20/04/2010

Uma nova onda nos quadrinhos de super-heróis.


A partir dos anos 80, falou-se muito sobre HQs de super-heróis realistas. Mas falar em “realismo” nesse gênero de quadrinhos é praticamente uma contradição em termos. Afinal, algo que se chame de “realista” pressupõe que se tenha como parâmetro o que chamamos de “mundo real”. Portanto, não haveria em princípio nada muito realista numa obra que tem como protagonistas personagens que voam pelos céus, disparam raios de suas mãos ou se transformam em monstros superpoderosos. Neste sentido, o caráter extraordinário e fantasioso dos quadrinhos de super-heróis asseguraria que esse gênero não incluísse algo que pudéssemos chamar estritamente de “realista”.

Ainda assim, entre a segunda metade da década de 1970 e a primeira metade da década seguinte, começaram a surgir HQs de super-heróis que buscavam uma abordagem mais realista das situações envolvendo os personagens. O auge dessa tendência viria em meados dos anos 80, com a publicação de O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller e Watchmen de Alan Moore e Dave Gibbons. Nessas duas obras, o gênero super-heróis ganhou contextualização política e social, além de dimensão psicológica e histórica. Ao mesmo tempo, esses trabalhos se destacaram por inovar a linguagem dos quadrinhos de super-heróis, influenciando até a forma como eles passariam a ser comercializados nos Estudados Unidos (como minisséries de luxo e graphic novels).

Em entrevistas da época, ao ser perguntado se sua obra e a de Miller haviam salvo o gênero super-heróis, Moore respondeu que o que fizeram estaria mais para um “trabalho de assassinato”. O fato é que O Cavaleiro das Trevas e Watchmen foram obras tecnicamente inovadoras que se tornaram marcos na história dos quadrinhos, mas que também disseminaram uma concepção negativa e violenta dos super-heróis. Sucesso de público e crítica, essas HQs acabaram dando origem a várias cópias, que imitavam alguns elementos de sua narrativa revolucionária, mas que muitas vezes apenas mimetizavam os aspectos mais sombrios e sanguinolentos da abordagem de Miller e Moore.

Foi naquela época que Wolverine, por exemplo, foi assumindo um comportamento ainda mais violento e que o Justiceiro deixou de ser um antagonista do Homem Aranha para ganhar suas próprias séries. Mas talvez o produto mais marcante dessa fase tenha sido Spawn de Todd McFarlane. A série copiava os quadros em forma de tela de tevê e as massas de sombras características de O Cavaleiro das Trevas, além de depender muito das cenas de violência, embora não contasse com o sentido psicológico ou político visto em Watchmen. Assim, em muitos casos, o resultado da influência de Miller e Moore acabou sendo muito sangue e pouquíssima qualidade artística.

Nos últimos anos, tem surgido uma nova onda de HQs de super-heróis repletas de violência explícita (e também com algumas cenas de sexo quase explícito). Voltadas a “leitores maduros” e ambientadas numa realidade similar ao chamado “mundo real”, essas publicações não poupam em palavrões e parecem ter como um de seus objetivos centrais causar algum ultraje. Um melhor exemplo é a série The Boys, criada pelo polêmico Garth Ennis e editada em 2007 pelo selo Wildstorm da DC Comics até seu n°6, quando a editora cancelou sua publicação devido a seu conteúdo. A série então passou a ser publicada pela Dynamite e acaba de chegar ao Brasil numa coletânea pela Devir.

Pegando uma carona na linha After Watchmen e para promover o primeiro encadernado da série (The name of the game), a Dynamite relançou o n°1 da série, pelo preço de $1.00. Como não sou um fã do estilo excessivamente cínico e propositalmente polêmico de Garth Ennis, não comprei a coletânea original e nem pagarei R$39,50 pela edição da Devir. Mas, para saber do que se tratava, adquiri a edição promocional e posso dizer que Ennis correspondeu às expectativas! Ou seja: logo de saída vemos um super-herói tendo o crânio esmagado, um rapaz destroçando sua namorada contra um muro, um pouco de sexo depois, bastante cinismo e alguns palavrões.

Um autor, é claro, tem todo direito de escrever o que quiser e, se há justificativa, sexo e violência podem fazer parte de uma HQ de super-heróis (basta citar o fantástico Miracleman: Olympus, que traz as duas coisas de forma justificada e contextualizada). Para mim, o problema no trabalho de Ennis é a gratuidade com que o sexo e a violência aparecem. Como se causar polêmica e ultrajar aqueles que acham que revistas de super-heróis não devem trazer sexo e violência fosse a razão de ser de seu trabalho. Mas há, é claro, quem goste muito dos quadrinhos desse roteirista irlandês. E para estes leitores, The Boys: O nome do jogo pode ser a publicação que estavam esperando!

(CONTINUA)

12 comentários:

Do Vale. disse...

O grande problema do Ennis é, que com exceção de Hellblazer, Preacher e algumas passagens do Justiceiro, ele requenta ideias.
The Boys é até interessante, cheguei a ler em scans as edições correspondentes ao encadernado da Panini, mas não é algo que valha a pena investir. Tem muita melhor por aí.
Abraço!

Wellington Srbek disse...

Do Garth Ennis eu só gosto mesmo de Hábitos Perigosos da Hellblazer, que eu li ainda na revista Vertigo da Abril. Preacher eu não gostei das duas vezes que peguei para ler (creio que na edição da Metal Pesado e da Pixel).
Mas na certa, tem coisa muito melhor que The Boys por aí!

Jaison disse...

