30/01/2009

Algumas palavras sobre Angelo Agostini.


Nesta sexta-feira, 30 de janeiro, celebra-se o “Dia do Quadrinho Nacional”, data que comemora o lançamento, há exatos 140 anos, do primeiro episódio de As aventuras de Nhô Quim, ou impressões de uma viagem à corte. Esta obra criada por Angelo Agostini é considerada a primeira história em quadrinhos produzida no Brasil, sendo também uma das primeiras publicadas em todo o mundo (décadas antes, por exemplo, do excessivamente celebrado Yellow Kid, do norte-americano Richard Outcault). Para marcar a data de hoje, publico aqui um trecho de meu livro O riso que liberta, no qual falo especificamente de Angelo Agostini (que aparece como um Dom Quixote tropical no auto-retrato acima).

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Nascido na região italiana do Piemonte e criado em Paris, Angelo Agostini chegou a São Paulo por volta dos 20 anos de idade, lançando em 1864 seu primeiro periódico de textos e ilustrações, o Diabo Coxo. A esta experiência pioneira (primeiro jornal ilustrado da província) se seguiria, em 1866, o Cabrião. Após mudar-se para o Rio de Janeiro, e ainda inspirado nos jornais de caricatura europeus (como Le Charivari), Agostini lançou, em 1876, o semanário Revista Illustrada, com críticas à sociedade do Segundo Império, e em 1895, já sob o governo republicano, o jornal Don Quixote, além de participar de diversas publicações de outros editores como O Malho e O Tico-Tico (estas no início do século 20).

Quer seja quando fazia caricaturas de governantes, quer seja ao retratar personagens anônimos da vida brasileira, Agostini produziu em litografia um importante documento histórico (em potencial) sobre os tempos do Segundo Império e os primeiros anos da República. Atento aos acontecimentos e engajado nas lutas pela liberdade dos escravos e pela liberdade de imprensa, Agostini (como todo bom “jornalista humorístico”) desagradava aos donos do poder, enquanto seus jornais e desenhos gozavam de popularidade entre os leitores. Para o semiólogo e pesquisador de quadrinhos Antônio Luiz Cagnin:

“Ainda que pioneiro nas histórias em quadrinhos, Agostini foi mais conhecido como caricaturista e como tal se destacou no panorama da vida nacional por sua atuação na imprensa ilustrada. Empunhando as armas do riso e da sátira, exerceu uma influência efetiva na formação da opinião pública, sobretudo em momentos decisivos da vida nacional: a abolição da escravatura e a proclamação da república. Esse mesmo poder persuasivo através da imagem, Agostini havia exercido antes, em São Paulo, por ocasião da guerra do Paraguai” (Phenix, 1996, p.10).

O crédito pelas informações biográficas sobre Angelo Agostini, apresentadas aqui, deve-se ao trabalho de revisão crítica realizado por Antônio Luiz Cagnin (e divulgado na edição de estréia da breve revista de pesquisa sobre histórias em quadrinhos Phenix). Infelizmente, apesar da importância de Agostini para o humor político e os quadrinhos no Brasil, ele é hoje virtualmente desconhecido do público em geral. O que se deve principalmente ao fato de serem raras as republicações de seus trabalhos (merecendo destaque a excelente coletânea de seus quadrinhos lançada, em 2002, pelo Senado da República). Aliado a isso, o número limitado de pesquisas sobre o humor político brasileiro e a restrita divulgação dos trabalhos realizados dificultam a construção de uma história da caricatura no Brasil.

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Quando realizei minha pesquisa de Mestrado há dez anos e concluí minha tese de Doutorado há cinco anos, de fato o número de pesquisas acadêmicas e o interesse pelo humor e pelos quadrinhos brasileiros era bastante limitado. Felizmente, nos últimos anos, as instituições acadêmicas têm se mostrado mais abertas a trabalhos sobre o tema. Além disso, a boa recepção dos livros do pesquisador Gonçalo Júnior e de obras como O rebelde do traço: a vida de Henfil escrito por Dênis de Moraes chamaram a atenção das editoras para um filão mercadológico pouco explorado.

