30/04/2008

Spawn Origem Vol.2 reúne McFarlane, Moore & Miller.


Quando lançada em 1992, a revista Spawn de Todd McFarlane foi um sucesso imediato, ajudando a projetar a Image Comics como uma importante força do mercado norte-americano. O que se viu nos meses e anos seguintes foi uma trajetória de sucesso comercial tanto nos Estados Unidos quanto no Brasil. Lançada por aqui inicialmente pela Abril Jovem, a revista mensal da “cria do inferno” passou a ser publicada pela Pixel a partir de seu número 151. Além da revista regular (atualmente em seu número 174), a editora tem lançado a coleção Spawn Origem, que reimprime as primeiras HQs da série. O segundo volume reúne os números 6, 7, 8 e 11, sendo os dois últimos escritos por Alan Moore e Frank Miller.

As HQs desse volume trazem o típico Spawn dos primeiros dias. Muitas páginas de um só quadro, composições confusas repletas de emaranhados de traços, sequências narrativas fragmentadas, enquadramentos cortados e, é claro, os enredos fracos e desenhos tecnicamente deficientes de McFarlane. O fato, porém, é que toda a violência sem-sentido e o traço caricaturizado do quadrinista agradaram em cheio aos leitores da época, tendo grande apelo ainda hoje. Na história publicada originalmente em Spawn número 6 e 7, o “soldado do inferno” tem que enfrentar Chacina, um ciborgue assassino criado pela máfia (!?) para dominar as ruas de Nova York. Após muita pancadaria e algumas sequências sentimentalóides envolvendo a ex-mulher de Spawn, a história conclui com o sádico herói executando sumariamente seu já derrotado adversário.

Logo quando lançada, apesar do sucesso entre os leitores, a série Spawn foi bombardeada pela crítica, que não perdoou os péssimos roteiros de McFarlane. Foi com o objetivo de aplacar os críticos mais ferrenhos que o quadrinista-empresário (já então esbanjando dinheiro) contratou quatro dos mais conceituados roteiristas da época para escrever edições especiais da revista. Mas, apesar dos renomados colaboradores, os roteiros dos números 8 e 11 deixam muito a desejar. No primeiro, Alan Moore guia os leitores por uma viagem aos círculos do Inferno, com direito a um pomar de almas condenadas, demônios travestidos de Elvis e um humor um tanto duvidoso. Já no último, Frank Miller traz os leitores de volta às ruas de Nova York para uma historinha pueril, envolvendo duas improváveis gangues que se exterminam numa disputa pelo beco onde mora o sanguinário herói.

Em Spawn Origem Vol.2, são notáveis as ausências dos números 9 e 10 da revista, escritos por Neil Gaiman e Dave Sim. O primeiro deles introduziu os personagens Ângela e Cagliostro (além do Spawn medieval), enquanto o segundo contou com a participação do personagem Cerebus, sendo uma espécie de alegoria para a situação do mercado de quadrinhos nos Estados Unidos. O problema com Spawn n°9 é que Gaiman e McFarlane acabaram se desentendo sobre o pagamento de direitos autorais dos personagens criados pelo roteirista e também em relação aos direitos de publicação do herói Miracleman. Quanto ao número 10, ao que consta existe um acordo de não-republicação da história, embora pareça que Sim também não tenha ficado muito satisfeito quando McFarlane e seus companheiros da Image passaram a praticar relações de trabalho semelhantes às das grandes editoras.

Spawn Origem Vol.2 tem capa cartonada, 112 páginas, formato 17cm x 26cm, sendo vendido por R$32,90. Apesar da baixa qualidade das HQs, a edição é uma boa pedida para os novos fãs de Spawn que não acompanharam a série quando lançada originalmente no Brasil. Após as histórias publicadas nesse volume, Alan Moore voltou ao "universo" de Spawn com a dispensável minissérie Feudo de Sangue, enquanto Frank Miller escreveu um roteiro de terceira para o especial Spawn / Batman. Quanto a Todd McFarlane, depois de ganhar mais dinheiro, ele decidiu apostar suas fichas numa série de animação para a HBO, num filminho para o cinema e numa linha de brinquedos que leva seu nome (deixando sua cria infernal a cargo de outros quadrinistas, alguns até bem mais competentes do que ele, como Greg Capullo por exemplo). Para quem quiser saber mais sobre os quadrinhos de Moore, Miller e McFarlane, basta clicar nos nomes em destaque abaixo.

27/04/2008

Com a assinatura, mas não o talento de Alan Moore.


