27/02/2009

O estranho mundo de Grant.


Histórias inusitadas e absurdas, estreladas por personagens estranhos e bizarros foi a receita que levou o escocês Grant Morrison ao estrelato dos quadrinhos na segunda metade dos anos 80. Em seus principais trabalhos dessa fase, elementos incomuns e até metalinguísticos surgem a todo momento, questionando as barreiras entre a ilusão de realidade (que se tem durante a leitura de uma HQ) e a consciência de que o que se lê não passa de uma obra ficção. Somadas a isso, diversas referências artísticas e discussões de natureza metafísica fizeram das séries Zenith, Homem Animal e Patrulha do Destino obras revolucionárias dos quadrinhos de super-heróis. Mas a semente da revolução, na verdade, foi plantada no início da década de 1980, por outro renomado roteirista britânico.

Escrita pelo inglês Alan Moore e lançada em 1982 nas páginas da revista Warrior, a série Marvelman (Miracleman) foi a primeira recriação racionalista de um super-herói clássico. A qualidade e a repercussão desse trabalho acabaram influenciando outros autores britânicos e norte-americanos, o que originou todo um novo estilo de se escrever quadrinhos de super-heróis. À brilhante recriação de Marvelman feita por Moore, seguiriam-se outras ao longo dos anos 80 e especialmente após Crise nas Infinitas Terras (“maxissérie” cujo objetivo foi botar ordem na cronologia da DC Comics). Tendo estabelecido um novo marco zero para seus personagens, a editora norte-americana contratou quadrinistas de destaque para recriar seus principais heróis. Com o sucesso de Alan Moore (novamente ele!) à frente da revista do Monstro do Pântano, a editora enviou emissários à Grã-Bretanha, literalmente à caça de novos talentos (o que geraria a chamada “invasão britânica” da segunda metade dos anos 80).

Ao lado de nomes como Neil Gaiman e Jamie Delano, Grant Morrison foi um dos escolhidos pela DC para escrever a reformulação de um de seus personagens. Morrison havia começado sua carreira no final dos anos 70, publicando séries e HQs curtas em revistas alternativas. Seu primeiro trabalho de destaque poderia ter sido The Liberators para a Warrior, mas a revista do editor Dez Skinn foi cancelada em 1985, na edição de estréia do roteirista escocês. No ano seguinte, Morrison conseguiu seus primeiros trabalhos curtos para a Doctor Who e a 2000 AD. Nas páginas desta última, ele lançaria em 1987 Zenith, uma série diretamente influenciada pelo racionalismo do Marvelman de Alan Moore (sim, mais uma vez ele!) e que trazia elementos absolutamente similares, tais como super-heróis tratados como "mostros" ou "tigres", criados por um vilão cientista com a participação de entidades alienígenas.

Contudo, em seu primeiro trabalho com super-heróis, Morrison já mostrava os traços de sua personalidade. Um cantor de rock com superpoderes, Zenith se revela um anti-herói egoísta e desinteressado em qualquer questão mais nobre ou grandiosa do que alcançar o estrelato. Uma visão cínica e absolutamente contemporânea dos super-heróis, o personagem serve na verdade de pretexto para Morrison apresentar uma história que lida com temas como a relação entre caos e ordem, ou o questionamento do que é a realidade. Tais temas tornariam-se recorrentes no trabalho do roteirista, que então mostrava alienígenas inspirados nos textos de H. P. Lovecraft para propor uma discussão metafísica sobre os fundamentos do universo em que vivemos. Tendo uma boa repercussão, a primeira das quatro “Fases” de Zenith (todas lançadas no Brasil pela Pandora) abriria para Morrison as portas do mercado norte-americano, no qual ele estrearia em 1988 com a série Homem Animal.

Como o próprio Morrison admitiu, nas quatro primeiras histórias de seu Homem Animal (publicado no Brasil a partir de 1990 na revista DC 2000), ele estava inegavelmente imitando Alan Moore (eh, de novo!). Mas, como os editores da DC haviam gostado de seu trabalho e pedido para expandir a série, ele se encontrou diante de um dilema, pois não queria e não se sentia confortável em continuar sendo um clone de outro autor, ao mesmo tempo em que não tinha idéia de o que fazer numa revista mensal. A resposta e a solução vieram com “O Evangelho do Coiote”, uma das mais inspiradas e originais HQs de super-heróis já escritas e sem dúvida um dos melhores e mais importantes trabalhos de Morrison. Lançada na quinta edição da Animal Man, a história mostra o encontro do personagem-título com um similar do coiote dos desenhos animados da Warner, numa narrativa repleta de metalinguagem e elementos da simbologia cristã (um belo resumo disso é a fantástica capa desenhada por Brian Bolland, que ilustra esta postagem).

Tornando mais difusas as barreiras entre realidade e ficção, “O Evangelho do Coiote” traçou o rumo que a série tomaria, que incluía a tentativa de resgate do clima mais leve e humorado das revistas da DC dos anos 60. Afinal, a partir da publicação de O Cavaleiro das Trevas e Watchmen em 1986, grande parte dos roteiristas de quadrinhos tentou imprimir um maior realismo aos super-heróis, levando os dilemas, as contradições e a violência do mundo real para as HQs. Esta tendência não agradava a Morrison, que respondeu através de uma inteligente tensão entre mundo real e mundo ficcional. Mesmo que o roteirista jamais tenha lido Isto não é um cachimbo de Michel Foucault, a influência de um pensamento pós-estruturalista é evidente nas histórias do Homem Animal. Nelas, Morrison mostra a tradicional busca do personagem pela compreensão de seus poderes (a capacidade de assumir as habilidades de qualquer animal), além de engajá-lo na luta pelos direitos dos animais (o próprio autor era vegetariano na época). Mas a verdadeira razão de ser da série é a construção de uma grande narrativa metaficcional.