Com isso, novas publicações têm surgido todos os meses, como o recém-lançado A leitura dos quadrinhos, livro no qual o jornalista Paulo Ramos analisa a linguagem das HQs. E isso sem falar no incansável e importantíssimo esforço de Henrique Magalhães, que através da editora Marca de Fantasia dá vazão a uma parte significativa da produção acadêmica nacional voltada aos quadrinhos, humor e linguagens afins. Mas se o cenário melhorou nessa última década, há ainda muito o que se pesquisar e principalmente publicar, para termos resgatada e valorizada a memória de nossos quadrinhos e desenhos de humor. Uma tradição brilhantemente iniciada por pioneiros como Angelo Agostini.

10/01/2009

Qual é seu personagem dos quadrinhos favorito?


Nós, leitores de quadrinhos, costumamos ter personagens preferidos, que acompanhamos em revistas, álbuns, filmes, animações... É claro que os motivos para gostarmos deste ou daquele personagem são pessoais e às vezes nem mesmo sabemos os porquês. No meu caso, percebi que os personagens que hoje considero meus favoritos são ligados às obras das quais mais gosto (mas que não são necessariamente as melhores que já li, em termos artísticos).

Sempre tive a curiosidade de saber quais são os personagens favoritos de outros leitores, o que me motivou a escrever esta postagem. Assim, gostaria de contar com a participação dos leitores do Mais Quadrinhos. Abaixo, está a lista dos meus personagens favoritos (atualmente). Optei por uma lista com cinco nomes, mas a sua pode ter quantos nomes quiser (se possível na sua ordem de predileção). Na minha lista, também indiquei as obras específicas que me fazem gostar deles, mas se preferir pode fazer uma lista simples (só citando os nomes). Então vamos lá!

1. Monstro do Pântano (especialmente nas revistas Swamp Thing #21-27 e #34-36, produzidas por Alan Moore, Steve Bissette e John Totleben).

2. Marvelman / Miracleman (em tudo que Alan Moore escreveu para o personagem, com exceção de alguns capítulos pessimamente desenhados).

3. Batman (na maior parte dos episódios de Batman: The Animated Series de 1992-1993 e também na HQ Mad Love, criada por Paul Dini e Bruce Timm).

4. Pererê (na série produzida por Ziraldo entre 1960 e 1964).

5. Grauna (nas HQs que Henfil publicou na revista Fradim n°s 9 a 14).

Fico aguardando então os comentários com sua lista de personagens favoritos dos quadrinhos. Abraços!

08/01/2009

Solar: da “versão apócrifa” à versão reformulada.


Em 2004, Solar completou dez anos de sua criação. Por gostar do conceito do personagem e achar que ele merecia histórias mais bem-construídas, decidi trabalhar numa reformulação. Em novembro daquele ano, comecei a bolar uma história que recriaria o herói, tendo como pano de fundo elementos de xamanismo e magia. O resultado final, alcançado em dois meses de trabalho, foi um roteiro dividido em sete capítulos, com um total de 98 páginas (que acabaria se tornando o que chamo hoje de “Solar: Versão Apócrifa”).

Nessa versão alternativa, criada na passagem de 2004 para 2005, o nome de Solar passou a ser Gabriel Ribeiro, pois ele e sua mãe, Sofia, não tiveram que se separar logo após seu nascimento (como acontecia na versão original, na qual ele tinha pais adotivos). Outra mudança é que o personagem seria mais jovem (tendo 21 anos, e não 27) e não estaria casado ainda com Cristiane (que seria sua namorada, e não sua esposa como na primeira versão). A reformulação também contaria com a participação do pai de Gabriel, o aroe Uiraçu, e traria um personagem novo que faria as vezes de vilão: o mago Basílio.

Com o roteiro praticamente pronto, decidi dar andamento ao projeto. No início de 2005, um amigo desenhista começou a trabalhar nas páginas da reformulação. Contudo, após desenhar os dois primeiros capítulos, ele teve que deixar o projeto, devido a compromissos pessoais. Pouco tempo depois, assumiu um novo desenhista que me pediu para trabalhar na reformulação e que, pelas diferenças nos estilos de desenho, teve que partir do zero. Nos dois primeiros capítulos tudo correu bem. Mas a partir do terceiro começaram atrasos e houve perda de qualidade nas páginas, o que se repetiu no quarto capítulo.