Alan Moore foi, ao lado de Frank Miller, o roteirista mais influente dos quadrinhos norte-americanos na década de 1980. Após um período de ausência das HQs de super-heróis, que jurou jamais escrever novamente, ele retornou ao gênero que o consagrou com a revista Spawn n°8, sua primeira experiência com os personagens criados por Todd McFarlane. A ela seguiram-se outras produções para a Image Comics, em sua maioria trabalhos notáveis por sua baixa qualidade, como a minissérie do Violador.

Entre 1984 e 1989, com as séries Monstro do Pântano, Watchmen, V de Vingança e Miracleman, Alan Moore ajudou a revolucionar os quadrinhos norte-americanos. Mas, depois de muito sucesso e de uma aclamação pública poucas vezes vista por um autor de quadrinhos, ele decidiu se afastar das grandes editoras (em quê pesaram os problemas contratuais que teve com a DC Comics). A partir daí, Moore passou a dedicar-se a trabalhos mais autorais e pessoais, como HQs curtas para revistas independentes e coletâneas (onde surgiram From Hell e Lost Girls), além das graphic novels Brought to Light e A Small Killing.

Aproveitando o renome internacional e estimulado por outros editores independentes (como Dave Sim da série Cerebus), Moore decidiu montar sua própria editora. Nascia então a Mad Love, na qual o roteirista tinha como sócias sua esposa Phyllis e a namorada dos dois Debbie. Para a editora, eles lançaram a edição especial AARGH (“Artistas Contra Agressiva Homofobia Governamental”), uma coletânea voltada a angariar recursos a serem usados contra uma proposta de lei do governo Margaret Thatcher. Em seguida, veio a série Big Numbers que contava com a fantástica arte de Bill Sienkiewicz, mas que enfrentou imensos e ainda misteriosos problemas, sendo interrompida em seu segundo número.

Toda a confusão envolvida na interrupção de Big Numbers levou não apenas ao rompimento entre Moore e Sienkiewicz, mas também ao fim de seu casamento a três e à falência de sua editora. Enfrentando problemas pessoais e endividado, talvez o roteirista não tenha tido escolha, a não ser voltar atrás com sua palavra, retornando ao gênero dos super-heróis. Naquele início dos anos 90, a Image Comics representava uma alternativa às gigantes do mercado norte-americano, Marvel e DC Comics, as quais Moore abominava. O primeiro contrato assinado por ele com a nova editora foi a controversa minissérie 1963, que também ficaria inacabada e levaria a outro rompimento pessoal, dessa vez com o desenhista Steve Bissette.

Porém, McFarlane antecipou-se ao lançamento da minissérie, contratando Moore (“a peso de ouro”, segundo se diz) para escrever o roteiro de Spawn n°8. Lançada em fevereiro de 1993, a HQ não passa de um reaproveitamento de elementos que o roteirista já havia utilizado em histórias do Monstro do Pântano. Mas, fazer o quê? Moore precisava pagar suas dívidas e aproveitou para fazer algum dinheiro sem muito esforço, e talvez também tenha visto uma oportunidade de prejudicar as grandes editoras, somando seu prestígio ao sucesso dos personagens de McFarlane. Contudo, nem tudo isso pode servir de justificativa para trabalhos tão pobres quanto a minissérie Violator, lançada no primeiro semestre de 1994 e desenhada por Bart Sears (mais conhecido por sua fase na série Liga da Justiça da Europa).

Violador é um demônio condenado a permanecer na Terra, desprovido de seus poderes e na forma de um anão com cara azul. A história escrita por Moore começa quando um bando de gângsteres falha na missão de eliminar o demoníaco anãozinho. Com a derrota de seus capangas, o “Poderoso Chefão” da vez resolve contratar um assassino profissional chamado Punidor. O que se segue é uma carnificina sem propósito, pontuada de um humor bastante questionável. Para quem tinha acompanhado os trabalhos do roteirista inglês ao longo dos anos 80, as HQs produzidas por ele com os personagens de McFarlane foram uma desagradável surpresa. Ficou a sensação de que, de fato, Moore não se importou em simplesmente ganhar um dinheiro fácil, explorando seu próprio prestígio e o meteórico sucesso de McFarlane.

Na época, os fiéis leitores perguntaram-se como um autor tão brilhante e original poderia estar produzindo trabalhos tão ruins. Provavelmente, a resposta para isso está no momento pelo qual ele passava na época. Por outro lado, também naquele momento, Moore mergulhava no estudo e prática da magia, buscando tornar-se um "xamã" moderno. Segundo ele próprio, esse passo foi decisivo para uma nova virada criativa em sua carreira, que impulsionaria trabalhos bem mais interessantes (como a série Promethea). Trabalhos que trouxeram, mais uma vez, não apenas a assinatura, mas o talento de Alan Moore.

