01/12/2008

A arte da coerência: uma entrevista com Dave Gibbons, parte1.


Dave Gibbons é um dos mais importantes autores britânicos de quadrinhos. Entre diversos trabalhos, ele foi o desenhista de Watchmen, a série em doze partes escrita por Alan Moore, que muitos consideram a melhor graphic novel já criada. Nesta entrevista exclusiva em três partes, feita por e-mail e MP3, Dave Gibbons fala de antigos trabalhos, da criação da obra-prima Watchmen, do que ele pensa sobre a adaptação para o cinema que estréia em março de 2009, de seu novo livro, projetos futuros e muito mais.

Wellington Srbek: É uma honra estar conversando com o senhor.

Dave Gibbons: Obrigado! Uma honra estar conversando com você.

WS: Por favor, diga a seus fãs brasileiros onde e quando o senhor nasceu e como os quadrinhos entraram em sua vida?

DG: Ahn... Eu nasci em Londres. Eu nasci em 1949, muito, muito tempo atrás (mais tempo do que eu realmente gostaria de pensar). E como os quadrinhos entraram em minha vida? Bem, eu acho que quando pequeno eu costumava ganhar quadrinhos infantis, você sabe, animais familiares, coelhos, ursos, e esse tipo de coisa. E eu também ganhava uma revista em quadrinhos britânica chamada The Beano, ainda publicada até hoje, que tem sido publicada desde os anos 30 (é a revista na qual todos os britânicos pensam quando ouvem a palavra “quadrinhos”). Ahn... Eu também tenho a clara lembrança de, por volta dos sete anos, ter ganhado do meu avô minha primeira revista do Super-Homem... ahn... e eu acho que daquele minuto em diante os quadrinhos me conquistaram.

WS: O senhor começou sua carreira trabalhando em séries de terror e ação, mas foi nas revistas de ficção científica 2000 AD e Doctor Who que pôde desenvolver seu trabalho. Os primeiros quadrinhos norte-americanos que o senhor desenhou (as histórias de Green Lantern Corps) também tinham a ver com a FC. Enfim, o senhor tem uma predileção por aquele gênero em específico?

DG: Bem, eu tenho. Eu venho sendo um leitor de ficção científica a maior parte de minha vida. Não tenho lido muita ficção científica nos últimos tempos (eu acho que há um limite para quantas vezes você pode ler as palavras “hiperpropulsão” e “teletransporte”). Eu passei a ler [histórias de] crime, [obras de] não-ficção e tudo mais. Eu ainda tenho amor pela ficção científica, e acho que ela funciona particularmente bem nos quadrinhos. Você pode fazer qualquer coisa nos quadrinhos, então porque fazer algo que seja completamente cotidiano? É importante ser capaz de desenhar coisas de forma que pareçam críveis. Então, desenvolver-se no cotidiano é na verdade algo muito bom. Ah... Mas eu penso que quando você quer explorar as possibilidades da linguagem um pouco mais, você quase inevitavelmente direciona-se para coisas que vão além da vida comum. E a ficção científica, você sabe, é certamente algo assim.

WS: O senhor se tornou internacionalmente famoso trabalhando em quadrinhos de super-heróis norte-americanos, mas já tinha trabalhado previamente numa série africana de super-heróis: Powerman. Era uma espécie de Super-Homem negro publicado na Nigéria, certo? Dê-nos uma idéia do quê era esta série.

DG: Eu trabalhava através de um agenciador de artistas em Londres. Ele foi contatado por uma agência de publicidade da Nigéria, com a idéia de produzir alguns quadrinhos para o mercado nigeriano. Na época, a maioria das reedições nigerianas dos quadrinhos norte-americanos e britânicos traziam, você sabe, pessoas brancas e loiras, e eles [da agência de publicidade] pensaram que seria uma boa idéia (eu imagino que do ponto de vista mercadológico e publicitário era mesmo uma boa idéia) dar às pessoas negras seus próprios heróis. Nós ficamos admirados de que não tivesse gente na Nigéria que pudesse desenhar e escrever os quadrinhos, mas eles disseram que, você sabe, possivelmente nós começaríamos o trabalho e depois, você sabe, criadores locais assumiriam. Ahn... Bom, havia um par de revistas: uma chamada Powerman, uma chamada Pop. Powerman trazia Powerman, e também um xerife, um xerife negro, um escravo liberto no Velho Oeste, e uma história sobre uma invasão alienígena na qual os alienígenas invadiam a África, em vez de a América do Norte. Havia uma outra [revista] chamada Pop, que trazia uma enfermeira negra e um par de outras idéias das quais eu realmente não consigo me lembrar. Elas eram escritas por roteiristas britânicos e desenhadas por mim, Brian Bolland, Carlos Ezquerra (que depois veio a desenhar Judge Dredd) e eram revistas quinzenais, em P&B com uma cor adicionada (vermelho). Brian Bolland e eu nos alternávamos nas edições, comigo de vez em quando ajudando Brian quando ele estava atrasado no prazo de entrega. Elas foram posteriormente impressas na África do Sul, com o fato bem infeliz de que lá parecia haver “quadrinhos de Apartheid”, você sabe, os brancos tinham os quadrinhos deles e os negros tinham os quadrinhos deles. Mas essa nunca foi a intenção com o trabalho original, e parecia que qualquer pessoa branca que nós tínhamos desenhado era um malvado loiro ariano do pós-guerra feito de encomenda, que o Powerman despachava no ato.