Depois de se encontrar com o coiote Astuto, de se envolver em discussões sobre “a continuidade” com personagens saídos do "Limbo dos Quadrinhos", de ultrapassar os limites da página e de se dirigir ao leitor e dizer: “Eu posso ver você!”, o Homem Animal acaba encontrando-se com o “Criador” (de suas histórias). Ao longo da série, o encontro criador / criatura foi sendo preparado por Morrison, e o resultado é um sincero diálogo a respeito do sentido da vida. Embora a metalinguagem já não fosse então uma novidade nos quadrinhos, a série escrita por Morrison foi a primeira a levar às últimas consequências a situação de um super-herói ter “consciência” de que não passa de um personagem criado para entreter um público com um sádico desejo por violência (que somos nós, leitores). Sem dúvida, Homem Animal é uma obra inovadora e inspirada, que não perdeu sua força passados vinte anos, merecendo ser lida e relida.

Antes mesmo de concluir seu trabalho com o Homem Animal, Morrison recebeu da DC o convite para assumir a revista Doom Patrol (a Patrulha do Destino, que teve as primeiras HQs dessa fase lançadas no Brasil pela Metal Pesado, nos anos 90). O resultado foi uma das mais estranhas, originais e absurdas séries já publicadas no mercado norte-americano, algo mais próximo do nonsense de Alice no País das Maravilhas do que do clima de ação dos quadrinhos de super-heróis. Um cérebro numa caixa de metal que discute filosofia cartesiana com um gorila falante; um halterofilista usando uma tanguinha de leopardo que ao flexionar seus músculos é capaz de mudar o mundo ao redor por telepatia; uma garota-macaco que além de ser atormentada pelos dilemas da puberdade é assombrada pelos fantasmas psíquicos que cria; vilões que formam grupos chamados a “Irmandade do Dada” ou o “Culto do Livro Não-Escrito”; uma história chamada ”A Pintura que comeu Paris”: estes são apenas alguns exemplos das “esquisitices” de Morrison, que parece não levar nada a sério. Mas isso é o que ele quer que nós pensemos!

Através de uma atmosfera surrealista, em seus roteiros Morrison discute princípios religiosos, a falência da razão, a linguagem das artes-plásticas, a autonomia das realidades discursivas, além de criticar a censura e tratar de temas-tabu como a violência sexual contra a mulher. Sem dúvida um trabalho riquíssimo e original, por vezes um pouco hermético, mas sempre honesto com sua proposta de pôr em questão a relação entre realidade e ficção, o conflito entre ordem e caos (que parecem reflexos da própria vida do autor na época). Os temas de seus trabalhos iniciais para a DC voltaram a ser vistos em trabalhos menos extensos como as graphic novels Asilo Arkham e Mystery Play, os especiais Batman: Gothic e Sebastian O e as minisséries Kid Eternity e Flex Mentalo. O trabalho de Morrison em Homem Animal e Patrulha do Destino seria um dos fundamentos do selo Vertigo, para o qual ele escreveria as séries The Invisibles e The Filth.

Um mago praticante, Grant Morrison tornou-se um dos grandes nomes dos quadrinhos norte-americanos, tendo em seu currículo fases bem-sucedidas à frente dos dois principais grupos de super-heróis: a Liga da Justiça da DC e os X-Men da Marvel. Com um trabalho tão provocativo, não faltaram é claro algumas polêmicas ao longo dos anos, incluindo ofensas trocadas com Alan Moore (envolvendo de um lado Watchmen e do outro Asilo Arkham). O fato, porém, é que as carreiras destes dois brilhantes magos-escritores estarão sempre ligadas, pelas reações que o trabalho de um gerou no do outro, bem como pelos vários paralelismos que podemos traçar (por exemplo entre a Linha ABC e os Sete Soldados ou entre Supermo e All Star Superman). Mas se ambos contribuíram fundamentalmente para os quadrinhos e a cultura Ocidental é porque, mesmo trilhando caminhos paralelos, cada um buscou sua própria história. E se Moore "se aposentou" dos quadrinhos das grandes editoras, por sua vez Morrison assumiu o papel de principal roteirista, desenvolvendo maxisséries como 52 e séries especiais para medalhões como Super-Homem e Batman.

Nos dois casos, no entanto, a contribuição mais decisiva e os trabalhos mais revolucionários foram as séries produzidas nos anos 80. Num momento em que Alan Moore lançou a recriação racionalista dos super-heróis, levada às últimas consequências por Grant Morrison, e que os quadrinhos "realistas" e violentos nascidos das obras do roteirista inglês foram criticados criativamente pelas obras de seu colega escocês. No fim, com toda a vaidade pessoal e a rivalidade criativa, quem saiu ganhando foi o leitor, que pôde acompanhar alguns dos melhores quadrinhos produzidos nas últimas décadas!

20/02/2009

Quais são as piores adaptações cinematográficas do século?


Houve um tempo em que adaptações dos quadrinhos para o cinema eram algo raro de se ver. Por isso mesmo, o lançamento de Superman – O Filme em 1978 e de Batman em 1989 foram verdadeiros acontecimentos de massa, que mobilizaram fãs por todo o mundo. Nos últimos tempos, porém, com os avanços dos efeitos visuais e a descoberta pelos estúdios de Hollywood do potencial mercadológico dos super-heróis, mais e mais produções têm se sucedido. Além disso, para grandes editoras como a Marvel e a DC, ter seus personagens estrelando longas-metragens de sucesso tornou-se uma importante fonte de renda. Mas, como era de se esperar, a pura exploração comercial e a ganância desenfreada não são receitas para obras de qualidade. Quem sobreviveu aos dois filmes do Batman dirigidos por Joel Schumacher talvez não imaginasse que se pudesse fazer produções milionárias ainda piores que aquelas. Contudo, alguns filmes dos últimos dez anos conseguiram essa façanha.

Segue então minha lista com as que considero as piores adaptações para o cinema da última década ou deste século, se preferirem (inicialmente, minha lista tinha apenas cinco filmes, mas outros acabaram tendo que ser incorporados).

1. A Liga Extraordinária (para mim a pior adaptação de todas, pois conseguiu pegar um quadrinho muito bacana, distorcê-lo, diminuí-lo e enxertá-lo, dando origem a puro e simples lixo cinematográfico. Sean Connery merecia coisa melhor!).