25/04/2008

Spawn / Batman, uma HQ medíocre de Miller & McFarlane.


Escrita por Frank Miller e desenhada por Todd McFarlane, Spawn / Batman foi lançada no Brasil, pela Abril Jovem, em 1997. Edição oportunista que se apoiou no estrondoso sucesso do personagem criado por McFarlane e no prestígio do nome de Miller, a revista impressionou-me na época pela falta de originalidade do roteiro e por seus desenhos abaixo da média. Assim, embora essa HQ tenha todos os elementos para agradar aos fãs de McFarlane, ela é desaconselhável para quem admira os trabalhos sérios de Miller.

Nos anos 80 e 90, o nome Frank Miller foi sinônimo de qualidade nos quadrinhos. Afinal, o criador de O Cavaleiro das Trevas e Sin City foi um dos responsáveis por uma revolução qualitativa no mercado norte-americano. Levando para os comics influências de HQs japonesas, européias e sul-americanas, Miller criou um trabalho pessoal, no qual a qualidade artística era presença constante. Mas não é isso que vemos em Spawn / Batman.

Naquela mesma época, Todd McFarlane era sinônimo de popularidade nos quadrinhos. Em poucos anos, ele se tornou o artista mais famoso e bem-sucedido do mercado norte-americano. Com seu traço repleto de elementos caricaturais, expressões e imagens exageradas, somado a uma narrativa fragmentada, McFarlane criou uma fórmula de sucesso, seguida fielmente por seus imitadores. Mas não há dúvida de que, em se tratando desse quadrinista, raras vezes fama e qualidade artística andaram juntas. E é exatamente isso que vemos em Spawn / Batman.

É difícil dizer se foi a falta de qualidade artística de McFarlane que influenciou negativamente Miller, ou se este simplesmente optou por rabiscar um esboço de roteiro, por se tratar de uma revista que seria publicada pela Image Comics. O fato é que Spawn / Batman não passa de um subproduto do roteiro que o próprio Miller escreveu para o filme Robocop 2. Basicamente, o que diferencia as duas histórias escritas por Miller é a existência de Spawn, que dá conotações místicas ao roteiro da HQ.

Como sempre, os desenhos de McFarlane trazem as caretas excessivas, capas gigantescas, erros de anatomia e excesso de rabiscos que lhes são característicos. Mas grande parte do suposto dinamismo da arte desse desenhista não está em seu traço, e sim nas cores produzidas por computação gráfica. Utilizando uma variação entre gradações leves e contrastes fortes, a coloração cria a ilusão de energia e movimento que tanto tem fascinado e agradado aos leitores nas últimas décadas.

Os principais trabalhos autorais de Frank Miller e Todd McFarlane, Sin City e Spawn respectivamente, são quase opostos. Embora ambos abusem da violência, nos trabalhos de Miller ela tem limites mais realistas. Contudo, é no visual das HQs que as diferenças se tornam mais notáveis. Sin City apóia-se nos contrastes entre luz e sombra, ao estilo de Alberto Breccia, valorizando a narrativa visual. Já Spawn abusa das cores, apoiando-se em imagens de detalhe ou grandes cenas de impacto inspiradas na estética dos mangás. Essas diferenças nos trabalhos dos desenhistas fazem do primeiro um artista e do outro um criador de sucessos de massa.

No final das contas, Spawn / Batman serviu apenas para confirmar o que muitos já sabiam. Primeiro, o fato de que na companhia de Todd McFarlane até os melhores roteiristas foram capazes de criar trabalhos ruins. Segundo, por alguns milhares de dólares, mesmo um quadrinista dos mais conceituados não se sente constrangido em fazer um trabalho medíocre. É claro que, ao aceitar trabalhar nessa HQ especial, Miller também estava buscando uma divulgação extra para Sin City, projeto que começava a deslanchar na época em que a revista foi lançada nos Estados Unidos. Mas, quer seja pelo dinheiro, quer seja pela divulgação de seu trabalho, a pergunta que fica é: será que valeu a pena?

22/04/2008

Planetary / Authority celebra o “estilo Warren Ellis”.


