27/03/2009

O retorno de SOLAR!


Criado por mim em 1994, o personagem Solar apareceu originalmente numa série de 14 capítulos, publicados entre 1996 e 1998 nas revistas Solar e Caliban. Tendo marcado lugar na produção independente dos anos 90 e sendo um conceito original entre os heróis brasileiros, o personagem merecia uma reformulação. É isso que vemos em Solar: Renascimento, revista que traz as quatro primeiras partes da nova versão, com roteiros mais centrados no herói e um visual bastante detalhado. Os desenhos e arte-final foram produzidos por Rubens Lima, as letras e balões ficaram a cargo de Dênio Takahashi.

Para quem leu a primeira versão do personagem, este é um novo começo (do zero). Para quem ainda não o conhecia, esta é a história de um herói com poderes extraordinários, mas que não é exatamente um super-herói (afinal, ele não usa uma fantasia colorida e não sai por aí trocando socos com super-vilões). O que vemos nessa nova revista é o surgimento de um herói cultural, numa aventura iniciática com ação, elementos da vida real, referenciais históricos e simbologia mítica.

Tudo começa num passeio a uma gruta, onde pinturas rupestres de um deus-Sol levam o designer Gabriel Ribeiro a uma experiência xamanística. Como resultado, ele acaba descobrindo que é capaz de voar. A partir daí, acontecimentos fantásticos passam a fazer parte de sua vida, enquanto Gabriel busca a explicação para seus poderes. A chave para o mistério pode estar em seu próprio nascimento e no símbolo do Sol tatuado em seu peito. Mas o caminho para o autoconhecimento acaba levando o herói a um encontro mortal!

Solar: Renascimento tem formato 24cm x 17cm, 48 páginas de quadrinhos, pelo preço de R$5,00. Para adquirir a revista pelo correio, basta postar um comentário aqui deixando seu contato ou enviar um e-mail para wellingtonsrbek @ ig.com.br. Você receberá então uma resposta minha, com os dados para realizar o pagamento e o prazo de envio da revista.

Uma seção de extras com detalhes de como a revista foi produzida já está disponível no saite Mais Quadrinhos. Lá, você encontrará ainda “A Saga de Solar”, uma seção especial que narra toda a trajetória do personagem, desde sua versão original até esta versão reformulada.

Não deixe então de conferir nosso trabalho e fazer seus comentários aqui no blog. Grande abraço!

23/03/2009

Marvelman e a recriação genial dos super-heróis.


A história do personagem britânico Marvelman (que seria mais tarde rebatizado como Miracleman) começa nos Estados Unidos, no início dos anos 50. Na época a Fawcett Comics, editora responsável pelas aventuras do Capitão Marvel e sua “Família”, enfrentava um infame processo judicial movido pela National Periodical / DC Comics. No processo, a editora do Super-Homem acusava a concorrente de ter infringido os direitos autorais de seu personagem. A verdade, no entanto, era que em várias ocasiões as revistas do Capitão Marvel haviam superado as vendas das publicações do Homem de Aço, o que motivou a ação judicial baseada numa infundada acusação de plágio (afinal, o Capitão Marvel original é muito diferente do Super-Homem e até mesmo mais interessante que seu predecessor). No fim, o maior poder econômico da DC prevaleceu e a Fawcett, além de pagar uma indenização vultuosa, foi obrigada a suspender definitivamente a publicação do Capitão Marvel.

Acontece que o simpático herói da palavra mágica “Shazam!” também fazia sucesso na Grã-Bretanha, onde era reeditado por L. Miller & Son. Mas, com a suspensão da publicação do personagem nos Estados Unidos, Len Miller logo veria uma importante fonte de renda desaparecer. O sagaz editor não pensou duas vezes: contratou o estúdio do roteirista e desenhista Mick Anglo para produzir uma cópia mal-disfarçada do Capitão Marvel. Nas palavras do próprio Anglo (reproduzidas pelo editor Dez Skinn em seu texto especial sobre Marvelman, para a Warrior n°1): “Um dia Len me ligou e disse que queria me ver com urgência. Seu suprimento de material americano para a série Capitão Marvel havia sido repentinamente cortado. [Ele me perguntou:] Você tem alguma idéia? [...] Eu rapidamente respondi a ele que tinha um monte de idéias, e acabei recebendo uma demanda regular de trabalho pelos próximos seis anos”. Assim, por um artifício editorial, em fevereiro de 1954 nascia Marvelman, o mais popular super-herói britânico de todos os tempos.