Para piorar, enfrentando problemas pessoais, o desenhista abandonou o projeto no início de 2006, deixando-me com um trabalho inacabado e um considerável prejuízo financeiro. Afinal, não seria viável que outro desenhista continuasse a HQ de onde esse último havia parado (por questões de diferenças de estilo); e pela própria estrutura de meu roteiro, não seria possível publicar apenas o que já estava pronto (pois ficaria uma trama pela metade). Com tudo isso, o fato é que possivelmente as dezenas de páginas finalizadas do que passei a chamar de “Solar: Versão Apócrifa” jamais serão publicadas.

Muito chateado, cheguei a quase desistir do projeto. Mas, pouco tempo depois, para “exorcizar” a raiva que tinha passado, resolvi debruçar-me novamente sobre a reformulação de Solar. O resultado foi que, ao longo de 2007, acabei reescrevendo e redesenhando a maior parte do roteiro. Era hora então de reiniciar a busca por um desenhista. O primeiro que apareceu desenhou uma página e sumiu do mapa. Um segundo fez ótimos estudos de personagens, mas não chegamos a um acordo quanto a prazos e valores. Passado algum tempo, veio um terceiro que, após três meses, acabou não produzindo nada.

Nesse ponto, a reformulação de Solar já havia se tornado uma verdadeira “novela”. Mas então, no início de 2008, conheci o desenhista Rubens Lima (autor da imagem que ilustra esta postagem). Ele tinha lido o Solar original quando adolescente e ficou interessado em trabalhar comigo na reformulação. Acertados os valores e prazos, Rubens começou a trabalhar nos estudos de personagens e nas primeiras páginas. E assim, após quatro anos de persistência, a reformulação de Solar finalmente está ficando pronta (com as 48 páginas de Solar: Renascimento já finalizadas e mais algumas páginas a caminho).

Nessa nova versão, o personagem se chama Gabriel Ribeiro e trabalha como programador visual, tem cerca de 27 anos e é casado com Cristiane Villas Bôas. Sua mãe Sofia e seu pai Uiraçu também têm uma participação importante na trama. Em essência, é o mesmo personagem, porém, os roteiros estão mais concisos que nas versões anteriores e o caráter cultural e simbólico do personagem foi ressaltado. Isso sem falar nos desenhos marcantes do Rubens (que deram um novo visual ao herói, que inclui um símbolo xamanístico do Sol tatuado no peito). No fim, todo o trabalho e as chateações parecem ter tido um propósito, que foi o de me levar a fazer um trabalho de qualidade superior.

Agora é conseguir um patrocínio ou (de preferência) uma editora, para que Solar possa alçar vôo, mais uma vez!

05/01/2009

Caliban: desafios, idéias e quadrinhos.


A primeira edição da revista Caliban, lançada em agosto de 1997, encerrava com o texto “Manifesto Caliban”, no qual eu apresentava, em tom desafiador, a proposta e as motivações da revista. Já na edição n°5, de janeiro de 1998, publiquei o texto “Caliban Manifesto”, no qual explicava um pouco melhor a razão para o título da revista. Nesta postagem, reapresento os dois textos para que vocês possam saber mais sobre o que era aquela revista de quadrinhos, idéias e desafios.

- Manifesto Caliban -
Onde evocamos nossa origem ancestral
e manifestamos que queremos ser perigosos.


