14/01/2008

Virtudes variadas: uma entrevista com David Lloyd, parte1.


No último mês de dezembro, fui a São Paulo para lançar o álbum Estórias Gerais, na livraria HQ MIX. Por um feliz erro de divulgação, o quadrinista inglês David Lloyd acabou fazendo, na mesma noite, um pré-lançamento de seu livro para a série Cidades Ilustradas. Após assinar alguns exemplares de meu livro e beber duas ou três taças do saboroso vinho oferecido por Gual, fui dar um “oi” ao desenhista de V de Vingança. Conversa vai, conversa vem, Mr. Lloyd acabou comprando um exemplar de Estórias Gerais e eu o convidando para uma entrevista ao Mais Quadrinhos. O resultado é esta conversa feita por e-mail, em que falamos de seu início de carreira na Inglaterra, sua nova graphic novel que será lançada no Brasil em 2008 e, é claro, V de Vingança. Para quem lê em inglês, a entrevista está disponível abaixo em sua versão original. Com vocês então, um virtuoso desenhista chamado David Lloyd!

Wellington Srbek: É uma grande alegria estar conversando com você! Por favor, diga a seus fãs brasileiros quando e onde nasceu e como começou sua carreira?

David Lloyd: Nasci em 1950, numa cidade chamada Enfield na Inglaterra. Saí da escola aos 16 anos e consegui um trabalho como aprendiz de arte publicitária, mensageiro e faz-tudo num estúdio de publicidade no centro de Londres. Fiquei lá por dois anos e meio, aprendendo um pouco sobre o negócio, então saí sob a tênue promessa de vender, para uma distribuidora européia, uma série de tiras que eu tinha criado. Lamentavelmente, essa promessa revelou-se uma ilusão, mas eu não queira voltar a meu trabalho de nove-às-cinco. Então fui forçado a fazer pequenos trabalhos de ilustração como freelancer, e depois, por fim, uns trabalhos de meio-horário sem relação com ilustração, durante quatro anos. Eu firmei o pé no negócio dos quadrinhos com uma encomenda para fazer todo o trabalho de ilustração para uma revista da série de tevê Logan’s Run. Minha carreira decolou a partir daí, felizmente.

WS: No fim dos anos 70, início dos 80, havia na Inglaterra várias revistas relacionadas com a tevê e o cinema, e também as publicações da sucursal britânica da Marvel. Você, Steve Moore, Alan Moore, Alan Davis, Dave Gibbons e muitos outros conseguiram seus primeiros trabalhos regulares nessas revistas. Qual importância elas tiveram?

DL: Bem, alguns de nós conseguiram os primeiros trabalhos regulares nelas, outros não - Dave começou na 2000AD. A Grã-Bretanha tem uma tradição em quadrinhos inspirados por programas do rádio e da tevê, que vem desde os anos 40. O cinema inspirou menos edições. Mas é claro que elas foram importantes porque elas nos deram trabalho e uma chance de praticar nosso ofício. Os anuais para crianças - edições que são publicados na época do Natal, com artigos, fotos, histórias e quadrinhos sobre programas de tevê populares na época - eram especialmente importantes para abrir espaço a desenhistas iniciantes. Essas edições tinham baixos orçamentos e pagavam mal aos colaboradores, então os editores não tinham como empregar artistas com uma carreira já estabelecida. Logan’s Run foi uma dessas edições. Eu fiz um monte de outras depois dela.

WS: Foi com a série Night Raven, publicada na Hulk Weekly, que você começou a ficar conhecido pelos leitores. Conte-nos sobre esse personagem e seu trabalho nessa série.