2. The Spirit (Frank Miller achou que estava fazendo um filme de Sin City e acabou deturpando completamente o espírito da obra-prima de Will Eisner).

3. X-Men Origens: Wolverine (tão ruinzinho que nem merece ser chamado de filme, mas sim de mero caça-níqueis de Hollywood).

4. Mulher-Gato (nem assisti, mas todo mundo fala tão mal que realmente tenho mais o que fazer e meu dinheiro não é capim. Além disso, as cenas que vi da Halle Bery vestida de Mulher-Gato só me deram saudades da Michelle Pfeiffer e seu inesquecível “miau!” em Batman - O Retorno).

5. Superman - O Retorno (um filmeco que jamais deveria ter sido feito).

6. Hulk (Ang Lee podia ter feito algo melhor do que uma bola verde saltitante, que mais parece o Geléia dos Caça-Fantasmas depois dos esteróides).

7. Elektra (tão chato que não consegui passar dos dez primeiros minutos).

8. Demolidor (o ator Ben Affleck deve ter ficado feliz em interpretar seu super-herói favorito, mas acho que só ele gostou desse filme).

9. Quarteto Fantástico (história, elenco e produção fraquíssimos. Ainda bem que assisti a isso de graça, na tevê).

10. Homem-Aranha 3 (falta história e sobram vilões. Ainda bem que também assisti de graça na tevê).

Fico aguardando os comentários de vocês com suas listas das piores adaptações dos últimos dez anos. Não deixem de participar!

14/02/2009

As últimas edições das revistas Pixel (?).


Com sua mistura de quadrinhos dos selos Vertigo, Wildstorm e ABC, nos últimos dois anos, a Pixel Magazine foi sem dúvida a melhor revista mensal à venda no mercado brasileiro. Com seu sucesso entre os leitores, a publicação ganhou no ano passado a companhia da Fábulas Pixel, que passou por muitos atrasos, tendo mais ou menos uma periodicidade bimestral. Agora, no entanto, com o silêncio e as incertezas que ainda rondam os destinos da Pixel Media (editora do grupo Ediouro) a PM n°21 e a FP n°4 podem realmente ser as últimas edições as revistas (não apenas no sentido de as “mais recentes”, mas também de as “derradeiras”). Enquanto a editora não emite nenhum comunicado definitivo sobre o destino de suas publicações e dela própria, compartilho com vocês o texto que preparei a pedido do então editor Cassius Medauar para a Fábulas Pixel n°4. Fica, é claro, a torcida para que a situação da Pixel se restabeleça e que suas ótimas revistas voltem a ser publicadas periodicamente.

Promethea: a fantástica viagem de Alan Moore & Cia.

A edição em suas mãos marca uma nova fase na trajetória de Promethea, série que chegou ao Brasil nas páginas da Pixel Magazine(n°s 4 a 15). Não apenas porque a partir de agora as fantásticas HQs criadas por Alan Moore & Cia. passam a ser publicas aqui, na Fábulas Pixel, mas também porque, com seu décimo terceiro capítulo, a série inicia uma exploração ainda mais profunda e complexa dos mistérios do Ocultismo e da Cabala.

Lançada nos Estados Unidos em agosto de 1999, estendendo-se por 32 edições, Promethea tem como personagem principal a universitária Sophie Bangs que, às voltas com sua monografia de fim de curso, acaba mergulhando no universo do folclore e da cultura pop. Porém, o que começa como uma pesquisa acadêmica acaba se transformando numa fantástica viagem iniciática, quando a própria Sophie assume a identidade de Promethea. Além da protagonista, somos apresentados à sua amiga Stacia, ao bruxo Jack Faust e às versões anteriores da heroína de Imatéria. Uma intrincada mistura de ficção e História, quadrinhos e literatura, ao longo da série acontecem também várias participações especiais, que vão de Chapeuzinho Vermelho e Lobo Mau, aos magos John Dee e Aleister Crowley.

Nos 12 primeiros capítulos dessa jornada mística, testemunhamos a aprendizagem e o desenvolvimento da nova Promethea. Já os capítulos 13 a 23 são nada menos que um curso de iniciação à Cabala e ao Ocultismo, na forma de belíssimas revistas em quadrinhos. Embora essa parte “iniciática” tenha desagradado a alguns leitores (pois há edições que não mostram muito mais que duas personagens conversando enquanto caminham), o trabalho dos autores deu origem a algumas das HQs mais belas, inteligentes e inventivas já publicadas no mercado norte-americano. E não pára por aí, pois os capítulos 24 a 32 guardam um surpreendente e “apocalíptico” desfecho (que inclui a participação de outros heróis da linha ABC, como Tom Strong, Jack B. Quick, Cobweb e Greyshirt).

Se não bastassem os roteiros originalíssimos, o visual das revistas, por si só, já faria de Promethea um capítulo à parte na história dos quadrinhos. Contando com desenhos detalhados, arte-final precisa e cores bem dosadas, as HQs publicadas na Pixel Magazine são um aperitivo para o que vem pela frente. Afinal, o que se inicia nesta Fábulas Pixel n°4 é um banquete para os olhos, repleto de imagens saborosíssimas, criadas por J.H. Williams III, Mick Gray e José Villarrubia. Trazendo diagramações de página inovadoras, diferentes estilos de desenho, diversas técnicas de finalização e colorização, o visual dos capítulos vai variando de acordo com a temática dos roteiros (o que nos leva, por exemplo, de uma edição inspirada em Salvador Dalí, a outra que mais parece uma pintura de Van Gogh).

Caso não tenha acompanhado os 12 primeiros capítulos publicados na Pixel Magazine, não perca tempo! Com um pouco de sorte, você ainda pode encontrar as revistas à venda por aí. Além disso, a Pixel já lançou uma coletânea com os 6 primeiros capítulos da série, e em breve deverá publicar a edição com as partes 7 a 12. Agora, se você é daqueles que leu essa obra-prima dos quadrinhos e não gostou... Bem, leia de novo! E mais uma vez e outra vez se for necessário, até perceber que Promethea é uma das melhores séries de quadrinhos dos últimos 10 anos. Então, para os que chegam agora e para aqueles que já seguiam essa fantástica jornada, boa leitura e boa viagem!

