18/02/2008

O Circo metalinguístico de Jozz.


Desde os anos 90, assistimos a um crescente interesse pelo estudo dos quadrinhos, com a produção de vários trabalhos acadêmicos e o lançamento de diversas obras teóricas (eu mesmo dei minha contribuição em livros como Um mundo em quadrinhos). O mais recente produto dessa linhagem é Circo de Lucca, um trabalho de Jorge Otávio Zugliani, quadrinista que atende pelo pseudônimo Jozz. Lançado pela Devir Livraria, o livro traz uma original abordagem conceitual dos quadrinhos, numa mistura de elementos metalinguísticos, autobiográficos e ficcionais.

Resultado de um trabalho de graduação em Design Gráfico, Circo de Lucca abre com um “Prefácio de Luiz Gê”, professor e orientador de Jozz em sua pesquisa (e um dos mais criativos artistas que os quadrinhos brasileiros já viram). Com o objetivo de contextualizar o livro, o prefácio parece também ter uma função de legitimação, mas acaba se revelando dispensável (ou talvez apontando para o fato de que o texto seria melhor localizado num posfácio). O fato é que, apesar dos desenhos um pouco inconstantes, que variam de páginas menos detalhadas a outras bem mais elaboradas, Circo de Lucca se destaca pelo uso criativo da linguagem dos quadrinhos. Em meio a referências a HQs, livros, músicas e filmes, conhecemos um jovem aspirante a quadrinista em busca do tema para uma nova história, e às voltas com um misterioso palhaço imaginário.

Assim como Desvendando os quadrinhos e Reinventando os quadrinhos de Scott McCloud, o livro de Jozz utiliza o recurso de apresentar os elementos da linguagem dos quadrinhos, através da própria narrativa quadrinística. Circo de Lucca, porém, traz um novo componente, ao partir da mistura de elementos autobiográficos, ficcionais e metalinguísticos. Com isso, a história do desenhista Lucca serve de pretexto para a discussão sobre como funciona a linguagem dos quadrinhos (no que encontramos um paralelo com o livro O mundo de Sofia, no qual o escritor Jostein Gaarder emprega uma narrativa ficcional para apresentar a história da Filosofia). Para marcar as variações entre a história narrada e os comentários conceituais, Jozz emprega um amplo repertório de técnicas (lápis, nanquim, pintura, gravura, mimeógrafo), originando páginas ora em P&B, ora em cores, o que convida o leitor a um jogo visual e simbólico.

Na verdade, toda obra traz em si um componente interativo, uma vez que se realiza no encontro da intenção criativa do autor, com a liberdade interpretativa do leitor. Mas podemos dizer que Circo de Lucca surpreende com uma inventiva proposta de interação: num dado momento, o leitor depara com uma sequência de quatro páginas divididas igualmente em três tiras horizontais cada; as duas páginas centrais diferenciam-se por trazerem entre as tiras o desenho da tesourinha com linha pontilhada, indicando que o leitor deve recortá-las ali; depois de as páginas serem devidamente recortadas, o resultado é que o leitor pode passar ora uma, ora outra, ou mais de uma das tiras, produzindo diferentes combinações narrativas, gerando novas continuidades para a história naquele ponto. Simplesmente brilhante!

Nas últimas páginas, a discussão sobre o processo criativo interfere na história do personagem Lucca, ao mesmo tempo em que o componente autobiográfico cede mais espaço a elementos ficcionais. Mas o fim da HQ não traz o final do livro, que ainda inclui uma pertinente discussão sobre a linguagem dos quadrinhos e uma detalhada explicação de como ele foi produzido (numa última volta metalinguística, talvez não exatamente proposital, em que o livro nos diz: veja, eu sou um livro!). A primeira vez que vi o trabalho de Jozz foi na segunda edição de sua mini-revista Zine Royale. Já ali, em poucas páginas, tive a amostra de um quadrinista inteligente e interessado em explorar a narrativa quadrinística e sua interação com outras linguagens. Com Circo de Lucca, Jozz se apresenta como um dos mais promissores quadrinistas brasileiros da nova geração.

4 comentários:

Ismael Sobrino disse...

Me surpreendeu quando li pela primeira vez sobre esta história em quadrinhos no Blog dos Quadrinhos. Já só o fato de que alentarão ao autor para sua publicação numa universidade me supôs uma grande impressão.
Impressão que segue aumentando à medida que recolho informação sobre O Circo de Lucca. A possibilidade de que o leitor experimente manualmente com as vinhetas recortables é um recurso tão singelo que, seguramente, a outros desenhistas já consagrados, e que assumem, inconscientemente, as limitações dos formatos, jamais se lhes tivesse ocorrido. Parece infántil e, no entanto, resulta muito inteligente e útil!
Ontem me chegou um email publicitando Drawing Words and Writing Pictures que parece retomar o estilo de McCloud. Não sei, não me entusiasma da mesma maneira que esta estrutura ficcional que, ao mesmo tempo, se explica a si mesma e a seu meio. Isso é o que me pareceu entender nas entrevistas que li.
Deixo o link a Drawing Words and Writing Pictures, por se não se o enviaram desde as lojas americanas:
http://www.firstsecondbooks.com/drawingWords.html

Ismael Sobrino disse...

Vou aproveitar para fazer uma pergunta que levo guardando-me tontamente uns meses. Não consigo resolvê-la só.
Em Espanha, sem muitos detalhes (sei que as conheces como pesquisador dois quadrinhos que és mas as aponto por se outros leitores não as reconhecem), utilizamos duas palavras: a 'Historieta'para referir-nos a esta arte/média de comunicação e os 'Tebeos' que são o formato no que se publica, o suporte material (ainda que este último termo foi deslocado pelo de 'Cómic' por influência da desbordante publicação de comic-books).
Que palavras utilizam em Brasil? Eu tenho a sensação de estar errando ó repetir 'Histórias em quadrinhos' uma e outra vez sem necessidade.

Wellington Srbek disse...

Olá Ismael,
No Brasil nos últimos anos, tem havido um grande interesse teórico pelos quadrinhos, que inclui trabalhos acadêmicos de Mestrado e Doutorado. Uma boa mostra disso está no saite da editora Marca de Fantasia: www.marcadefantasia.com.br.
Quanto a Circo de Lucca, o trabalho de Jozz é bastante interessante e inventivo sim, e creio que você poderá encontrá-lo aí na Espanha.
Sobre o nome "história em quadrinhos", ele se refere exatamente à linguagem e às obras que tenham a estrutura de página. Sua abreviação é HQ (da mesma forma que em Portugal se abrevia Banda Desenhada como BD). Já o nome "quadrinhos" é um pouco mais amplo, incluindo as histórias em quadrinhos e também as tirinhas (que saem nos jornais e na Internet). Temos ainda a expressão "revista em quadrinhos" que se aplica especificamente ao veiculo que traz as HQs. Além disso, uma tradução para tebeo poderia ser "gibi", palavra que surgiu de uma revista infanto-juvenil muito popular no Brasil no século 20 e que se tornou um sinônimo para revista em quadrinhos (embora tenha uma certa ambiguidade, entre um valor afetivo quando empregada por antigos leitores e um valor pejorativo quando aplicado por alguém que desconhece o que a arte dos quadrinhos realmente são).
Eu discuto um pouco essas definições em meu livro Um Mundo em Quadrinhos, do qual falo no início da postagem.
Grande abraço!

Ismael Sobrino disse...

Gra�as! Resultava-me dif�cil distinguir todos esses usos.