesperada. Alguns bons exemplos seriam “cão dos infernos”, “filho de chocadeira”, “sexo selvagem”, sem falar na brilhante fusão entre “ver a luz” e “o sentido da vida”.

Se os jogos de sentido e as fusões de texto e imagem já estão presentes no subtítulo e capa de Minha mulher é uma galinha, no interior do álbum o encontro de imagens e palavras é feito numa narrativa bastante competente. Embora a maioria das tiras tenha uma divisão em dois ou três quadros, algumas delas escapam à regularidade, revelando um autor atento às possibilidades narrativas. Com isso, não faltam invenções originais, como a tirinha de seis quadros em que Gonsales explora criativamente a horizontalidade do veículo, para marcar a lentidão de um caracol. Já em outros momentos, o que garante a risada do leitor é uma maior concisão, como na tira-cartum de quadro único e apenas um balão, com as hienas no velório de Noé.

Em meio ao dilúvio atual de piadas sem-graça e humor cafajeste, Níquel Náusea: Minha mulher é uma galinha mostra que, com simplicidade e precisão, ainda se pode fazer tirinhas da melhor qualidade. Obviamente, nem todas as 230 tiras são absolutamente brilhantes e, certamente, cada leitor terá suas preferidas. Mas, gostemos mais desta ou daquela, prefiramos a sátira cultural ou a crítica de costumes, a diversidade e inventividade do trabalho são a garantia de satisfação para quem procura um humor inteligente. E com mais este volume de seu zoológico cartunístico, Fernando Gonsales prova de vez que merece maior destaque entre nossos quadrinhos.

4 comentários:

Guilherme Neto disse...

Níquel Nausea é muito bom.
É uma pena que eu não tenha tanta grana e o gêreno de tiras não esteja entre meus preferidos, senão comprava.

Wellington Srbek disse...

A tira Níquel Náusea é bem melhor que algumas séries de tiras (nacionais ou importadas) que têm mais destaque que ela.
Eh, a falta de grana já atingiu a condição de epidemia nesse país... Mas o álbum da Devir não é muito caro e vale uma conferida, Guilherme.

Anônimo disse...

Não resisti e pergunto: Em quê esse humor colabora para o Humor crítico e contestador? O que seria humor cafajeste? Ou ainda humor inteligente? Gosto de lembrar do Nilson quando nos diz que não há humor apolítico. Então, confesso minha ira pelo humor que quer dizer sobre atitudes de mulheres, homens e crianças, animalizando-as ou o seu contrário e não saem do lugar. Esse humor meramente constata-se algo, às vezes, semelhante ao que acontece culturalmente ou quem sabe muito distante do que é a toda a contradição da realidade social. Arte é escolha! De quem te admira, Natália.

Wellington Srbek disse...

Olá Natália,
Como você sabe, a expressão "humor crítico e contestador" é a que uso várias vezes em meus textos acadêmicos e trabalhos teóricos para descrever o tipo de humor criado pelo Henfil, por exemplo.
A proposta de Fernando Gonsales é outra, as intenções criativas dele são outras. Mas, considerando o que chamo de quadrinho-arte, Níquel Náusea tem sim seu valor, como uma série de tiras com qualidade técnica e idéias originais - dentro do que chamo de humor inteligente, que é aquele humor que joga com a inteligência do leitor, que não trata o leitor como um ser acéfalo.
De fato, não existe nenhuma forma de ação humana no espaço público que seja apolítica - o que dirá no caso do humor gráfico! É o que Walter Benjamin chama de função política da arte na era da reprodutibilidade técnica.
Quanto ao que chamo de humor cafajeste, creio que o melhor que posso fazer é exemplificar com o horroroso Casseta e Planeta.