No processo de transformação do Capitão Marvel em Marvelman, a capa foi deixada de lado e no lugar da roupa vermelha surgiu uma azul. Em vez de moreno, o novo personagem era loiro, trocando a identidade secreta de Billy Batson por Mike Moran. O herói britânico não deixaria de ter uma palavra mágica, substituindo a popular “Shazam!” pela bombástica “Kimota!”. Os demais membros da Família Marvel não foram esquecidos: Capitão Marvel Junior e Mary Marvel deram lugar a Young Marvelman e Kid Marvelman, originando a Família Marvelman. E para não quebrar a ligação dos leitores com as publicações, a numeração das revistas não foi zerada (a despeito da mudança de nome). Além disso, as HQs produzidas pelos roteiristas e desenhistas britânicos mergulhavam em elementos da fantasia e da ficção científica, sendo até mais ingênuas que as similares norte-americanas. O trabalho agradou em cheio, e segundo Anglo: “Os novos títulos foram recebidos com vendas crescentes e uma chuva de cartas de garotos entusiasmados”.

Publicadas entre 1954 e 1963, as revistas (inicialmente) semanais Marvelman e Young Marvelman somaram quase trezentas e cinquenta edições cada uma, tendo ainda a companhia mensal de Marvelman Family que somou trinta edições (isso sem falar em duas dezenas de anuais e álbuns especiais, livros para colorir, brinquedos, jogos e até mesmo uma carteirinha do fã-clube do herói). Em suma, um sucesso mercadológico! Contudo, na virada para os anos 60, nem todos os garotos britânicos eram fãs das revistas de Marvelman & Cia., com seus miolos em P&B e sua impressão em papel-jornal de baixa qualidade. Muitos preferiam mesmo os super-heróis das coloridas revistas da DC e Marvel, saídas do outro lado do Atlântico. Entre os meninos que prestigiavam as HQs do Flash ou do recém-lançado Quarteto Fantástico, estava um certo Alan Moore. Um dia, porém, não encontrando uma de suas revistas preferidas, o garoto resolveu dar uma chance a Mavelman. Por algum motivo, daquela vez as histórias do herói britânico conseguiram lhe agradar bastante.

Mais ou menos na mesma época, Moore leu uma reedição da revista de humor norte-americana Mad, que trazia a história “Superduperman”. Uma criação do genial Harvey Kurtzman e do talentoso Wally Wood, a HQ era uma inteligente sátira ao Super-Homem. Para Moore, o que Kurtzman fez naquele trabalho foi aplicar uma “lógica do mundo real” aos super-heróis, buscando alcançar o máximo de efeito cômico. Inspirado por “Superduperman”, o jovem fã de quadrinhos imaginou então uma história no estilo: o que aconteceria se Marvelman esquecesse sua palavra mágica? (e aquilo que na época não passou dos devaneios de um leitor, tempos depois se tornaria a semente de uma revolução). O que acabou caindo no quase total esquecimento foi o próprio Marvelman, depois que a L. Miller & Son foi à falência em 1963. Mas, passado o tempo, o promissor autor de quadrinhos Alan Moore disse, numa entrevista em 1981, que gostaria que alguém relançasse Marvelman para que ele pudesse escrevê-lo, pois tinha uma idéia “absolutamente brilhante” de como fazer isso.

Numa feliz coincidência, o editor Dez Skinn leu a entrevista e estava justamente pensando em resgatar Marvelman para uma antologia de quadrinhos que planejava lançar. Skinn entrou então em contato com Moore, que redigiu uma proposta para a reformulação do herói. Empregando uma técnica de desconstrução e partindo de seu devaneio juvenil, o roteirista criou uma história na qual um Mike Moran de meia-idade segue a vida, tendo se esquecido de que fôra o herói Marvelman (apenas “um sonho sobre voar” recorrente lhe dá alguma pista sobre aquele passado). Para completar, Moore inspirou-se na HQ “Superduperman” para aplicar uma “lógica do mundo real” aos super-heróis, voltada nesse caso a um efeito dramático (e não cômico, como no trabalho de Kurtzman). Dessa forma, é um incidente com terroristas numa usina nuclear que faz o personagem se lembrar da palavra mágica “Kimota!” (atomic de trás para frente). E assim, em março de 1982 nas páginas da Warrior n°1, ressurgia Marvelman e começava também uma revolução nos quadrinhos de super-heróis!

