O samurai é um artista, cuja arte é o manuseio de sua espada e o exercício de um código de honra e elegância. Em suma, o samurai é um caval(h)eiro. Cavaleiros samurais, como Julio Shimamoto, são raros nos dias de hoje. Manuseando penas e pincéis com rara destreza e estilo único, este mestre dos quadrinhos de terror tornou-se um daqueles nobres guerreiros do traço que escreveram a história do quadrinho brasileiro. Com a generosidade peculiar aos grandes artistas, o mestre Shima concedeu-me, em 1998, a entrevista que compartilho aqui com vocês.
O senhor completou 40 anos de criação de quadrinhos. Qual balanço faz da produção e mercado nacionais nesse período?
Até você lembrar, eu nem me tocava que já estou nessa “guerra” há 40 anos. Pôxa, é tempo à beça! Fazendo um balanço da minha bagagem profissional, nesses anos todos diria que é mediana, com algumas crispações para cima e para baixo no nível qualitativo. Explico: cometi trabalhos bons, ruins e muito ruins. Pior que esses últimos ficam gravados indeléveis na alma, deixando um travo bem amargo. Não há punição maior que você cometer cagadas e se expor publicando-as ainda por cima. Não é diferente de você morrer na fogueira diante de Torquemada, juiz da época da Inquisição. Hoje vejo-me na obrigação de redimir-me desses pecados, na medida do possível. Falando do mercado desse período, posso dizer que também teve seus altos e baixos. Os altos repetem-se ciclicamente, a cada cinco anos na média, com pequenas variações. As melhores fases foram duas, a primeira entre os anos 1958 e 1962, a segunda entre os anos 1977 e 1982.
Nos anos 60 o senhor já colocava samurais em suas HQs, antecipando a atual influência nipônica nos quadrinhos ocidentais. Outro exemplo seria o traço sintético de Flavio Colin, com o qual se parece o estilo de desenho predominante nos quadrinhos e desenhos animados hoje. Mesmo com trabalhos inovadores, por que vocês não têm espaço no mercado?
Taí uma pergunta difícil de responder. Essa falta de espaço credito ao fato de não existir muito público para HQs adultas.
Ao criar uma HQ, qual é sua preocupação: inovar esteticamente, desenvolver novas linguagens, transmitir uma mensagem, simplesmente entreter o leitor?
Minha preocupação primeira antes de bolar uma HQ é achar um desfecho inesperado que surpreenda. O início tanto faz, pode-se começar com o clássico “Era uma vez...” ou simplesmente com “Maria das Dores era uma...”. Já o recheio é segundo em importância, com a função de entreter o leitor (com ou sem mensagem) e ao mesmo tempo despistá-lo para que nunca adivinhe o final de uma historinha. Depois disso tudo resolvido é que me preocupo com o estilo de desenho e a dinâmica da paginação.
O senhor se consagrou desenhando quadrinhos de terror. Eles vieram como uma escolha pessoal ou como uma imposição do mercado?
Foi imposição do mercado que me caiu como uma luva, pois nasci e passei minha infância numa região violenta e supersticiosa, onde ninguém punha em dúvida a existência de assombração, capeta ou lobisomem. Eu próprio acreditava neles. Nos anos 50, a pequena editora La Selva importou e iniciou a publicação desse gênero gótico e conseguiu vender bem, sobretudo no interior do Brasil. Até que o macartismo proibiu a produção dessa temática nos EUA, obrigando a editora a encomendar material para roteiristas e desenhistas locais.
Agora uma pergunta de praxe: quais são seus projetos e expectativas para o futuro?
Meu desejo é só produzir HQs e nunca mais ter que desenhar para a publicidade que sempre detestei. Embora as atuais circunstâncias nada confortáveis que sufocam o país não me dêem o luxo de permitir alguma futurologia, diria que estarei cometendo quadrinhos nos próximos anos e sempre.
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