Nos últimos dez anos, Warren Ellis tornou-se um nome de destaque nos quadrinhos norte-americanos. Para os fãs do roteirista inglês, a Pixel trouxe este mês um lançamento especial: Planetary / Authority - Dominando o Mundo. Com desenhos de Phil Jimenez, arte-final de Andy Lanning e cores de Laura DePuy, a edição traz o encontro dos dois principais grupos de super-heróis da linha Wildstorm. Uma trama envolvendo universos paralelos e invasores extradimensionais é o motivo central dessa HQ bem ao "estilo Warren Ellis”.

Logo na primeira página de Dominando o Mundo, o leitor é literalmente jogado no meio da trama, na qual um polvo gigante cósmico e suas crias trazem devastação e morte a uma cidade costeira dos Estados Unidos. Como era de se esperar, os membros do Authority fazem sua bombástica intervenção para deter a ameaça. O que Jenny Sparks e seus comandados não sabem é que a ativação do monstro teve relação direta com os membros de Planetary. Para completar, Elijah, Jakita e Baterista passam a agir à margem, aproveitando a oportunidade para tentar saber mais sobre o outro grupo de heróis. Num segundo momento, a história dessa edição especial faz referência e se devolve a partir de acontecimentos nas séries regulares Authority e Planetary.

A verdade é que Dominando o Mundo tem os elementos mais característicos das HQs assinadas por Ellis. Primeiro, uma trama superestrutural envolvendo algum mistério ou ameaça que justifique a atuação dos protagonistas. Segundo, doses generosas de ação violenta, com direito a mutilações e carnificina. Terceiro, uma estética narrativa “pós-modernista”, na qual componentes intertextuais ou mesmo metalinguísticos são explicitados propositalmente. Por fim, um visual idealizado, com personagens e cenários desenhados detalhadamente e finalizados com técnicas que buscam uma aproximação com efeitos visuais do cinema. Com tudo isso, Planetary / Authority certamente agradará aos fãs dos dois grupos de super-heróis.

Contudo, se levarmos em consideração elementos técnicos e artísticos, a revista acaba deixando a desejar. Em primeiro lugar, o roteiro de Warren Ellis é um tanto fragmentado, trazendo várias elipses e passagens meio bruscas. Especialmente as sequências em flashback poderiam ter sido mais bem aproveitadas. A história traz inclusive uma participação velada do escritor norte-americano H.P. Lovecraft que, no entanto, além de servir de ponte contextual e ser insultado por Elijah Snow, não faz muito no fim. Quanto ao visual, a fórmula Wildstorm funciona novamente, embora o desenhista Phil Jimenez e seus auxiliares sejam um tanto irregulares, variando muito na qualidade ao longo da revista. Quanto à edição, a Pixel fez mais uma vez um ótimo trabalho, exceto talvez por dois balões de fala trocados numa das primeiras páginas.

Mas nada disso certamente atrapalhará a diversão dos fãs de Warren Ellis, que acompanham as HQs finais dos “arqueólogos do impossível” nas páginas da Pixel Magazine. A nova revista especial é a terceira de uma série lançada no Brasil em formato estendido, que começou com Planetary / Batman - Noite na Terra e teve recentemente Planetary / Liga da Justiça - Terra Oculta. E para aqueles que ainda não compraram a nova edição,
Planetary / Authority - Dominando o Mundo tem 48 páginas em formato magazine, 20cm x 29cm, sendo vendida ao preço de R$11,90.

18/04/2008

O Super-Homem faz 70 anos!


Embora traga a data de junho de 1938, consta que o número 1 da revista Action Comics foi lançado no dia 18 de abril. Em sua capa colorida e explosiva, um então desconhecido personagem usa sua força para levantar e destroçar um carro. Era a primeira vez que aquele herói fantasiado em azul, vermelho e amarelo, com o grande “S” no peito, surgia para conquistar os leitores de quadrinhos. Nascia assim, há exatos setenta anos, um dos principais ícones da cultura ocidental: o Superman (ou Super-Homem, como o chamávamos antigamente por aqui). Com o sucesso de vendas que se seguiu, nasceu também toda uma linhagem de personagens e um novo gênero de quadrinhos: os super-heróis.

O “Homem do Amanhã” ou “Homem de Aço” foi criado, no início dos anos 30, por Jerrry Siegel e Joe Shuster, dois fãs de histórias de ficção científica. Inicialmente, tratava-se não de um herói, mas sim de um tirano do futuro, com poderes sobre-humanos. Porém, o protagonista de “The Reign of the Super-Man” foi logo reformulado para se tornar o herói de uma série de tiras. Inspirados nos mundos alienígenas e tramas apocalípticas dos livretos e revistas, Siegel e Shuster fizeram de seu novo herói o único sobrevivente de “um distante planeta destruído por um cataclismo natural”. E assim, vestindo sua capa e malha colante, o Super-Homem passou a enfrentar gangsteres e outros bandidos. Contudo, os jovens quadrinistas tiveram dificuldades para encontrar alguém que se interessasse em publicar um personagem tão original.