13/02/2009

Quadrinhos em tempos de guerra (V).


Cinco anos após o fim da Segunda Guerra Mundial, soldados norte-americanos encontravam-se há milhares de quilômetros de suas casas, lutando em mais uma guerra, esta motivada por disputas locais que foram amplificadas por questões ideológicas globais. O mundo naqueles tempos de Guerra Fria dividia-se entre Capitalismo e Comunismo, duas formas antagônicas de organização econômica e dominação ideológica. Com isso, muitas vezes, conflitos locais em países do chamado Terceiro Mundo acabavam envolvidos no contexto mais amplo da disputa entre as duas super-siglas: EUA e URSS (ou USA e CCCP). Em 1950, a “bola da vez” era a Coréia, e tropas norte-americanas e britânicas desembarcaram no país para auxiliar seus aliados locais a combaterem as investidas do grupo coreano rival, apoiado pelos soviéticos e chineses. Com o país em guerra, alguns quadrinhos norte-americanos reproduziram as fórmulas tradicionais de engajamento patriótico. Não faltaram, é claro, os símbolos nacionais, a exaltação da bravura e do heroísmo dos soldados compatriotas e a detratação dos inimigos, mostrados geralmente como covardes e cruéis.

Contudo, aqueles eram outros tempos e algumas revistas remavam contra a maré do conformismo patriótico. O melhor exemplo são os quadrinhos de guerra produzidos por Harvey Kurtzman para a EC Comics (a editora que já publicava a Tales from the Crypt e que lançaria a Mad). Um gênio relativamente pouco reconhecido, Kurtzman era idealizador, editor, roteirista, muitas vezes desenhista e até capista de suas publicações. Este era o caso de Two-Fisted Tales, antologia bimestral com quadrinhos de aventura histórica. Lançada em novembro de 1950, gradualmente ela foi se tornando uma revista dedicada a histórias de guerra, no geral originadas de testemunhos reais e textos historiográficos. Havia HQs sobre a Guerra de Independência e também a Guerra Civil norte-americana, sobre a Primeira e a Segunda Guerra Mundial, não faltando relatos sobre a Guerra da Coréia, na época em pleno andamento. E o que diferenciava aqueles quadrinhos escritos por Kurtzman e desenhados por uma constelação de artistas (que incluía ele próprio, Wally Wood, Jack Davis, John Severin e Bill Elder) era que não havia ali qualquer glamurização da guerra, nenhuma exibição de patriotismo voluntarista ou exaltação de heroísmos nacionalistas. Originais e inovadores, o que os quadrinistas da EC Comics criavam eram narrativas realistas sobre como é estar num campo de batalha. Eram relatos humanos que falam da dor, do medo, da destruição, do companheirismo, dos crimes e também do verdadeiro heroísmo de pessoas comuns que de repente se encontram numa situação terrivelmente absurda e violenta. Outro fator que diferenciava as HQs da Two-Fisted Tales é que nelas não há a detratação dos inimigos, que ali não são mostrados como seres desumanos ou subumanos.

Talvez nenhuma história represente melhor isso tudo do que “Corpse on the Imjin” que, em suas seis páginas, é o melhor quadrinho de guerra que já li. A história se passa na Coréia, às margens do rio citado em seu título, onde um soldado norte-americano observa o entulho levado pela correnteza, enquanto se prepara para comer sua ração. De vez em quando, em meio a caixas de munição e cartuchos de artilharia vazios, passa boiando o corpo de um coreano. A cena leva o narrador da HQ a se questionar: “Nós ignoramos o entulho que flutua! Por que então fixamos nossos olhos num corpo que passa?”. E o próprio narrador responde no quadro seguinte: “Embora às vezes nos esqueçamos, a vida é preciosa e a morte é feia, e nunca passa despercebida!”. Com essa reflexão, somos deixados na companhia do soldado que abre sua lata de feijão em conserva, enquanto reflete sobre como aquele coreano teria morrido, se por um bombardeio aéreo, disparo de canhão, um tiro ou: “Pode até ter sido num combate corpo-a-corpo... Embora eu duvide disso! Da forma que falam do combate corpo-a-corpo, você pensaria que acontece o tempo todo, quando na verdade eu nunca ouvi falar de alguém que tenha chegado perto o bastante do inimigo para usar uma baioneta. Eu acho que o combate corpo-a-corpo era estritamente uma coisa para os velhos tempos, quando todo mundo lutava com espadas e facas. Agora, com as armas de longo alcance, nós podemos muito bem matar por controle-remoto! E nós nunca chegamos a menos de uma milha do inimigo!”. O que o soldado não percebe (enquanto aquelas palavras passam por sua mente e ele está prestes a abocanhar sua primeira colherada de feijões) é que, ao fundo, escondido num arbusto, um soldado coreano o observa, prestes a atacar. A luta se inicia e volta então o narrador que nos descreve o coreano como: “molhado e assustado e faminto”. Envolvido numa desesperada luta corpo-a-corpo, o soldado norte-americano se vê seguidamente surpreendido e desarmado pelo “pequenino” inimigo. Mas o narrador também sugere que: “Bem dentro de si”, o soldado “não acredita realmente que possa enfiar uma faca em outro ser humano”. E diante da situação, o narrador pergunta ao soldado compatriota: “Onde estão as sacadas espertas que você lê nas revistas em quadrinhos? Onde estão os ganchos de direita estilosos que você vê nos filmes?”. Por fim, contudo, o soldado se vale da vantagem corporal para sobrepujar e matar o coreano, caindo sobre ele, estrangulando e afogando-o nas águas do Imjin. Então, “cansado”, “ofegante” e “tremendo”, o soldado norte-americano deixa as águas do rio, caminhando “envergonhado”. Não há ali qualquer combate glamuroso ou triunfo heróico. O que há é uma luta desesperada pela própria vida. Quando a história segue seu curso para o fim, o narrador nos pede: “Tenha compaixão! Tenha compaixão do homem morto! Pois agora ele não é rico ou pobre, certo ou errado, mau ou bom! Não o odeie! Tenha compaixão... pois ele perdeu a coisa mais preciosa que valorizamos acima de todas... ele perdeu sua vida!”.

