30/10/2010
Uma revista Apócripha.
Grande parte do trabalho criativo numa revista em quadrinhos está em encontrar uma história. Depois vem o trabalho de dar-lhe forma e veicular esta produção da melhor maneira possível. Quando uma revista é colocada à venda e encontra seus leitores, nós autores temos a verdadeira recompensa de nosso trabalho. Em alguns casos ainda ganhamos algo a mais, quando a revista recebe uma resenha interessante. Este foi o caso de Apócripha, HQ ilustrada pelo amigo Fernando Cypriano, que recebeu a seguinte leitura de um dos melhores críticos de quadrinhos do Brasil:
O EVANGELHO SEGUNDO SRBEK
Marcello Castilho Avellar, Estado de Minas, dezembro de 2003.
Uma das coisas que tornam Wellington Srbek um dos melhores roteiristas dos quadrinhos brasileiros é a singularidade dos pontos de vista com que observa objetos que pensamos já conhecer. Qualquer um pega fontes de tradição religiosa como a Bíblia ou os livros apócrifos associados a ela, mistura elementos destas fontes com os de outras tradições míticas, e conta uma história fantástica; Srbek pega as mesmas fontes, faz perguntas que praticamente mais ninguém fez, e produz algo diferente. É o que ocorre em APÓCRIPHA.
Como é a percepção de um anjo em meio do nada que são os momentos anteriores à criação? Como foi a chegada de Cristo aos infernos, e o que fez ele lá enquanto estava morto? Estas são algumas das incomuns perguntas cujas respostas a história tenta imaginar. Esta imaginação é sempre poética, mas nem por isso deixa de constituir uma realidade mística. Neste sentido, evoca, em alguns momentos, as narrativas místicas da Europa medieval ou a poesia árabe da mesma época, carregadas de fé sem serem narrativas religiosas.
O desenho de Fernando Cypriano é precioso. A maneira como trabalha luz e sombra, vazio e excesso de detalhes, cria emocionante tensão interna nas páginas. As referências visuais ao acervo de imagens célebres do ocidente (como o Jardim das Delícias de Bosch) são, ao mesmo tempo, adequadas ao trabalho de Srbek (que sempre polvilha referências em suas narrativas) e respeitosas em relação ao original – e este respeito não significa submissão, mas recriação.
Além de sua poesia intensa, APÓCRIPHA levanta uma questão formal interessante. O conjunto de suas páginas situa-se entre a história em quadrinhos e o livro ilustrado. Algumas das páginas pendem para um lado ou para o outro, mas o conjunto parece equilibrar-se entre as duas, como se demonstrasse que a aparente dicotomia constitui apenas os extremos de um contínuo de possibilidades em que não é possível determinar uma fronteira. A maior ou menor autonomia entre texto e imagem, e a maior ou menor expressão da página como conjunto de imagens editadas entre si, todas as opções deixam de ser categorias herméticas, para se tornarem estratégias narrativas, a serem escolhidas de maneira a alcançar o máximo de expressão em cada momento.
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