21/04/2009

In Pictopia, uma pequena jóia de Alan Moore & Cia.


O roteirista inglês Alan Moore consagrou-se nos anos 80 por seu trabalho em séries e histórias extensas, a maior parte delas com algumas centenas de páginas. Por sua qualidade e originalidade, trabalhos como Miracleman e Watchmen revolucionaram e transformaram os quadrinhos de super-heróis, tornando-se clássicos imperdíveis. Enquanto se dedicava a esses verdadeiros monumentos do gênero, Moore também produziu histórias curtas para coletâneas e revistas de antologias. A melhor delas é provavelmente “In Pictopia!”, uma pequena jóia de treze páginas que usa a metalinguagem para falar de perda da identidade, decadência qualitativa e desvalorização do passado. Tudo isso com direito a um visual expressivo e doses equilibradas de nostalgia e emotividade.

“In Pictopia!” foi publicada em dezembro de 1986 no número 2 de Anything Goes! (revista lançada pelo editor Garry Groth com o objetivo de angariar fundos para as despesas de um processo judicial sofrido pelo The Comics Journal). Trazendo uma capa de Frank Miller, três ilustrações inéditas de Jack Kirby, HQs curtas de Jayme Hernandez e Sam Kieth, entre outros trabalhos, a antologia tinha como destaque principal a história escrita por Moore. Inicialmente, o roteirista havia se oferecido para produzir duas histórias de quatro páginas, que acabaram substituídas por um roteiro de oito páginas intitulado “Fictopia”. Ao chegar às mãos do desenhista Donald Simpson, o roteiro acabou sendo estendido para treze páginas e rebatizado como “In Pictopia!” (ao que consta, Moore concordou com essas alterações, que de fato levaram a um melhor resultado). O trabalho contou ainda com a participação dos desenhistas Peter Poplaski e Mike Kazaleh, do letrista Carl Stalling e do colorista Eric Vincent.

A história começa às cinco e meia da manhã, no quarto de Nocturno the Necromancer, personagem que tem as características gerais e um nome que lembra Mandrake o Mágico (detetive das tiras de aventura, criado por Lee Falk e Phill Davis). Como acontece todas as manhãs, o personagem é acordado antes da hora pelos gritos e murmúrios de seu vizinho de lado, Sammy Sleephead, que tem mais um pesadelo erótico com a própria mãe. Como de costume, Nocturno se levanta, coloca sua roupa (que inclui cartola, bengala e capa) e sai para conferir “quanto se perdeu”. Nas escadas ele encontra um marinheiro brutamontes e uma vizinha que, enquanto seu marido está ausente “secando”, tem que ganhar a vida se prostituindo. Para alguém que afirma viver nas áreas “em preto e branco” da cidade, até que a vida do narrador / protagonista tem muitos tons de cinza. De qualquer forma, Nocturno sabe e logo nos deixa saber que “só os super-heróis podem bancar uma vida em cores”.

Deprimido, o mágico encaminha-se para o “gueto” onde vivem os animais engraçados dos quadrinhos infantis e de humor. Mas dura pouco a satisfação trazida pelo ambiente nostálgico repleto de piadas visuais. A falta de oportunidades de “trabalho” havia levado pobreza e desolação até mesmo para aquela outrora animada região de Pictopia. Nocturno dirige-se então para os limites da cidade, onde sabe que encontrará seu velho amigo Flexible Flynn, uma evidente paráfrase do Homem-Borracha (super-herói cômico criado pelo genial Jack Cole). O amigo flexível lhe faz então um comentário sobre como o horizonte, preto e esfumaçado, parece cada dia mais próximo. Nocturno não nota qualquer diferença e ambos retornam à cidade para tomar uma cerveja. Já no bar testemunhamos um sóbrio monólogo feito por um embriagado Flynn, acerca de pessoas que estão desaparecendo ou sendo substituídas e também sobre as “gangues de novos heróis” que andam pela cidade, ameaçadoras.

Cansado da “paranóia” do amigo, Nocturno deixa o bar, encontrando em seguida um grupo de novos heróis que, por diversão, tortura uma versão do Pateta. O mágico começa então a acordar para a sombria realidade que toma conta de Pictopia. Identidades desfiguradas e o apagamento do passado tornaram-se parte de uma rotina silenciosa de perda e descaracterização. Mas pode ser tarde demais para ele e seu amigo! Como lhe explica um agente de demolição, aquela cidade das figuras estava mudando e na nova capital da ficção “algumas coisas simplesmente não se adequam mais à continuidade”. Imaginando-se num pesadelo, Nocturno corre atormentado pelas ruas, não encontrando mais cenários antes familiares e próximos. Chegando enfim aos limites da cidade, ele se agarra à cerca, tentando discernir o que se encontra naquele horizonte tomado por uma horripilante “massa industrial”. Neste momento, não há como não nos compadecermos do desespero do personagem.

Repleta de referências veladas ou explícitas a quadrinhos clássicos (como Little Nemo, Popeye, Betty Boop, Fantasma, Brucutu, Dick Tracy, Sobrinhos do Capitão...), “In Pictopia!” olha para trás e, em tom nostálgico, fala de queridos personagens que foram deixados de lado por um mercado sempre em busca do próximo sucesso. Mas a HQ também se volta para o que seria, em 1986, o futuro dos quadrinhos norte-americanos, quando super-heróis e anti-heróis cada vez mais violentos e “realísticos” tomariam conta das revistas. Aliás, é impressionante como os “novos heróis” desenhados por Donald Simpson e seus parceiros assemelham-se aos personagens de visual agressivo, lançados pela Image Comics a partir de 1992. Vale lembrar também que grande parte da “violência” e do “realismo” que tomou conta das revistas de super-heróis a partir da segunda metade dos anos 80 se deve especialmente ao trabalho de Alan Moore em Watchmen e A Piada Mortal.