Bem-vindos ao banquete-ritual! Nosso mestre de cerimônias é Caliban. Isso mesmo! Aceitamos o nome pelo qual nos chamou Shakespeare: somos bárbaros e perigosos! Não somos os nativos colonizados da periferia de Patópolis ou o indolente “mexicano que dorme”. Mas também não somos os canibais estereotipados. Somos, sim, antropófagos culturais.
Não rejeitamos o quadrinho estrangeiro. Queremos devorá-lo, assimilando o que ele tem a oferecer de original e fecundo. Adoramos os mestres Tezuka, Kirby, Pratt, Moebius, Eisner, e muitos outros. Não somos xenófobos... Temos gosto apurado. Os europeus inventaram os quadrinhos; os norte-americanos inventaram os comics - não discutimos paternidades! O que queremos é ampliar, renovar, reutilizar, traduzir para nosso mundo, recriar a partir de nossa realidade.
Nossos heróis são o Corto Maltese, o Brucutu e o Pererê. As heroínas: Valentina, Mafalda e Grauna. Não estamos hermeticamente fechados nos universos habitados por clones dos clones de clones de um certo super-herói. Já descobrimos a literatura, a filosofia, a história, o cinema, a pintura - o mundo real. Viva Homero, Chaplin e Picasso! Mas viva também (e sempre) Henfil, Guimarães Rosa e Darcy Ribeiro!
Contra o consenso totalizante e os modismos estéreis, contra a narrativa fragmentária e paralisante, propomos o diálogo criativo, a trama instigante, o quadrinho vivo! Desafiamos o leitor a entrar em nossos mundos e ir além, a recriar e criar novas realidades, superando nosso trabalho.
Contudo, Caro Leitor, se estas linhas - onde humildemente copiamos Mários, Oswalds e Outros - vos causam aborrecimento, esquecei-as e pensai que não passam de devaneios de um louco. Caso contrário, prestai atenção no que digo, pois queremos evoluir e nos transformar sempre, para fazermos jus ao clã de Pindorama.
Tupi or not tupi? Oh yes, Caliban é a resposta.

- Caliban Manifesto -

Desde que foi lançado o primeiro número da revista Caliban, algumas pessoas manifestaram interesse pelo significado de seu nome. Naquela edição de estréia, foi publicado o "Manifesto Caliban", no qual já havia referências a William Shakespeare, pois Caliban é o nome de um dos personagens da peça A Tempestade. Sendo um anagrama da palavra canibal, este nome e o personagem a que ele é atribuído representam os nativos incivilizados que habitariam o Novo Mundo.
Embora não existissem realmente, os fantásticos canibais das ilhas caribenhas povoavam o imaginário e a imaginação dos europeus. Shakespeare, que muito se inspirou na cultura clássica e popular, foi buscar no relato de viajantes os elementos para dar vida a seu bárbaro personagem. Pela pena do dramaturgo inglês e de outros que voltaram sua atenção para as Américas, entramos para História sob o signo da barbárie, como um híbrido de cão e homem, incapaz de controlar seus impulsos de voracidade, lascívia e destruição.
Paradoxalmente, a imagem que projetaram do Outro é o espelho que mais nitidamente revelou as intenções e motivações dos próprios europeus. Como o personagem Próspero, senhor das artes ocultas, os homens do Velho Mundo aqui chegaram impondo-se através do poderio de suas artes nefastas: a traição, a guerra bacteriológica (não-intencional) e a pólvora. Neste espelho de Próspero que é a América, os europeus enxergaram a imagem inversa daquela que tinham de si mesmos. Ou seja: se acredito que sou o representante da civilização cristã, aquele Outro que desconheço, e que tanto difere de mim em sua aparência e hábitos, nada mais pode ser, senão meu oposto.
Apesar dos europeus ainda se referirem aos latino-americanos em termos como “novos bárbaros”, há muito tempo já não inspiramos medo. Desde Rousseau (que se inspirou nos índios ao idealizar seu Bom Selvagem), para os europeus as Américas são mais exóticas, que ameaçadoras. Porém, o surgimento do titã norte-americano e de movimentos de resistência como a Revolução Cubana mostraram que, se não somos o bestial Caliban, também não somos o nativo Uga-uga que, trajando seu inconfundível saiote de palha de coqueiro, curva-se às vontades de prósperos colonizadores.
Enfim, por que o nome Caliban? Porque a disputa que se estabelece quando duas civilizações se encontram não se restringe ao mundo material, existindo também no plano das idéias e consciências. Se os europeus criaram a arte dos quadrinhos e os norte-americanos deram-lhe a forma dos comics, apropriamo-nos destas linguagens, mas não rezamos o credo do colonizador. Em A Tempestade, Caliban diz a Próspero que por este ter lhe ensinado a falar, então que as palavras que ele venha a proferir sejam para amaldiçoá-lo. Nós, que também aprendemos uma linguagem estrangeira, não faremos tanto. Ao invés de amaldiçoar, nossa escolha é representar e discutir nossa própria cultura, história e realidade, através dos quadrinhos.
Ser um voraz Caliban que cria a si mesmo.