Com um desenho intenso, uma narrativa dinâmica e um texto preciso, as seis páginas de “Corpse on the Imjin” têm a força de uma obra de Ernest Hemingway, em seu apelo profundamente humano. Publicada em janeiro de 1952 e incrivelmente atemporal, a HQ parece uma obra escrita por Alan Moore em um de seus melhores momentos (o que serve para nos lembrar que Kurtzman foi de fato uma das principais inspirações criativas de Moore). Acima de tudo, essa pequena obra-prima vem nos mostrar que, mesmo em tempos de guerra e com seu país envolvido num conflito armado, um artista consciente como Harvey Kurtzman não trai seus princípios, nem se deixa levar pelas fórmulas da propaganda ideológica. Um exemplo raro e verdadeiramente admirável para estes nossos tempos tão sangrentos!

12/02/2009

Quadrinhos em tempos de guerra (IV).


Por motivos óbvios, um recurso muito comum na propaganda de guerra (seja ela oficial ou não) é a detratação dos inimigos, comumente pintados como seres covardes e cruéis. Afinal, torna-se mais fácil se engajar num esforço de guerra quando se imagina que aqueles contra os quais se luta têm uma natureza desumana ou mesmo subumana (sendo, portanto, menos merecedores de continuarem vivos). Neste sentido, o que pode passar como uma mera caricaturização de um determinado grupo étnico ou nacional, acaba tendo o efeito de negar a condição humana daqueles contra os quais se luta.

Um exemplo disso pode ser visto na capa produzida pelo talentoso ilustrador Alex Schomburg para a revista The Fighting Yank, com seu herói supostamente vestido à moda do século 18 e inspirado no espírito da Guerra de Independência dos Estados Unidos. Na ilustração, vemos o “mais bravo defensor da América” relaxadamente sentado numa cadeira, tendo a seus pés diversos soldados japoneses derrotados e ao fundo o Imperador Hirohito em pessoa, amarrado a seu trono, tendo às costas a bandeira do “Sol Nascente” (símbolo das aspirações expansionistas do Japão das primeiras décadas do século 20). Completam a cena vasos de plantas, um biombo decorado com flores e três soldados norte-americanos: um primeiro espantado, um segundo surpreso e um terceiro fazendo troça do governante japonês.

Mas, para mim, o que se ressalta nesta capa tecnicamente irreparável são as caracterizações desumanizadas dos soldados japoneses, com seus olhinhos espremidos, cabeça redonda, pequenas orelhas destacadas e grandes dentes proeminentes e espaçados. Mais numerosos, porém pequenos, armados, porém incompetentes, os ridículos e derrotados soldados, com seu impotente governante de vestes peculiares não representam, é claro, o povo japonês, mas sim o desprezo norte-americano por seus adversários na Guerra do Pacífico. Com sua política de dominação territorial e seu militarismo prepotente (sem falar nos incontáveis crimes de guerra cometidos contra outros povos orientais), o Império Japonês causou a si mesmo e a seu povo a destruição que viria ao fim da Segunda Guerra Mundial. Contudo, no jogo sujo da guerra, na mistura de nacionalismo e racismo, esta capa da Fighting Yank #12 parece acertar em cheio na intenção de desumanizar e diminuir, para o público norte-americano da época, aqueles inimigos odiados. O fato é que, quando se tem em mente que aqueles contra os quais se luta são, de alguma forma, menos humanos do que você é, pode se tornar mais aceitável o bombardeio incendiário de cidades de madeira e papel, ou mesmo a detonação de uma ou duas bombas atômicas sobre populações civis indefesas.

11/02/2009

Quadrinhos em tempos de guerra (III).


Em tempos de guerra, torna-se muito comum a exaltação emotiva dos símbolos e ideais nacionais. Personagens como o super-nacionalista Capitão América, “o defensor da liberdade”, são um claro exemplo disso. Por outro lado, a propaganda de guerra (mesmo a não promovida por órgãos oficiais) emprega intensamente a difusão do medo como instrumento de mobilização social. No contexto de um conflito armado, o temor pela própria vida, por sua segurança e a das pessoas que se ama é algo totalmente compreensível e justificável. Mas sobre a sensação real de insegurança, costuma-se projetar simbologias e imagens que têm como efeito a reprodução de medos irracionais.

Um exemplo disso é a capa acima, desenhada pelo ilustrador Alex Schomburg. Nela vemos o herói Green Hornet, seguido por seu fiel ajudante negro, enfrentando vilões que ameaçam a vida de uma loira e indefesa mocinha. O elemento simbólico mais importante aqui são os vilões que variam de um abobado soldado nazista, até um espectro amarelo e flagelado, passando pela figura central: um homem com vestes amarelas que cobrem quase todo seu corpo, com ossos cruzados no peito, um capuz com a suástica e feições monstruosas que incluem presas vampirescas. O texto em destaque convoca o leitor a “conhecer a história por trás da capa”, que descobrimos tratar de um “navio fantasma nazista” (informação seguida de outra que fala do “espírito de [17]’76”, ano da declaração de independência dos Estados Unidos).

Vista hoje, esta ilustração de capa parece incrivelmente ingênua. Mesmo porque, ao final dos anos de destruição e barbárie da Segunda Guerra Mundial, a Humanidade descobriria atônita o verdadeiro terror que o Nazismo fôra capaz de produzir. A verdade é que os fantasmas e vampiros da ficção não são símbolos capazes de representar a terrível realidade dos campos de concentração, câmaras de extermínio e outros crimes e aberrações nazistas.

10/02/2009

Quadrinhos em tempos de guerra (II).