Com periodicidade mensal, a Warrior era publicada em P&B, formato magazine (21cm x 30cm), trazendo séries divididas em capítulos de cinco a oito páginas. A maior parte dos direitos autorais sobre personagens e histórias permanecia com os roteiristas e desenhistas, que se sentiam assim motivados a produzir seus melhores trabalhos. Inovadora, a revista chegava aos pontos de venda com bons desenhos e uma incomum mistura de terror, aventura, suspense e ficção científica (incluindo aí a originalíssima V for Vendetta, criada por Moore em parceria com David Lloyd). Logo de saída, Marvelman tornou-se a principal atração da Warrior, enquanto a genialidade dos roteiros era notada por autores de quadrinhos na Grã-Bretanha e nos Estados Unidos. Nos capítulos iniciais, a série contou com o minucioso traço de Garry Leach (que acumulava o cargo de diretor de arte da revista). A partir do sexto capítulo, Marvelman passou a ter os dinâmicos desenhos de Alan Davis (que na época também passava a colaborar com Moore nas séries Captain Britain para a Marvel UK e D.R. and Quinch para a 2000 AD).

Com o sucesso da nova versão, Skinn decidiu lançar Marvelman Special n°1, que trazia basicamente reimpressões de HQs dos anos 50, produzidas pela equipe de Mick Anglo. Mas, devido à utilização do nome do personagem no título da revista, a Marvel Comics (que se considera dona da palavra marvel no ramo dos quadrinhos) interferiu judicialmente. É interessante notar, porém, que o nome Marvelman (surgido em 1954 na revista que lançou o personagem) antecede a utilização do nome Marvel Comics, o que tornaria infundadas as alegações da editora norte-americana (não fosse seu maior poderio econômico). O fato é que a disputa judicial dificultou a continuação da série, causando também desavenças entre Skinn e Moore, o que resultou na suspensão de Marvelman no número 21 da Warrior (deixando incompleto o “Livro II” da série). Sem seu personagem mais popular e não sendo uma campeã de vendas, a revista chegou ao fim no número 26, em janeiro de 1985. De qualquer forma, sua contribuição para a história dos quadrinhos ocidentais já estava assegurada.

Desde o início, exemplares da Warrior chegavam aos Estados Unidos, sendo apreciados por novos artistas, que viam ali exemplos a serem seguidos. Marvelman em especial teve grande influência, por ser uma obra inovadora no gênero predominante naquele mercado. Os desenhos impecáveis criados por Leach e Davis já valiam uma olhada mais atenta. No entanto, o diferencial eram mesmo os roteiros de Moore, com sua aplicação de uma “lógica do mundo real” aos super-heróis. Trazendo textos marcantes e uma trama inteligente e contemporânea, Marvelman mistura História e ficção científica, maravilhamento e vida cotidiana, não faltando elementos intertextuais e metalinguísticos (que explicam o desaparecimento do herói por quase vinte anos e até mesmo como ele veio a ser um plágio do Capitão Marvel). Brilhante e original, a série foi a primeira recriação racionalista de um super-herói clássico, abrindo caminho para a reformulação dos heróis da DC Comics, para o Novo Universo Marvel e para obras revolucionárias como O Cavaleiro das Trevas e Watchmen. Enfim, um clássico genial e imperdível!

18/03/2009

As “adaptações” de Watchmen.


Finalmente fui assistir à adaptação cinematográfica de Watchmen, obra-prima dos quadrinhos criada por Alan Moore e Dave Gibbons, levada aos cinemas por Zack Snyder. Em alguns momentos, o filme consegue de fato uma transposição louvável dos quadrinhos para a telona (como acontece com diversas cenas de Rorschach e a sequência com os Minutemen). Contudo, no geral, o longa-metragem me deu a sensação de algo pela metade: uma produção que não conseguiu realmente adaptar de maneira fiel a complexa HQ que a inspirou, e que ao mesmo tempo não conseguiu ser totalmente compreensível para pessoas que não tenham lido a obra original (o diretor queria e deveria ter insistido em lançar um filme de maior duração, que explicasse mais algumas situações apenas apresentadas rapidamente).