Especial agradecimento aos autores e obras: William Shakespeare (A Tempestade); Tzvetan Todorov (A Conquista da América); Richard Morse (O Espelho de Próspero); Roberto Retamar (Caliban).

03/01/2009

Solar, um herói brasileiro.


Foi em meados de 1994 que o personagem Solar nasceu. Na época, eu já havia desenhado algumas HQs curtas e produzido um fanzine, mas queria trabalhar num projeto maior. Foi então que tive a idéia de criar uma série com um herói brasileiro. Desde o início, defini que o personagem não teria os espalhafatosos uniformes dos super-heróis norte-americanos, o que por si só já o afastava daquele popular gênero de quadrinhos.

Mas seriam necessários outros elementos para diferenciar e justificar meu projeto, pois eu não queria fazer apenas mais uma revista de personagem com superpoderes. E o fato é que, a partir daí, “o universo começou a conspirar a meu favor” e as peças do mosaico criativo foram surgindo. Primeiro, vieram as influências históricas e filosóficas, saídas do curso de História que eu iniciava na Universidade Federal de Minas Gerais. Descobri ali o conceito de “Apolíneo e Dionisíaco” de Nietzsche, o “Complexo de Édipo” de Freud e a concepção do “herói trágico” grego, que fundamentariam o personagem e alguns dos primeiros roteiros da série.

Na mesma época, li pela primeira vez as HQs de Monstro do Pântano escritas por Alan Moore, que me mostraram ser possível conciliar histórias de heróis a elementos místicos e míticos. Em seguida, ganhei do cartunista Nilson Azevedo sua revista A Falta de Educação no Brasil, com a qual aprendi como criar uma história com ação, partindo de situações cotidianas e de uma ambientação local. Fundamentais para minha formação como quadrinista, esses trabalhos ensinaram-me como escrever um roteiro envolvente, tendo como base a realidade brasileira.

Em poucas palavras, o personagem que eu estava criando era um "herói apolíneo", um herói solar. Mas faltava ainda uma característica que marcasse sua identidade em relação à de outros já existentes. Em grande medida, o que determina a razão de ser do herói e o porquê de ele ser um indivíduo especial são sua origem e a identidade cultural que ele representa. Portanto, era preciso dar uma origem cultural a meu herói. Foi aí que chegou a minhas mãos o ótimo Maíra de Darcy Ribeiro e mais tarde o saboroso Xingu: os índios, seus mitos de Orlando e Cláudio Villas Bôas. Com isso, o mosaico estava completo: eu já tinha em mente o herói que chamaria de Solar.

Em junho de 1994, eu ensaiava os primeiros esboços para o visual do personagem, enquanto concebia a trama principal. Escolhi para ele o nome Gabriel Azevedo e criei personagens coadjuvantes, como seus pais adotivos, sua mãe Sofia Ribeiro e sua esposa Cristiane Villas Bôas. Ele voaria e enfrentaria desafios similares aos do Super-Homem dos anos 80 e trabalharia como fotógrafo, passando por dificuldades semelhantes às do Homem-Aranha dos anos 70. Porém, no lugar de uma grande metrópole norte-americana, as aventuras de meu personagem aconteceriam num ambiente que conheço bem: minha cidade-natal, Belo Horizonte.

Em sua concepção inicial, o projeto teria um total de vinte e um capítulos, divididos em três livros: “Asas de Ícaro”, “Solo Sagrado” e “Humanidades”. No início do segundo semestre de 1994, os dois primeiros roteiros já estavam prontos. Porém, eu havia decidido que não desenharia a série, pois meu estilo mais limpo e com elementos cartunizados não se adequava ao clima de ação da HQ. Só me restava procurar um desenhista. Foi então que conheci o ilustrador Ricardo Sá (autor da imagem que ilustra esta postagem), que se interessou em embarcar no projeto comigo, após ver os dois primeiros roteiros. Desenhista veterano, em pouco tempo ele acertou um visual ideal para os personagens e começou a desenhar a primeira HQ.