WS: O senhor fez parte da “invasão britânica” que mudou os quadrinhos norte-americanos nos anos 80, seguindo o sucesso de Alan Moore na revista do Monstro do Pântano. Naquele momento, o senhor sentia que estavam fazendo uma revolução nos quadrinhos norte-americanos, e produzindo trabalhos que se tornariam clássicos?

DG: Eu suponho que houve algo como uma invasão britânica, que começou na verdade com Barry [Windsor-]Smith no início dos anos 70. Ele foi o primeiro cara britânico que eu tenho notícia de ter trabalhado para os quadrinhos norte-americanos. Depois do Barry Smith, eu acho que Brian Bolland foi o próximo britânico a publicar [nos quadrinhos norte-americanos], ele fez algumas capas para a Green Lantern no final dos anos 70. Ahn... Na verdade, eu comecei a trabalhar para a DC antes do Alan, e estávamos tentando fazer as coisas seguirem para a DC, quando eu recebi um telefonema uma noite ...ahn... do Len Wein, perguntando se eu tinha o número do Alan Moore, porque achava que ele poderia, você sabe, fazer uma boa tentativa de escrever a revista do Monstro do Pântano, e como todos sabemos Alan não fez uma “boa tentativa”, ele revolucionou completamente o personagem, a ponto de realmente produzir um clássico. Ahn... Eu suponho que, você sabe, fosse uma ambição para nós britânicos, que crescemos lendo quadrinhos norte-americanos, um dia trabalhar nos quadrinhos norte-americanos, e dado que o mercado deles era muito melhor (eles pagavam mais, devolviam todo o trabalho, até mesmo davam as pranchas para desenharmos), não é de se admirar que tenhamos ficado muito felizes em trabalhar para eles. E eu acho que, você sabe, nós entendíamos os personagens deles bem o bastante para desenhá-los num estilo similar, embora tivéssemos uma levemente diferenciada... ah... visão britânica deles. E a postura britânica é meio que sempre ser levemente desconfiado de pessoas que sejam superiores, e talvez tenhamos trazido um pouco disso para os super-heróis. Contudo, deve ser dito que se não amássemos realmente os personagens, eu não acho que poderíamos ter feito o que fizemos com eles.

A seguir: Watchmen!

6 comentários:

Anônimo disse...

Ah...pelo menos alguma coisa eu tenho em comum com o gênio Dave Gibbons:somos ambos do século passado e nascidos no mesmo ano:1949!
Já é alguma coisa...
Boa entrevista,Wellington.Parabéns!
Zerramos

Wellington Srbek disse...

Não seja por isso, Zerramos, também sou do século passado (embora às vezes me sinta mais para o século 19)!
Quanto à entrevista, esta é só a primeira parte. Fica ainda melhor.
Abraço!

Márcio Rodrigues disse...

Oi Wellington, muito legal essa entrevista com Dave Gibbons!
Aqui, passei lá no mestrado da história na linha da Culturas Políticas com o projeto sobre o Alan Moore. Parece que o departamento está mais flexível com relação ao uso de histórias em quadrinhos como fonte de pesquisa. Usei no projeto como referencial teórico para tratar das especificidades históricas dos quadrinhos seu livro Um Mundo em quadrinhos.
abraços e até
Márcio
Márcio

Wellington Srbek disse...

Grande Márcio! Antes de mais nada, parabéns por ter passado no mestrado! Parece que as coisas realmente melhoraram porque na minha época não havia muita abertura na História para pesquisas sobre quadrinhos. Bom saber que Um Mundo em Quadrinhos ajudou! Dê mais notícias depois sobre a pesquisa.
A entrevista com o Dave Gibbons está só no começo (estou aqui traduzindo agora a Parte2, que está ainda melhor). Você já deve saber, mas há também no Mais Quadrinhos entrevistas com David Lloyd, Steve Bissette e J.H. Williams III, falando de HQs produzidas com Alan Moore, sem falar em várias resenhas e textos sobre os quadrinhos dele.
Enfim, grande abraço e sucesso na pesquisa!

Márcio Rodrigues disse...

Valeu mesmo por desejar sucesso na pesquisa! Parece que as coisas lá estão realmente mudando pois meu projeto passou em primeiro lugar e a linha da Culturas Políticas é a mais exigente do Departamento. Não esperava passar, pois não havia conversado anteriormente com nenhum professor da linha que pudesse ser meu orientador. Fui bem em todas as etapas e estava muito seguro na entrevista. Quando citei seu trabalho na entrevista o Dabdab - que era uma das pessoas da banca de avaliação e que pensei que não iria muito cara do projeto por ele ser da história antiga - me disse que já havia orientado vc e foi quem mais gostou do projeto. Na projeto levantei a questão da guerra fria no trabalhos da década de 1980 do Alan Moore e as representações que ele constroi para discutir o período.
abraços e até mais

Wellington Srbek disse...

Bem interessante a idéia! Watchmen na cabeça!
Gosto demais do Dabdab! Excelente professor de História Antiga. Entre 1995 e 1996, eu fiz um projeto de iniciação científica intitulado "O Herói na Grécia antiga: uma leitura d'A Ilíada e de Édipo Rei", do qual ele foi o orientador (o texto final da pesquisa originou um livro pela Marca de Fantasia). O detalhe é que eu era tão sem-noção que na época pedi ao Dabdab (um dos maiores especialistas em Grécia antiga do Brasil) para escrever um texto sobre Dioniso, para uma das edições da minha revista SOLAR. E o legal é que ele aceitou e fez um texto muito bacana! Bons tempos aqueles...
Bom trabalho para você e parabéns de novo!