Podemos dizer que Watchmen – O Filme padece exatamente do mal que o tornou possível: o esquemão de Hollywood capaz de financiar uma produção milionária, mas que impõe padrões, restrições e exigências mercadológicas. Senão, como explicar o excesso de violência nas cenas de luta (que fazem a violenta HQ de Moore e Gibbons parecer uma revista bem-comportada)? Ou o porquê de Coruja Noturna e Ozymandias usarem aquelas armaduras no estilo dos filmes do Batman dos anos 90? Sem falar na Espectro da Seda, que no lugar da “seda” ganhou uma roupa de látex... Quanto ao Dr. Manhattan, no quadrinho sua pele é azul, enquanto no filme ele ganhou uma versão mais “quântica” e irradiante (embora o que não combine mesmo, na minha opinião, seja sua vozinha inexpressiva).

Pouco depois de Watchmen ser lançada, já se falava numa adaptação cinematográfica. Como se sabe, o diretor Terry Gilliam havia sido a escolha inicial, mas acabou desistindo do projeto, que declarou ser “infilmável”. E a verdade é que a HQ de Moore e Gibbons é mesmo intransponível para o cinema de hoje, se tivermos como expectativa uma adaptação fidedigna. Talvez algo como uma minissérie da tevê pudesse alcançar um resultado mais próximo da complexidade e da atmosfera nostálgica e realista da história em quadrinhos. Ou ao menos uma produção cinematográfica com uma duração bem maior e menos concessões aos gostos contemporâneos. Em resumo, Watchmen – O Filme poderia ter sido muito pior (lembremos de A Liga Extraordinária!), mas também poderia ter sido algo bem melhor.

Falando em interfaces de Watchmen com outras linguagens, a HQ de Moore e Gibbons já tinha nos dado sua própria cota de citações e apropriações. Elementos tirados da História e das ciências desempenham um papel fundamental na composição de personagens e enredo. Isso sem falar nas pertinentes citações ao final dos capítulos, extraídas da Bíblia, de poemas, de músicas, entre outras fontes. Uma dessas citações foi até transposta para o filme, quando ouvimos Jimi Hendrix cantar sua versão da canção “All Along the Watchtower” de Bob Dylan. Por conta própria, o longa pega outras músicas emprestadas para compor algumas cenas, como “Times they are a-changin’” também de Dylan. Um caso bem diferente foi a inserção da solene “Hallelujah” de Leonard Cohen numa cena de sexo quase explícito (algo que soou, no mínimo, como uma piada de mau gosto).

Não posso deixar de falar das “adaptações“ não-oficiais de Watchmen, ou em outras palavras dos filmes e séries que imitam e plagiam a HQ. Um caso óbvio é o longa de animação Os Incríveis, que copiou a idéia da lei que bane os super-heróis, além da cena em que aparecem recortes de jornal pendurados numa parede e uma estátua dourada de um herói aposentado sobre uma mesa (sem falar na referência ao herói que perdeu a vida quando sua capa agarrou em algo). Há ainda o seriado Heroes que derivou alguns de seus personagens dos poderes e da história do Dr. Manhattan. E há Lost que, em suas primeiras temporadas, imitou o capítulo 2 de Watchmen, com as imagens e composições de cena recorrentes que serviam de ligação entre o presente na ilha e os flashbacks dos personagens, além de todo o episódio protagonizado pelo personagem Desmond que plagia o capítulo 4 da minissérie de Moore e Gibbons (não faltando sequer a fotografia que liga o personagem à sua amada).

Enfim, Watchmen é uma obra-prima dos quadrinhos que não poderia escapar à atual onda de adaptações cinematográficas. Já o filme de Zack Snyder não é muito mais que um filme de super-heróis acima da média. Por sua vez, as imitações e plágios da obra de Moore e Gibbons só vêm atestar a originalidade e a importância dessa HQ, enquanto fenômeno cultural. Em todos os casos, o melhor mesmo é ficarmos com a obra original!

(Agradecimentos a Marília, pela companhia durante o filme e pela conversa depois, que enriqueceu esta postagem.)