Muitas coisas podem ser ditas sobre a guerra. Uma delas certamente é que guerra não é coisa de criança. No entanto, alguns quadrinhos da Segunda Guerra Mundial contrariam essa afirmação. Um exemplo é Commando Cubs, série da editora Nedor que mostrava cinco garotos participando de missões, nas quais lutam contra soldados alemães ou japoneses (como vemos na capa ao lado, ilustrada por Alex Schomburg). O fato é que, empunhando armas, dirigindo tanques, navegando submarinos ou pilotando aviões, os “filhotes de comando” enfrentam e matam soldados inimigos. Num quadrinho voltado ao público infantil, que traz até alguns elementos de humor, a violência praticada por crianças e adolescentes passa despercebida, quase como a aventura de uma turma de amigos (exceto pelo fato, é claro, de que suas armas não são de brinquedo).

Mesmo considerando o contexto, não consigo deixar de me espantar com o absurdo dessa série de quadrinhos e a insensibilidade dos editores, que pareciam exclusivamente preocupados em vender revistas e promover o esforço de guerra de seu país. Na parte de baixo da capa, vemos até uma convocação para que se compre “títulos e selos de guerra, para a vitória!”.

(O arquivo de imagem que ilustra esta postagem também foi conseguido no saite Cover Browser, que tem um excelente repertório de capas de quadrinhos clássicos e modernos.)

09/02/2009

Quadrinhos em tempos de guerra (I).


Durante a Segunda Guerra Mundial, os quadrinhos tiveram um importante papel como veículos de propaganda nacionalista e mobilização em favor do esforço de guerra. Um dos exemplos mais claros disso é o Capitão América, super-herói que já enfrentava soldados nazistas mesmo antes de seu país entrar oficialmente no conflito. Criado pela dupla Joe Simon e Jack Kirby, o personagem foi lançado pela Timely Comics (que daria origem à Marvel) na revista Captain America Comics #1, datada de março de 1941. Na capa de sua edição de estréia, vemos o herói super-nacionalista dando um soco no próprio Adolf Hitler, enquanto soldados alemães disparam contra ele. Se não bastasse a chamativa ilustração, um texto na capa promete uma aventura emocionante, quando o “Capitão América fica cara a cara com Hitler”. De quebra, o “jovem aliado do Capitão América, Bucky” bate continência para o jovem leitor, ao qual aquela revista se dirigia.

Em alguns meses, muitos desses leitores, seus irmãos ou pais estariam há milhares de quilômetros de suas casas, matando ou sendo mortos por outros jovens ou homens que também estavam há milhares de quilômetros de suas casas, lutando numa guerra bárbara e injustificável.

(O arquivo de imagem que ilustra esta postagem foi conseguido no saite Cover Browser, que tem um excelente repertório de capas de quadrinhos clássicos e modernos.)

06/02/2009

Super-heróis: um fenômeno dos quadrinhos (II).


Entre 1938 e 1945, aconteceu o auge do que se chama nos Estados Unidos de “Era de Ouro dos Quadrinhos”. Por motivos intrínsecos ao gênero e relativos ao contexto do fim dos anos 30 e início dos anos 40, os super-heróis proliferaram no mercado norte-americano (praticamente como na multiplicação infinita sugerida pela criativa capa ao lado, criada por Alex Schomburg para a revista America’s Best Comics). Afinal, a superação dos anos da Grande Depressão e principalmente o patriotismo do período da Segunda Guerra Mundial foram um terreno fértil para o crescimento exponencial do gênero dos coloridos seres superpoderosos e suas aventuras maniqueístas. Não é à toa, portanto, que personagens como o Capitão América apareceram nas capas de revistas esmurrando o próprio Adolf Hitler, enquanto outros como o Fighting Yank faziam pose relaxada, tendo aos pés um destacamento de bestializados soldados japoneses e ao fundo o próprio Imperador Hirohito amarrado em seu trono. Mesmo se considerarmos o contexto, aquele foi um triste momento em que estereótipos étnicos desdobraram-se em racismo, enquanto os super-heróis tornavam-se veículos perfeitos para o ufanismo e a propaganda pró-guerra.

A partir da segunda metade dos anos 40, porém, os quadrinhos de super-heróis foram perdendo espaço para outros gêneros (como o terror, o faroeste e a ficção científica) e a maior parte dos personagens teve suas revistas canceladas ou simplesmente desapareceu. Entre os poucos sobreviventes estavam os heróis da National Periodical / DC Comics: Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha (uma super-heroína criada para contemplar o público feminino e corresponder à condição mais ativa que as mulheres assumiram a partir dos anos 40). Seria a própria DC a responsável por reativar o gênero, quando em 1956 o lendário editor Julius Schwartz decidiu lançar a versão modernizada de um clássico personagem da editora: o Flash. Bem recebida pelo público, essa primeira reformulação motivou o relançamento do Lanterna Verde e de outros personagens, que ganharam um visual anos 50 e uma forte influência da ficção científica. Mais tarde viria a Liga da Justiça da América, grupo que reunia alguns dos principais super-heróis da editora (e era ela própria uma reedição da Sociedade da Justiça, o primeiro grupo de super-heróis, lançado nos anos 40). Tinha início ali a chamada “Era de Prata dos Quadrinhos”, na qual os seres superpoderosos ganharam até similares em outros países (como os brasileiros Capitão 7 e Raio Negro).

Na virada para os anos 60, as coisas iam bem para a DC. Contudo, mesmo com as modernizações, havia algo de monolítico e infalível em seus personagens que já não agradava tanto a alguns leitores. Por isso mesmo, os super-heróis mais complexos e novos em folha lançados pela Marvel Comics, a partir de 1961, logo fariam a cabeça da garotada nos Estados Unidos e em outras partes do mundo (como o Brasil, onde chegaram na segunda metade daquela década, como parte de uma campanha publicitária da Shell). A verdade é que com seus dramas, problemas, ideais e paixões, o Quarteto Fantástico, o Homem-Aranha, o Hulk, os Vingadores e outros super-heróis criados por Stan Lee, Jack Kirby e Steve Ditko tomaram de assalto o mercado de quadrinhos e o imaginário ocidental. E em relação à qualidade das HQs em si, as revistas da Marvel foram as verdadeiras responsáveis pela renovação do visual nos quadrinhos norte-americanos, imprimindo mais dinamismo e estilização às páginas. Neste ponto, é claro, destaca-se acima de todos o nome de Jack Kirby, um dos maiores artistas da história dos quadrinhos e o gênio responsável por um enriquecimento sem precedentes no repertório visual e narrativo das revistas de super-heróis.