DL: Esta vai ser uma longa resposta. Um de meus primeiros trabalhos foi desenhar uma adaptação para os quadrinhos de um dos filmes de Quatermass [série de ficção científica da tevê Britânica] para uma revista mensal de cinema chamada House of Hammer, cujo editor era um cara chamado Dez Skinn. Mais tarde, ele conseguiu o trabalho de editor de uma revista chamada Hulk Weekly da Marvel Britânica, que foi lançada para capitalizar em cima da série de tevê do Hulk. Por mérito próprio, Dez convenceu a Marvel a produzir material original para a revista, e não apenas reimprimir material norte-americano. Dez gostava da qualidade do que eu tinha feito para ele antes e pediu que eu me juntasse à equipe de arte da Hulk e criasse o visual do principal personagem de uma das séries programadas para aparecer na revista: o Night Raven. Eu o imaginei meio como o Indiana Jones - antes de Os Caçadores da Arca Perdida ser lançado. Esta foi a caracterização que dei a ele numa posterior reformulação: Night Raven - House of Cards. De qualquer forma, eu concebi esse visual “Indiana Jones” porque fazia dele um personagem de ação. Eu estava ciente de que fazíamos o projeto para a Marvel, então eu pensei que aquela era uma abordagem mais apropriada a se seguir.
Infelizmente, esse visual foi rejeitado por Dez e Steve Parkhouse - que era o escritor - porque eles queriam um cruzamento entre o Spirit e o Sombra. Steve fez alguns esboços que colocaram um casacão no personagem. Eles até me deram fotocópias do Sombra de Mike Kaluta para me colocarem na direção correta. Eu pensava que era a direção errada, considerando que era uma revista da Marvel, mas eu não tinha poder para fazer objeções a esses requerimentos - eu estava no negócio há poucos anos e não tinha qualquer influência. E, é claro, eu era um profissional cujo trabalho era seguir uma indicação, e não questionar as decisões de meu editor. Mas eu lamento não ter sido capaz de dar ao personagem um visual original - em vez de uma mistura de dois outros conceitos. Eu tinha sim a liberdade de livrá-lo do casacão quando ele estava envolvido em mais ação, mas do contrário ele tinha que usá-lo. Foi uma pena, porque como parte do conceito inicial eu tinha dado a ele dois coldres e a habilidade de sacar as armas rápido como um raio, que agora só funcionaria efetivamente quando ele não estivesse com o casacão.
Mais tarde, Dez recebeu a visita de um dos executivos da Marvel norte-americana, que tinha vindo supervisionar o progresso da revista. Uma das coisas que ele sugeriu a Dez foi que o Night Raven tivesse mais ação ao estilo Marvel. Eu podia ter dito ao Dez: “eu te disse”, mas eu ainda era um ninguém tentando ganhar a vida, e criar agitação não iria me beneficiar. De qualquer forma, daquele ponto em diante, eu comecei a usar mais efeitos no estilo Marvel, mas foi em vão porque pouco depois Dez me tirou da série e passou-a para John Bolton. Ironicamente, o que John acabou fazendo com Night Raven mostrou-se um tratamento bem conservador, e nada marvelesco. E então a serie foi cancelada. Anos mais tarde, eu fui convidado a retornar ao personagem, mas apenas aceitei sob a condição de que eu poderia desenhá-lo da forma que havia concebido originalmente. E assim surgiu [a graphic novel] House of Cards.

WS: Filmes noir e literatura pulp são influências importantes em Night Raven. Mas quais quadrinhos influenciaram você no desenvolvimento de seu estilo único?

DL: Bem, eu era um grande fã de Steve Ditko em Amazing Adult Fantasy. Frank Bellamy - um artista inglês que desenhava uma tira chamada Garth. Ron Embleton, Tony Weare e John M. Burns. As revistas da EC Comics e da Warren de meados dos anos sessenta, como Blazing Combat e Creepy. Eu era fascinado por muitos trabalhos publicados nelas, criados por gente como Gene Colan, Angelo Torres, [Alex] Toth, etc. Eu admirava o trabalho de muitos artistas em vários quadrinhos e revistas, geralmente do tipo dramático, mas nenhum quadrinho ou tipo de quadrinho em específico - exceto pelo fato de a maioria não ser revistas de super-heróis.

WS: Falando de suas histórias complementares para a Doctor Who Weekly, eu realmente adoro “4-D War”! Pois você alcança tanto em termos de trabalho artístico, considerando que ela tem apenas 4 páginas. Que técnicas de finalização você utiliza nela?

DL: Se tenho chance, eu sempre gosto de experimentar, e a idéia de usar a aguada para representar o mundo portal [uma realidade extradimensional na HQ escrita por Alan Moore] - se é a isso que você se refere - para diferenciá-lo foi fácil de colocar em prática. Os vários desenhos foram transferidos para impressões em meio-tom, e então colados sobre a página - o impressor não teve que fazer separações. E quando os personagens estão fragmentados no espaço, bem, isso foi conseguido simplesmente recortando as impressões e colando-as no lugar certo. No que diz respeito ao número de páginas - bem, muita história pode ser contada em poucas páginas, mas hoje em dia os quadrinhos gastam seu tempo desenrolando uma historinha. É um jeito de a indústria se agarrar à sua base de leitores e manter os quadrinhos vendendo quando as vendas estão caindo.

A seguir: V de Vingança!

5 comentários:

Gustavo Carreira (requiem) disse...

Aguardo atentamente pela continuação.

Ismael disse...

Caramba!, non conhecía bem as vías de desenvolvimento dos quadrinhistas ingleses. Para mim é surpreendente a existência dos anuais da tevê.

Wellington Srbek disse...

Bom lê-los aqui novamente, caros leitores ibéricos!
A história dos quadrinhos ingleses é bem interessante, e as revistas ligadas à tevê e cinema tiveram uma grande importância (um bom exemplo é a série Doctor Who, cujos quadrinhos contaram com os talentos de Alan Moore e Dave Gibbons no início de suas carreiras). Há também a longa tradição das gravuras e caricaturas inglesas, da qual falarei com David Lloyd na segunda parte da entrevista.
Abraços e saludos!

jeanokada disse...

Bem legal essa primeira parte da entrevista. Por coincidência, tenho baixado na internet várias dessas revistas inglesas antigonas sobre séries de TV mencionadas pelo Lloyd.

Curiosamente esse tipo de publicação ligada à TV foi também o que alimentou o nosso mercado HQ por vários anos. Só que aqui nós geramos monstruosidades como os gibis da Xuxa, do Sergio Mallandro, etc...

Wellington Srbek disse...

Quadrinhos baseados em seriados da tevê e do rádio também tiveram grande importância no Brasil, originando memoráveis trabalhos como As Aventuras do Anjo e Vigilante Rodoviário desenhados pelo mestre Flavio Colin, entre outros.