11/03/2009

Watchmen, absolutamente!


Em 1985, com a ótima repercussão de público e crítica alcançada pela revista Swamp Thing, a DC Comics ansiava por novos trabalhos escritos por Alan Moore. Por sua vez, o roteirista inglês vinha há algum tempo pensando numa obra conceitual sobre os super-heróis, envolvendo um misterioso assassinato. Juntando a receptividade editorial com a criatividade autoral, surgiu a idéia de reformular os antigos personagens da Charlton Comics (cujos diretos de publicação a editora do Super-Homem havia adquirido recentemente). Nascia ali o que viria a ser Watchmen, minissérie em doze edições lançadas entre 1986 e 1987, graphic novel recordista de vendas e uma das melhores e certamente a mais complexa HQ de super-heróis já escrita.

A premissa básica da série era: como seria o mundo se os super-heróis existissem realmente (ou: como seriam os super-heróis se eles realmente existissem). Sua frase-tema: “Who watches the watchmen?” (“Quem vigia os vigilantes?”), tomada emprestado do autor romano Juvenal. O conceito agradou aos editores, mas eles temiam (com razão) que a abordagem realista proposta por Moore acabasse por inutilizar os personagens que pretendiam incorporar ao “Universo DC”. A solução encontrada foi relativamente simples: ao invés de lidar diretamente com os personagens da Charlton, um novo elenco de heróis seria criado pelo roteirista, em colaboração com o desenhista Dave Gibbons. Assim, no lugar do Pacificador entraria o Comediante, substituindo o Capitão Átomo viria o Dr. Manhattan, em vez do Besouro Azul surgiria o Coruja Noturna, enquanto o Questão daria vez a Rorschach.

Porém, mais que mascarar os antigos personagens sob novos nomes e feições, os autores evidenciaram seus elementos mais estruturais, trazendo à tona o que os ligava a outros super-heróis mais conhecidos. Não é à toa, portanto, que podemos ver no Comediante e no Dr. Manhattan as contrapartes do Super-Homem (de um lado o soldado a serviço do governo norte-americano e do outro o herói sobre-humano, virtualmente onipotente). Da mesma forma, encontramos no Coruja Noturna e no Rorschach as facetas do Batman (o combatente do crime fantasiado e cheio de aparatos tecnológicos, em contraposição ao detetive traumatizado e psicótico, violento e de convicções quase fascistas). Uma pista para essa duplicidade é o fato de esses personagens aparecerem atuando em duplas (Comediante com Manhattan, Coruja com Rorschach). Mas Watchmen é muito mais que a desconstrução de antigos super-heróis!

Dividida em capítulos de 28 ou 32 páginas com citações pertinentes ao final, acompanhados de textos que simulam trechos de livros, reportagens e relatórios, a série traz nas capas detalhes ampliados do primeiro quadro de cada capítulo, enquanto as contracapas mostram (edição após edição) um relógio que se aproxima das 12 horas, enquanto uma massa de sangue vem escorrendo até cobri-lo quase completamente. Com uma diagramação de página bastante regular (inspirada nas HQs de Steve Ditko, principal autor da Charlton), a obra de Moore e Gibbons alcança a complexidade de uma sinfonia, em suas múltiplas camadas significantes, simetrias e auto-referências, composições ressonantes e imagens recorrentes (inspiradas pela Teoria do Caos e seus fractais). Como criticaria mais tarde o próprio Alan Moore: “Watchmen é uma obra sobre sua própria estrutura”. Mas é mais que isso também!

A história começa em outubro de 1985, com o mundo à beira de um conflito nuclear entre as superpotências Estados Unidos e União Soviética. Nas ruas de Nova York, crime e desesperança dividem espaço com carros elétricos e placas indicando abrigos antinucleares. Há quase uma década, uma lei federal proibiu a atividade dos heróis mascarados, enquanto o inescrupuloso comediante e o superpoderoso Dr. Manhattan continuam atuando a serviço do governo norte-americano. Nesse contexto, um assassinato aparentemente insignificante toma proporções de conspiração quando o detetive mascarado Rorschach descobre que a vítima era na verdade o Comediante. Essa é a trama apresentada no número 1 de Watchmen, narrado (ao estilo de um William Burroughs) através do diário de Rorschach, retratado como um anti-herói paranóico às voltas com uma investigação sobre um suposto complô para eliminar os heróis mascarados.