Com tudo isso, o que se seguiu ao longo dos anos foi uma disputa titânica pela preferência dos leitores, tendo como protagonistas a DC e a Marvel, além de coadjuvantes passageiras, como a Charlton. No início dos anos 70, houve um amadurecimento na temática e no visual das revistas, com o trabalho de quadrinistas inovadores como Dennis O’Neil e Neal Adams (que incorporaram questões sociais e um traço mais dramático às HQs), o que deu início à chamada “Era de Bronze dos Quadrinhos". E enquanto desenhos animados como Superamigos e Homem-Aranha cativavam o público infantil, as publicações das duas grandes editoras voltavam-se cada vez mais para o público adolescente, com desenhos mais elaborados e tramas mais complexas, refletindo o sucesso dos X-Men e dos Novos Titãs. Na primeira metade dos anos 80, a Marvel parecia ter todos os trunfos na mão, contando com os personagens mais populares e alguns dos mais destacados roteiristas e desenhistas da época, como Chris Claremont, Bill Sienkiewicz, John Byrne e Frank Miller. Mas a DC tinha Marv Wolfman e George Pérez, e tratou de contratar os principais astros da concorrente, sem falar num relativamente desconhecido roteirista inglês chamado Alan Moore, que influenciaria os rumos dos quadrinhos norte-americanos definitivamente.

O resultado foram os clássicos imediatos dos quadrinhos de super-heróis, lançados entre 1985 e 1987: Crise nas Infinitas Terras, O Cavaleiro das Trevas, Watchmen e as reformulações racionalistas dos principais personagens da DC, como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha. Com esses trabalhos marcantes, teria início o que os fãs norte-americanos chamam de “Era Moderna dos Quadrinhos”. Mas vendo sua rival retomar espaço no mercado, a Marvel reagiu reforçando as revistas dos heróis mutantes e do popular Homem-Aranha, com um visual arrojado que agradava em cheio aos leitores de fins dos anos 80. Mas sua alegria durou pouco, pois em 1992 os desenhistas Todd McFarlane, Jim Lee e Rob Liefeld, que haviam feito suas revistas baterem os recordes de vendas, deixaram a editora para fundar a Image Comics. Além disso, no que diz respeito ao conteúdo das revistas, a proposta de uma abordagem mais realista dos super-heróis (trazida por Alan Moore e Frank Miller) acabou desvirtuada numa concepção meramente pessimista e hiperviolenta, com a qual as diferenças entre heróis e vilões tornaram-se mais e mais difusas. Acumulando erros editoriais, com a concorrência de outras mídias e problemas financeiros, em meados dos anos 90 a Marvel quase faliu e as coisas na DC já não andavam muito bem (não aprender com os erros do passado é realmente um grande erro!).

Debatendo-se entre múltiplas “guerras” e “crises” Marvel e DC fizeram até “amálgamas” ao longo do caminho, sempre buscando sobreviver num mercado cada vez mais restrito e corresponder aos interesses mais imediatos dos leitores. Ao que parece, contudo, a aliança definitiva das grandes editoras não foi entre si ou com os fãs de quadrinhos, mas sim com os grandes produtores de cinema, tevê, jogos, brinquedos e outros ramos mais lucrativos da indústria do entretenimento. Embora tenham hoje condições de contratar a peso de ouro medalhões como Neil Gaiman e Joss Whedon, além de relançarem suas séries em luxuosas edições em capa-dura, as editoras de super-heróis parecem cada vez mais subsidiárias de Hollywood. E com isso, cada vez menos, os personagens que fizeram sua glória e sucesso parecem ser capazes de gerar interesse e cativar a atenção dos leitores de HQs (da forma como faziam em décadas mais simples e de menos recursos). Talvez algo da “magia” dos clássicos e até ingênuos quadrinhos do Capitão Marvel tenha mesmo se perdido definitivamente. Ou mesmo algo mais recente, como a força criativa das séries e reformulações dos anos 80, tenha já se perdido no pântano da exploração comercial e baboseiras editoriais.

Temos a tendência, é claro, de acharmos que “na nossa época” as coisas eram melhores. Mas os quadrinhos de super-heróis são um daqueles poucos casos (como o futebol, aliás) em que podemos dizer, com segurança e sem nostalgia, que antigamente as coisas eram mesmo melhores! Porque atualmente... Felizmente, temos hoje nossas coleções e também reedições de qualidade que nos permitem experimentar a magia e a força de outros tempos mais criativos e cativantes. De outras épocas ou “eras” que fizeram dos super-heróis um verdadeiro fenômeno dos quadrinhos.

02/02/2009

Super-heróis: um fenômeno dos quadrinhos (I).


Poucos gêneros de quadrinhos alcançaram o sucesso mercadológico e a renovável popularidade das HQs de super-heróis. Com seus superpoderes, roupas colantes coloridas e aventuras cheias de ação física, Super-Homem e a miríade de personagens que se seguiu a ele são um fenômeno cultural que merece ser abordado de uma forma mais séria. Sem desconsiderar a pura paixão que motiva os leitores a acompanharem as aventuras de seu herói favorito em revistas, animações, filmes e jogos, os super-heróis podem ser vistos em termos mais objetivos, sendo analisados de forma conceitual, como proponho fazer neste texto.