Moore buscou reverter um pouco do efeito negativo que suas obras tiveram sobre os quadrinhos de super-heróis, produzindo a partir de 1993 séries que resgatavam a fantasia e ingenuidade das antigas revistas. Mas a abordagem metalinguística que vemos em 1963 e Supremo (que muitas vezes identifica o “continuum” da Física com a “continuidade” das revistas) já estava presente na brilhante, tocante e inovadora “In Pictopia!” (diga-se de passagem, esta história pode ter influenciado a criação da revolucionária “O Evangelho do Coiote”, escrita por Grant Morrison para a série Animal Man). Essa HQ curta de Moore & Cia. voltou a ser publicada em 2003, com uma nova colorização, na antologia biográfica The Extraordinary Works of Alan Moore (ao que parece, no entanto, ela foi excluída da recente versão revisada do livro). “In Pictopia!” merece ser lida por sua lúcida antevisão de uma indústria crescentemente padronizada e desumanizada, mas sobretudo por ser um relato ficcional emocionante e humano. Enfim, uma pequena jóia em meio à extensa obra do genial Alan Moore!

10 comentários:

Renata disse...

toc toc toc... adivinha quem é... a primeira... de novo!!!

meia noite? nossa...

bom, confesso que desconhecia, até 00:25 da madrugada, a existência desse quadrinho!!! Pronto! Mais uma pérola pra eu procurar!!!

Muito bom, Srbek, muito bom!!! Mais um título interessante!!! Seu blog é muuuito bom!!!

Bom feriado e até quinta!!!

//(^_^)\\

Wellington Srbek disse...

Eh, menina, cê num dorme não, é? Brincadeira!
Realmente, Renata, "In Pictopia" é uma excelente HQ. Não sou muito a favor dos tais scans que violam direitos autorais (como por exemplo o caso do biltre que digitalizou e disponibilizou o Estórias Gerais quase inteiro). MAS, como "In Pictopia" foi uma HQ de circulação restrita e jamais deverá ser publicada no Brasil, posso te dizer que se procurar pelo nome dela no Gogle, você encontrará um saite que a disponibiliza na íntegra.
Já para quem quiser a revista, eu comprei meu exemplar de Anything Goes! #2 na Milehigh ou na Four Color Heroes, que até um tempo atrás ainda tinham essa revista disponível a um preço bem acessível.
Bom feriado a todos e até quinta, Renata!

Renata disse...

nhááááá

eu não durmo mesmo não!!! só depois das duas... três da mannhã... hehehe (isso aqui já tá virando msn!!! hahahahaha)

Mas a revista que vc comprou é em inglês??? já que não veio pro Brasil... poxa... meu inglês consegue ser pior do que a bola de futebol que tentei desenhar na aula passada... hehehe

inté!!! //(^_^)\\

Wellington Srbek disse...

Ixi, Renata, "In Pictopia" só existe em inglês mesmo, infelizmente.
Na verdade, se eu tivesse grana ou uma editora, algo que eu tentaria lançar seria uma coletânea de HQs curtas do Alan Moore, coisas como "Ghostdance", "Leviticus" e "In Pictopia", que são trabalhos brilhantes, mas não têm muita chance de chegar ao Brasil.
Inté quinta!

Renata disse...

é uma pena... quem sabe um dia alguém possa fazer isso... vamos torcer,né?

inté!!! //(^_^)\\

Wellington Srbek disse...

Uai, quem sabe algum dia eu não ganho na loteria!
Inté!

Renata disse...

Santos quadrinhos, Srbek!!! Tomaraaaaa!!! Já pensou vc com grana pra fazer isso?
Bom, vc joga pelo menos? Porque eu não jogo e torço pra ganhar!!!

hehehehe

té!!!

Wellington Srbek disse...

Eh, tá virando conversa de msn mesmo, Renata!
Bom, fica na torcida aí. Quem sabe algum dia...
Inté manhã!

Amalio Damas disse...

Se eu ganhar na loteria, se prepara, porque como temos sonhos em comum, iremos até os Estados Unidos para negociarmos estes álbuns. Porém, teremos a difícil missão de ir até Northhampton e convencer um certo inglês barbudo a dar continuidade a Big Numbers, oferecendo quase tudo que ele desejar, afinal de contas, eu não posso ficar com a minha coleção incompleta.

Wellington Srbek disse...

Opa! É só dar o grito daí que eu arrumo o passaporte aqui, he he!
Mas olha, Amálio, acho que por dinheiro nenhum deste mundo, nem pelos 30 milhões da Mega-Sena, o Alan Moore retornaria para concluir Big Numbers. Há inclusive uma nebulosa história envolvendo fins de casamento e supostas traições, que ele e o Bill Sienkiewicz jamais esclareceram.
Acho que no máximo, por vários milhões você conseguiria comprar o papel gigante no qual Moore fez um diagrama que fala em detalhe tudo que aconteceria em cada edição da série, com cada um dos personagens principais. Na descrição do próprio roteirista, aquela folha gigante, preenchida com uma grafia semelhante à de um "louco", era utilizada para assustar roteiristas iniciantes, como Neil Gaiman que teria ficado branco diante dela.
Enfim, nossas coleções de Big Numbers ficarão incompletas... Mas se você ganhar na loteria, estamos aqui para montar a editora dos sonhos.
Abraço!