A partir daí, Moore e Gibbons vão nos apresentando aos demais personagens da série, como o milionário Adrian Veidt que havia atuado como o mascarado Ozymandias e Laurie Juspeczyk que substituíra sua mãe no papel da heroína Espectro da Seda. Aliás, duas gerações de heróis são apresentadas, na medida em que passado e presente se misturam em flashbacks que vão do fim dos anos 30 a meados dos anos 70. É assim que conhecemos, no número 2 da série, os heróis que formavam o grupo Minutemen, sabemos do envolvimento do Comediante e do Dr. Manhattan na Guerra do Vietnã e testemunhamos os protestos urbanos que levaram ao banimento dos vigilantes mascarados. Violência e política, conspirações e memórias vão se interligando e influenciando mutuamente numa história que parece cada vez mais intrincada, como os mecanismos do relógio sugerido em seu título e desenhado em suas capas.

O capítulo 3 adiciona mais uma camada significante à narrativa, quando comentários corriqueiros e situações cotidianas são sobrepostos e mesclados às cenas e narrações da fictícia revista em quadrinhos Contos do Cargueiro Negro (as velas do navio pirata ganham até mesmo a forma de um aviso antinuclear). Se os trechos do diário de Rorschach já haviam estabelecido um clima de desesperança, as páginas da revista de piratas, “lidas” por um jovem leitor, imprimem ainda mais angústia à nossa leitura. A mensagem é: o mundo está à beira do abismo e estamos todos ilhados e enterrados até o pescoço na luta individual pela sobrevivência. Embora uma visão pessimista da vida seja parte do Realismo enquanto gênero literário, a atmosfera niilista presente em alguns trechos de Watchmen tem muito a ver com o contexto em que a HQ foi escrita, no qual o temor de um conflito nuclear entre EUA e URSS era algo palpável.

Na edição 4, o mundo avança em direção ao armagedom nuclear, depois que um emocionalmente acuado Dr. Manhattan deixou a Terra para ir morar em Marte. Mas o que verdadeiramente avança ali é a linguagem dos quadrinhos. Em linhas gerais, temos a história de origem de um personagem bastante interessante, contextualizada na cultura e política dos Estados Unidos dos anos 40 a 60. Mas o capítulo “Relojoeiro” vai muito além, revelando o trabalho de um autor capaz de integrar (como poucos em qualquer linguagem artística atualmente) estrutura e tema de maneira perfeitamente orgânica. Em outras palavras, um roteirista que nos apresenta a biografia de um super-herói quântico, por meio de uma concepção quântica do tempo (ou do fluxo narrativo), na qual passado, presente e futuro são percebidos simultaneamente. Enfim, uma HQ brilhante, que exemplifica o trabalho criativo-intelectual de um gênio da narrativa.

O número 5, com sua estrutura simétrica, acrescenta peças à trama, posicionando personagens e situações para futuros desdobramentos. Na edição 6, mergulhamos de cabeça num abismo existencial (de inspiração nietzschiana), quando descobrimos a origem secreta de Rorschach. O capítulo 7 abranda as coisas, mostrando Coruja Noturna e Espectro da Seda (heróis que herdaram a identidade de membros do Minutemen) num romântico vôo noturno. O número 8 traz um pouco de nostalgia, narrativas paralelas, uma fuga da prisão, alguns assassinatos e muito sangue. A edição 9 tem mais nostalgia (na forma do perfume que leva este nome) e uma reveladora conversa em Marte. O capítulo 10 desvenda que grande mente está por trás da trama conspiratória. No 11, chegamos a um clímax em que tudo é revelado. Já a edição 12 fecha a história, amarrando as pontas restantes, mas deixando uma última porta entreaberta.