De início, seria interessante fazer-se um “recorte espaço-temporal”, que situe o fenômeno analisado. No caso dos quadrinhos de super-heróis, podemos localizar sua origem histórica no mercado norte-americano de quadrinhos, em abril de 1938, quando foi lançado o primeiro número da revista Action Comics. Afinal, aquela edição trazia já em sua capa a estréia do Super-Homem, personagem criado pelos jovens Jerry Siegel e Joe Shuster, considerado consensualmente como o primeiro dos super-heróis. Contextualizadas numa grande metrópole norte-americana dos anos 30, mas trazendo elementos de ficção científica, as primeiras HQs do Homem de Aço foram um sucesso imediato, ganhando versões em episódios radiofônicos e animações para o cinema, além de influenciarem o surgimento de outros personagens do mesmo gênero.

Desde que surgiram, os quadrinhos de super-heróis mostraram-se bastante permeáveis a influências de outros gêneros, como as tiras de aventura, os filmes de gângsteres e as histórias de ficção científica. Mas o que havia de especial nas HQs do Super-Homem, que garantiu seu avassalador sucesso com o público infanto-juvenil? Na minha opinião, foram exatamente os três fatores que caracterizam o gênero super-herói desde sua origem (e que se mantêm presentes até hoje, apesar de algumas mudanças e revisões ao longo do tempo):

1. Tramas maniqueístas baseadas na ação física. Em outras palavras, é a versão para entretenimento do velho conflito entre o “bem” e o “mal”. São aventuras que mostram o protagonista (o herói que representa valores positivos) enfrentando um ou mais antagonistas (os vilões que representam valores negativos) para defender a integridade física de personagens coadjuvantes (como a mocinha em perigo que representa o prêmio a ser conquistado) e garantir a manutenção da ordem social estabelecida (pois no final, vencida a ameaça, tudo deve voltar à normalidade representada pelo “jeito americano”). Na maioria das vezes, a resolução do conflito iniciado com o surgimento do vilão e os eventos acarretados por seu plano maquiavélico se dá através de ação física, com o herói colocando em prática suas habilidades atléticas e especialmente a força de seus punhos.

Até este ponto, temos uma descrição da dinâmica das HQs de super-heróis que já estava presente, por exemplo, nas tiras de aventura dos anos 30. Na verdade, porém, o que destacou o novo gênero foram as duas características seguintes.

2. Um elenco de personagens principais com poderes e/ou habilidades extraordinárias. Embora o Super-Homem não voasse em suas primeiras HQs, ele era capaz de dar saltos que ultrapassavam a altura dos arranha-céus de Metrópolis e de correr a velocidades incríveis, além de ter uma força física superior à das pessoas comuns e de ser invulnerável a balas e outras agressões físicas. Não é por menos que qualquer garoto da época gostaria de ser o Homem de Aço! Ou talvez o Batman (criado por Bob Kane e Bill Finger em 1939) que, embora não possuísse a mesma força que o alienígena vindo de Krypton, em compensação tinha as habilidades de um acrobata, a inteligência do melhor detetive de todos os tempos e dinheiro o bastante para comprar ou construir os equipamentos mais bacanas do planeta, como um carrão todo estiloso ou um infalível cinto de utilidades.

Ainda assim, poderes e habilidades extraordinários existem em outras narrativas antigas (como as sagas dos heróis mitológicos) ou modernas (como os próprios mangás japoneses). Logo, o que diferencia definitivamente o gênero super-herói dos demais é a característica seguinte.

3. As fantasias coloridas ou os aspectos físicos incomuns. Na cultural ocidental dos últimos setenta anos, uma colorida roupa colante com um símbolo característico (um “S” ou uma silhueta de morcego) é o signo de identificação máximo dos super-heróis (algo que se torna muito evidente nas sátiras que se fazem a eles). Deixar de lado o terno e os óculos do desajeitado e pacato Clark Kent, para combater o crime vestindo uma chamativa roupa azul e vermelha com um grande “S” no peito, sempre foi um dos grandes trunfos do Super-Homem na conquista de seus fãs. Mesmo porque, as sociedades modernas, com sua massificação e opressão da individualidade, tendem a gerar o desejo individual de se destacar na multidão (como sugere a bela capa da revista All Star Comics, que ilustra esta postagem). Neste sentido, pela identificação do leitor com o protagonista da história, os super-heróis teriam algum papel na fantasia individual da superação do anonimato. Isso pode ser ainda mais marcante no caso de personagens como o Homem-Aranha, que usa uma fantasia que esconde sua identidade por completo (e que, portanto, faz com que ele possa ser qualquer um dos leitores de suas HQs). Há, por outro lado, os personagens que não necessitam de uma fantasia colorida ou de um símbolo no peito para representar seus poderes. Nesses casos, os poderes já são evidenciados por aspectos físicos incomuns, que muitas vezes identificam o herói com uma certa estigmatização, como é o caso do Coisa, do Hulk, do Fera e do Surfista Prateado, entre outros.

Apesar de se tratar de um modelo conceitual, a análise dos super-heróis que proponho aqui possui um exemplo perfeito: as HQs clássicas do Capitão Marvel (criadas pelo talentoso cartunista C.C. Beck). Lançado pela Fawcett Comics em 1940, o carismático personagem logo se tornaria o super-herói mais popular entre os leitores e o campeão de vendas do mercado norte-americano (até ter sua publicação interrompida pelo infame e absurdo processo judicial no qual os editores do Super-Homem acusavam a Fawcett Comics de ter plagiado seu personagem). Com um visual bastante chamativo, o Capitão Marvel possuía um trunfo que nenhum outro super-herói poderia igualar: a palavra mágica “Shazam!”, que transformava o garoto Billy Batson no “mortal mais poderoso da Terra” (e isso sim é conseguir uma identificação direta do personagem com seu público-alvo!). Sucesso imediato, o herói logo ganhou a companhia de Mary Marvel e Capitão Marvel Jr. (formando a Família Marvel), além do tigre falante Tawky Tawny (Sr. Malhado). Para completar, ele enfrentava alguns dos vilões mais interessantes de todos os tempos: o gênio do crime megalomaníaco Dr. Silvana e o Sr. Cérebro, uma minhoca alienígena que quer dominar a Terra. O resultado era uma divertida série de ação, que cativou gerações de leitores.