Publicado originalmente nos Estados Unidos como uma minissérie em três edições, e como uma edição única no Brasil, The System traz como epígrafe uma citação de William Blake: “Preciso criar um sistema para não ser escravizado pelo sistema de outra pessoa”. Aprofundando o sentido estético e as implicações histórico-sociais dessa frase, Peter Kuper produziu uma obra originalíssima. Dividido em três capítulos, somando pouco menos de cem páginas, O Sistema traz uma boa estrutura narrativa, com diagramações de página diversificadas, que seguem o ritmo do roteiro.
Mas se estes elementos são comuns no quadrinho-arte em geral, são outros os componentes que tornam a obra de Kuper uma história em quadrinhos incomum. Primeiro, a total ausência de balões de fala ou pensamento (característica que, por si, já elimina um signo gráfico de fácil reconhecimento). Nesta HQ, as únicas representações de som aparecem na forma de símbolos (como as “notas musicais”) ou de alusões visuais (como “ondas de choque”). Até mesmo os pensamentos expressam-se visualmente, através de sequências narrativas (nas quais vemos o que um personagem está “pensando”). Contudo, o que de fato estabelece a originalidade de O Sistema, uma história que se passa em Nova York nos anos 90, é a adequação temática do visual. Nesta obra, Peter Kuper (que já se mostrara um autor muito criativo no álbum Desista!, em que adapta para os quadrinhos contos de Franz Kafka) produz um visual que remete ao grafitismo: por suas formas de traços marcados e cores esfumaçadas que imitam o spray dos grafiteiros.
Sem heróis impolutos ou damas virginais, O Sistema representa (no estilo do humor político, com personagens tipificados) o cotidiano da metrópole contemporânea, com seu apelo ao consumo (do sexo à política institucionalizada), sua criminalidade (do tráfico de drogas à corrupção policial) e suas pequenas histórias cotidianas (das relações de amor e amizade à exploração alheia). Os verdadeiros “heróis” da história (num sentido baudeleriano) são uma strip-girl e um velho detetive alcoólatra, um casal gay, um mendigo e seu cachorro, uma skatista-hacker e um jovem grafiteiro. Outsiders e marginais, os personagens conquistam nossa simpatia, enquanto convivem com os poderosos, conspiradores, corruptos, corruptores, fanáticos e psicopatas que tornam A Grande Cidade vista liricamente por Will Eisner (autor que muito influenciou Kuper em suas soluções narrativas e escolhas temáticas) uma metrópole em que a vida está em risco a cada momento e o perigo à espreita em cada esquina.
Para além da crítica social, o roteiro de O Sistema é um entrelaçamento de histórias, um mosaico narrativo nada óbvio, em que vidas e ações, ambientes e acontecimentos encontram-se, sugerindo um grande “sistema” social do qual é quase impossível escapar. Se a alienação, a conivência ou a participação ativa da maioria dos personagens só vêm compor o quadro corrompido da grande metrópole, por outro lado, as contravenções de um outsider, as formas expressivas criadas por um artista anônimo e as relações afetivas autênticas assumem a condição de uma revolucionária contestação do sistema de produção-consumo predominante. Crítico e criativo, Peter Kuper realizou muito mais que uma história em quadrinhos tecnicamente inovadora. Em O Sistema, cada elemento do enredo, da narrativa e do visual constitui-se como um componente de uma obra, de um "sistema simbólico" que pode ser interpretado como uma alegoria da vida contemporânea. Alegoria esta que também não traz exatamente um happy ending.
Mas se estes elementos são comuns no quadrinho-arte em geral, são outros os componentes que tornam a obra de Kuper uma história em quadrinhos incomum. Primeiro, a total ausência de balões de fala ou pensamento (característica que, por si, já elimina um signo gráfico de fácil reconhecimento). Nesta HQ, as únicas representações de som aparecem na forma de símbolos (como as “notas musicais”) ou de alusões visuais (como “ondas de choque”). Até mesmo os pensamentos expressam-se visualmente, através de sequências narrativas (nas quais vemos o que um personagem está “pensando”). Contudo, o que de fato estabelece a originalidade de O Sistema, uma história que se passa em Nova York nos anos 90, é a adequação temática do visual. Nesta obra, Peter Kuper (que já se mostrara um autor muito criativo no álbum Desista!, em que adapta para os quadrinhos contos de Franz Kafka) produz um visual que remete ao grafitismo: por suas formas de traços marcados e cores esfumaçadas que imitam o spray dos grafiteiros.
Sem heróis impolutos ou damas virginais, O Sistema representa (no estilo do humor político, com personagens tipificados) o cotidiano da metrópole contemporânea, com seu apelo ao consumo (do sexo à política institucionalizada), sua criminalidade (do tráfico de drogas à corrupção policial) e suas pequenas histórias cotidianas (das relações de amor e amizade à exploração alheia). Os verdadeiros “heróis” da história (num sentido baudeleriano) são uma strip-girl e um velho detetive alcoólatra, um casal gay, um mendigo e seu cachorro, uma skatista-hacker e um jovem grafiteiro. Outsiders e marginais, os personagens conquistam nossa simpatia, enquanto convivem com os poderosos, conspiradores, corruptos, corruptores, fanáticos e psicopatas que tornam A Grande Cidade vista liricamente por Will Eisner (autor que muito influenciou Kuper em suas soluções narrativas e escolhas temáticas) uma metrópole em que a vida está em risco a cada momento e o perigo à espreita em cada esquina.
Para além da crítica social, o roteiro de O Sistema é um entrelaçamento de histórias, um mosaico narrativo nada óbvio, em que vidas e ações, ambientes e acontecimentos encontram-se, sugerindo um grande “sistema” social do qual é quase impossível escapar. Se a alienação, a conivência ou a participação ativa da maioria dos personagens só vêm compor o quadro corrompido da grande metrópole, por outro lado, as contravenções de um outsider, as formas expressivas criadas por um artista anônimo e as relações afetivas autênticas assumem a condição de uma revolucionária contestação do sistema de produção-consumo predominante. Crítico e criativo, Peter Kuper realizou muito mais que uma história em quadrinhos tecnicamente inovadora. Em O Sistema, cada elemento do enredo, da narrativa e do visual constitui-se como um componente de uma obra, de um "sistema simbólico" que pode ser interpretado como uma alegoria da vida contemporânea. Alegoria esta que também não traz exatamente um happy ending.
5 comentários:
Legal seu texto!
Eu achei que o moço que ía ao hospital era filho do senhor internado...
E corrigindo: umA skatista-hacker! ;)
Farei a correção no "uma" skatista - dormi no ponto ao escrever o texto.
Quanto à outra observação, acho que se enganou mesmo, não é um filho e um pai. Veja o laço vermelho no peito do cara e o brinde que fazem ao final.
:)
Sim, reparei melhor quando li seu texto - hoho!
*Parabéns!
E obrigado por indicar o "a" faltando.
Abraço!
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