Em termos visuais, Watchmen é um verdadeiro trabalho hercúleo e certamente a melhor obra de Dave Gibbons. Desenhar algumas dezenas de personagens, vários deles em diferentes idades ao longo da história, mantendo as identidades visuais marcantes e coerentes não é algo fácil. Desenhar o mesmo cenário de múltiplos ângulos ou variar, numa edição para outra, de um cruzamento em Nova York para as montanhas de Marte, sem perder o senso de ambientação, também não é uma tarefa simples. Aliadas a isso, temos as cores atmosféricas de John Higgins, que servem bem ao estilo cotidiano e realista dos desenhos. Sua melhor expressão está na recolorização feita para Absolute Watchmen, na qual os tons de cinza, roxo, marrom, carmim, magenta e laranja escolhidos pelo colorista colaboram para reforçar o clima lúgubre da HQ (e também contrastar as cores primárias do smiley, do Dr. Manhattan e do sangue).

Como toda obra, Watchmen tem seus altos e baixos (perdendo um pouco da força e originalidade a partir do capítulo 7), sem falar em alguns excessos (parte dos textos complementares é desnecessária e Contos do Cargueiro Negro não é exatamente indispensável à trama). Mas, com seu mundo em 360°, de um 1985 no qual Richard Nixon é o presidente dos Estados Unidos e os heróis mascarados envelhecem e têm vida sexual, essa HQ dissecou e reinventou os super-heróis, dando-lhes um contexto político e uma profundidade psicológica. Junto com O Cavaleiro das Trevas de Frank Miller, a obra de Moore e Gibbons levou às últimas (e contraditórias) consequências a idéia da recriação realista (?) dos super-heróis. Por isso mesmo, na época do lançamento da série, ao ouvir a afirmação de que ele e Miller haviam salvado os super-heróis, Moore retrucou que, na verdade, o que eles tinham feito era “um trabalho de assassinato”.

De fato, com a publicação de O Cavaleiro das Trevas e Watchmen, uma onda de quadrinhos de super-heróis mais sombrios e violentos tomou conta do mercado norte-americano. Repletos de sangue, psicologia barata e textos pretensamente literários, os imitadores de Miller e Moore contribuíram para quase enterrar de vez os aventureiros mascarados. Após o lançamento de Watchmen (e a conclusão de Miracleman), Moore havia jurado jamais escrever uma nova HQ de super-heróis. Porém, no início dos anos 90, enfrentando problemas financeiros e desgostoso do impacto negativo que sua obra acabara tendo (principalmente devido aos imitadores que tentaram reproduzir seu estilo), o roteirista retornou ao gênero que o consagrara. Além de se recuperar financeiramente, seu objetivo então era resgatar o brilho e a ingenuidade dos antigos super-heróis, o que ele tentou realizar com as séries 1963 e Supremo.

A qualidade e a importância de Watchmen são inegáveis. Homenageada, premiada, parodiada e copiada, essa complexa obra colaborou para expandir as possibilidades e o repertório da linguagem das HQs. Sua absolute edition (com estojo, capa-dura, sobrecapa, tamanho estendido, impressão de alta qualidade e galeria de extras) apenas atesta seu prestígio editorial (sem falar no valor de mercado, que se multiplicou com a adaptação cinematográfica que acaba de estrear). E é interessante notar que, embora tenha ganhado o prêmio Hugo de ficção científica, Watchmen está cada vez mais para um romance de época, devido à sua ambientação nos anos 80. Quando a li pela primeira vez há vinte anos, eu não tinha maturidade para compreendê-la completamente. Tendo acabo de relê-la agora para escrever esta resenha, fica a sensação de uma obra que resistiu bem à passagem do tempo, merecendo absolutamente o título de clássico!

(Para saber mais sobre os temas tratados aqui e ler uma entrevista exclusiva com Dave Gibbons, basta clicar nas palavras em destaque abaixo.)

06/03/2009

Doctor Who: da tevê para os quadrinhos.


Em 2006, ao passear pelos canais da tevê a cabo, deparei com um programa de ficção científica que eu desconhecia completamente. O programa em questão mostrava uma cena à janela de uma estação espacial, tendo abaixo o planeta Terra prestes a ser consumido pela expansão do Sol (fato que deverá ocorrer daqui a uma meia dúzia de bilhões de anos). Os personagens na cena eram um estranho homem de jaqueta escura e uma loirinha bonitinha, ambos com uma inconfundível entonação britânica em seu inglês. Tive então que trocar de canal, pois o programa ao qual eu assistia de fato já havia recomeçado.