Talvez eles queriam dizer algo sobre um estilo mais "naturalista" em essência, como na literatura que saiu de uma fase romântica para uma naturalista. Olhando por esse lado, até que faz sentido (vide Watchmen). Hhehe... Alan Moore: o Machado de Assis dos quadrinhos... meio estranho, né?! Flws...

Do Vale. disse...

Cara, foi até um caminho natural. Os caras pegaram influências de outros tipos de HQs (quadrinhos europeus e japoneses) e outras mídias (literatura) e experimentaram com um gênero que quase sempre (mas sempre mesmo) acaba caindo na mesmice, como o de super-heróis, esquecendo o maniqueísmo dos personagens e tratando como pessoas reais.
Acho que tá mais pra modernismo. Ou pós-modernismo, como chamam Sandman. Sei lá.:D

Wellington Srbek disse...

Fala, Jaison!
Eu mesmo sou uma das pessoas que utilizam o termo "realismo" para falar de quadrinhos como O Cavaleiro das Trevas e Watchmen. E creio que há uma diferença (embora tênue) entre Realismo e Naturalismo. Como eu disse na resenha de Watchmen, o Realismo enquanto gênero literário tem a ver com uma visão pessimista da vida e esses trabalhos vão mais para esse lado, enquanto o Naturalismo tem a ver, eu creio, com uma tentativa de retrato cotidiano e psicológico.
Aliás, para trabalhos como The Boys, Kick-Ass ou Nemesis, a coisa já chega ao hiperrealismo, pelo exagero na representação da violência.
É isso. Abraços!

Wellington Srbek disse...

Olá Do Vale,
Acho que realmente tem algo a ver com o que se costumou chamar de "pós-modernidade", com a quebra de modelos e uma visão negativa dos ícones culturais. Mas estilisticamente também tem a ver com uma abordagem realista.
Abraço!

Jaison disse...

Bem, vc está trabalhando com o Memórias Póstumas... então tá mais afiado que eu nessas conotações literárias. Realmente, usar o termo "realismo" pode definir melhor esses quadrinhos em si, embora outras obras de Machado como Quincas Borba tenham essa idéia de naturalidade humana moderna que leva a um pessimismo. E quadrinhos é uma arte completa, então merece suas próprias conotações... heheh... é, vivendo e aprendendo.

Wellington Srbek disse...

Gêneros literários não são minha especialidade e essas definições são muito tênues. No caso do Naturalismo há essa coisa de um retrato psicológico das personagens, enquanto no Realismo há uma conotação social no pessimismo.
Mas como você bem disse, os quadrinhos merecem suas próprias classificações e o realismo de que estamos falando aqui tem a ver com se inspirar nos parâmetros do que chamamos de "mundo real", deixando de lado a parte mais fantasiosa e ingênua dos quadrinhos de super-heróis tradicionais.
Valeus e bom feriado, Jaison!

Eric Ricardo disse...

O esforço em tornar algumas histórias mais verossímeis é louvável, pois aproxima ainda mais os seres fantasiados do mundo real em que vivemos. Acredito que, assim, fica mais fácil a identificação do leitor com os personagens.

A impressão que se tem ao ler "The Boys" é a de que, realmente, nenhuma pessoa se preocuparia primeiro em ajudar os outros, mas sim em aproveitar seus poderes para se dar bem em várias situações. Garth Ennis me fez pensar em algumas possibilidades. Todo homem aproveitaria seus poderes para se dar bem em matéria de sexo, por exemplo! Por isso, achei interessante a abordagem.

Mas concordo que estamos ficando saturados de histórias em que heróis se confundem com vilões (leia-se Authority, Marvel Ultimate e várias outras da DC). Hoje, fico me perguntando se eu compraria uma revista de super-herói para meu filho ler (se seu tivesse filho, hehe)... As histórias de hoje não são tão ingênuas quanto as que eu lia quando criança.

Mais um belo texto, Wellington! Espero pela continuação. Abraço!

Eric Ricardo disse...

Se bem que os exemplos que citei não são para crianças, não é mesmo?
Querer que uma criança leia a linha Ultimate é forçar a barra também, hehehe. Na capa mesmo já tem uma indicação de leitura recomendada para adultos... vacilo da minha parte. :)

Wellington Srbek disse...

Olá Eric,
Nos idos da década de 90, quando eu escrevia sobre quadrinhos para um jornal aqui de BH, eu fiz alguns textos sobre o aumento da violência e a diminuição da fronteira entre heróis e vilões. Um dos textos se chamava "O carniceiro-mor Wolverine". De lá pra cá, a coisa só se intensificou e em trabalhos como The Boys e Kick-Ass isso parece a razão de ser.
Como você disse, tornar as histórias mais verossímeis e menos ingênuas é algo louvável. Eu mesmo elogio isso bastante nas resenhas que fiz para O Cavaleiro das Trevas, Watchmen e Miracleman. O problema é que hoje esses novos trabalhos, inspirados em grande parte nos mangás, resumem-se a uma visão niilista e negativa da vida, fantasiada de HQ de super-heróis. E eu pessoalmente acho que o mundo já está bastante violento e cínico para precisarmos de quadrinhos que nos digam que a vida é cinismo e violência.
Valeu, abraço!

Wellington Srbek disse...

Eric,
Tem toda razão, há um bom tempo não tem nada muito para crianças naqueles quadrinhos. Por um lado isso é bom, pois mostra às pessoas em geral que quadrinhos não são apenas coisa de criança. Por outro, os quadrinhos em geral perdem parte do público em potencial.
De qualquer forma, as editoras como a Marvel e DC têm investido em linhas de quadrinhos infantis que se apoiam nos desenhos animados.
Abraço!