Enquanto Solar tomava forma, eu continuava a escrever novos capítulos da série e começava a buscar uma forma de pagar pelo trabalho de Ricardo e financiar o lançamento de uma revista. Já em 1995, consegui a aprovação pela Lei Municipal de Incentivo à Cultura para sete números da revista Solar. Mas restava ainda conseguir empresas que financiassem o projeto, através de um mecanismo de renúncia fiscal. E uma vez que a Lei de Incentivo só cobria uma parcela dos custos, tive também que conseguir apoios e patrocínios complementares. Mas, enfim, com um logotipo criado por Cristiano Seixas e a colaboração do amigo Dênio Takahashi, em março de 1996 pude lançar o primeiro número da Solar.

Ter aquele n°1 em mãos foi uma sensação indescritível! É claro que o trabalho estava apenas começando e eu logo descobriria que conseguir lançar uma revista não era o maior desafio para um quadrinista independente. Não demorou nada para eu perceber que a divulgação e a distribuição eram os verdadeiros problemas da produção brasileira de quadrinhos. Além disso, produzir uma HQ de vinte e duas páginas, sem poder se dedicar integralmente ao trabalho, não é nada fácil. Assim, mesmo tendo os quatro primeiros capítulos já desenhados, Ricardo acabou se atrasando no quinto e sexto. Então, para o sétimo capítulo, assumiu uma equipe do Estúdio HQ, formada por Erick Azevedo, Sidney Telles, Fernando Rabelo e Fabiano Barroso.

O fato é que, com alguns rearranjos, seguimos em frente lançando em 1996 as revistas com os sete capítulos do livro “Asas de Ícaro”, reunidos numa coletânea em dezembro daquele ano. A revista Solar chegava ao fim, mas a saga do personagem continuaria numa nova publicação. Afinal, enquanto produzia as últimas edições de minha primeira revista, consegui a aprovação pela Lei de Incentivo para as sete edições da Caliban. Lançada em agosto de 1997, a nova revista daria continuidade às aventuras de Solar, trazendo novos personagens e séries, bem como histórias curtas. Além de Ricardo Sá, desenhistas ligados ao Estúdio HQ e ao Big Jack participaram das edições, que contaram ainda com o talento de Flavio Colin, Julio Shimamoto e Mozart Couto.

Em seu primeiro ano, a Caliban teve quatro números publicados, com memoráveis festas de lançamento e uma pequena participação na 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Ficaram para 1998 os três últimos números, que completaram as séries lançadas na revista. A principal delas, é claro, era a saga de Solar, que reestreou na Caliban n°1 com o primeiro capítulo de “Solo Sagrado”. O personagem voltaria em quase todas as edições da revista, mas minha idéia inicial para uma série de vinte e um capítulos seria resumida para quatorze, sem perdas muito substanciais. A verdade é que naquele ano de 1998 eu aspirava a vôos ainda mais altos do que aquelas primeiras revistas poderiam me levar. O principal deles chamava-se Estórias Gerais.

Com Solar e Caliban realizei meu sonho de lançar revistas em quadrinhos. Criá-las foi uma grande aventura e, embora não tenham sido um sucesso comercial, elas marcaram seu lugar no circuito dos quadrinhos independentes. Quanto ao Solar, apesar de alguns excessos e falhas em suas HQs, ele é um personagem original e interessante, que rendeu boas situações narrativas. Tanto é que, ao longo dos anos, notei influências e até mesmo plágios de meu trabalho em outros quadrinhos brasileiros. Com isso, por gostar muito do conceito do personagem e com o objetivo de lhe dar histórias mais bem-acabadas, decidi em novembro de 2004 trabalhar numa reformulação. Mas esta, como se diz, é uma outra história...

(Para saber mais sobre o personagem Solar, clique no marcador abaixo.)