Nas semanas seguintes, voltei a esbarrar naquele seriado da tevê britânica, primeiro numa rápida cena com espectros voando pelas ruas da Londres vitoriana, depois numa sequência na Londres dos dias de hoje com estranhos alienígenas adiposos e flatulentos (simulados em roupas de borracha e defeitos visuais). Havia algo de muito diferente naquela série, em relação às produções norte-americanas do mesmo gênero. Havia algo de provisório e cômico, uma auto-ironia e uma inteligência que também vemos nos melhores quadrinhos de ficção científica vindos do Reino Unido. O fato é que naquele momento o People & Arts exibia no Brasil a primeira temporada da série produzida por Russell T. Davies, estrelada por Christopher Eccleston (no papel-título) e Billie Piper (no papel da jovem Rose Tyler). Quando finalmente consegui assistir a um episódio completo, fui imediatamente fisgado pelas excentricidades e o charme de Doctor Who!

Tornei-me um telespectador assíduo desse incomum seriado, com seus alienígenas esquisitos, vilões em forma de saleiro, uma nave em forma de cabine telefônica e viagens pelo espaço-tempo. Como dizia o protagonista em momentos de fascinação ou euforia, aquela primeira temporada era algo “Fantástico!” (merecendo que alguma produtora a lance em DVD por aqui!). No final da primeira temporada, porém, o perfeito Christopher Eccleston (que também interpretou o Homem Invisível de Heroes) foi substituído pelo não tão eficaz David Tennant. Por mudanças de horário e divulgação deficiente, não consegui acompanhar a segunda temporada por completo. Além disso, com a saída de Billie Piper ao final do segundo ano, perdi minha identificação direta com o programa, não acompanhando a terceira temporada (que na verdade nem sei se foi exibida no Brasil).

Inicialmente, eu não sabia que Doctor Who era um tradicional seriado da tevê britânica, que havia sido veiculado pela BBC entre 1963 e 1989, retornando em 2005 com mais recursos de produção. Na verdade, ao longo de suas décadas de exibição, a série contou com diferentes atores no papel-título, fator que acabou incorporado à biografia do próprio personagem, que passaria por mortes e renascimentos (na verdade Christopher Eccleston já era a nona encarnação do Doutor, quando foi substituído por David Tennant que passou a ser a décima). Uma longeva atração da tevê britânica, no fim dos anos 70, Doctor Who ganhou uma revista semanal com cenas e informações de bastidores. A publicação contava também com HQs curtas, estreladas pelo personagem ou envolvendo elementos de sua história.

Por mais comerciais que fossem, aqueles quadrinhos baseados num sucesso da tevê acabaram empregando, no início de suas carreiras, alguns dos mais destacados quadrinistas britânicos (tais como David Lloyd, Dave Gibbons, Alan Moore e Grant Morrison). Essas HQs originais estão disponíveis atualmente na coleção Doctor Who Classics lançada pela Panini no Reino Unido (no original em P&B) e reeditada pela IDW nos Estados Unidos (em versão comics colorida). A IDW também lançou em agosto de 2008 uma nova série em quadrinhos, escrita por Tonny Lee e desenhada por Pia Guerra (a desenhista de Y – O último homem), estrelada pelo décimo Doutor. A mesma IDW lançou em outubro e novembro do ano passado Grant Morrison’s Doctor Who minissérie em duas edições que reúne todos os episódios do personagem escritos pelo renomado roteirista escocês.

A dobradinha entre séries de tevê e revistas em quadrinhos é sempre algo promissor e muitas vezes bem-sucedido e lucrativo. Afinal, a transposição para as HQs atrai fãs dos personagens televisivos para a leitura das revistas, ao mesmo tempo em que é capaz de expandir as histórias e os conceitos presentes na série original (basta lembrar que a linguagem dos quadrinhos não enfrenta as mesmas “limitações de orçamento” da televisão, dependendo apenas da imaginação dos roteiristas e do talento dos desenhistas). No Brasil, nas décadas de 1950 a 1980, alguns seriados do rádio e da tevê ganharam versões em quadrinhos, como As Aventuras do Anjo, Jerônimo, Capitão 7, Vigilante Rodoviário, Carga Pesada e Sítio do Pica-Pau Amarelo. Infelizmente, no momento a tevê brasileira não tem produzido seriados de ação, que são mais adequados a uma versão em quadrinhos.