Finalmente, a editora Detective Comics (mais tarde National Periodical e depois DC Comics) mostrou interesse em comprar os direitos sobre o Superman. A condição era que as tiras fossem adaptadas para o formato comic book, com o qual ganhariam destaque na nova revista que a editora planejava lançar: a Action Comics. Siegel e Shuster não titubearam, fazendo as alterações pedidas e vendendo todos os direitos sobre seu personagem pelo valor de 130 dólares (embora hoje esse acordo original esteja sendo questionado judicialmente). Já então imune a balas e possuindo força e agilidade sobre-humanas, em suas primeiras HQs, porém, o Super-Homem não voava, tendo que pular sobre os prédios da cidade de Metropolis (cujo nome os autores pegaram emprestado do filme homônimo de Fritz Lang).

De qualquer forma, o novo personagem era bastante diferente dos heróis que o precederam, como Tarzan, Mandrake ou Fantasma. Ele tinha algo a mais. E foram justamente o visual chamativo e os inusitados poderes as razões de seu sucesso imediato junto aos leitores norte-americanos. Afinal, quem naquela época (ou mesmo hoje) não gostaria de se destacar na multidão de anônimos e ter poderes que pudessem resolver todos os problemas? É bom lembrar que, no fim dos anos 30, os Estados Unidos se recuperavam de uma terrível crise econômica iniciada no final da década anterior. A falência de inúmeras empresas, a fome e o desemprego endêmicos forneceram os elementos para um quadro de pessimismo e desesperança. Assim, nada mais oportuno que um personagem que fizesse as pessoas sentirem-se capazes de superar quaisquer dificuldades.

Além disso, outra característica que favoreceu o sucesso do Homem de Aço foi ele se desdobrar entre a vida de super-herói e a de homem comum. A pacata figura do repórter Clark Kent contribuiu para a identificação do público com o personagem, sugerindo que na imagem de qualquer homem comum pode se esconder um “super-homem”. Para completar, no ano que precedeu a Segunda Guerra Mundial (1939-1945), só alguém “mais rápido que uma bala” e “mais forte que uma locomotiva” poderia vencer as ameaças que se anunciavam. E se, em sua primeira HQ, o Super-Homem é chamado de “o campeão dos oprimidos”, por extensão, ele acabou sendo proclamado o defensor de valores como Lei, Ordem, Democracia e Liberdade, tornando-se o garoto-propaganda do “American way of life”.

Possuidor de poderes milagrosos e vindo do céu para promover o bem da humanidade, é evidente que o imaginário cristão teve alguma influência na criação do Supre-Homem. Contudo, ao invés de ser um ente divino, Karl-El é o único sobrevivente de uma raça de seres super-evoluídos, cujo planeta explodiu. Sua herança “kryptoniana” e a inspiração na ficção científica tornaram-no fisicamente superior aos seres humanos. Um exemplo de que, na era moderna, já não são os deuses que promovem a glória dos heróis, mas a natureza e a ciência que explicam seus poderes. Logo, na primeira página de Action Comics n°1, ensaia-se uma explicação pseudo-científica para os incríveis poderes de Clark Kent, onde o personagem é comparado às formigas e aos gafanhotos, proporcionalmente muito mais fortes que os humanos.

Mas o Super-Homem nem sempre foi o mesmo. Ao longo das décadas, sua “biografia”, seus poderes e suas fraquezas foram sendo estabelecidos e remodelados pelos roteiristas e desenhistas, sempre em busca de uma nova aventura tão surpreendente quanto sua primeira aparição em 1938. Com o crescente sucesso das revistas em que aparecia, o “Homem de Aço” foi parar em seriados no rádio, em filmes e animações para o cinema e a tevê. Isso contribuiu para o aumento de sua popularidade, fornecendo novos elementos à sua “mitologia” e tornando-o um ícone internacionalmente conhecido. Se não bastasse, inspiradas no sucesso do personagem, diversas editoras lançaram outros super-heróis, consolidando esse gênero de quadrinhos e aumentando a concorrência para o kryptoniano.

Todavia, após setenta anos de aventuras, romances e dramas, além dos vários plágios e asneiras editoriais, o Super-Homem já não tem a mesma força. Nas últimas décadas, por exemplo, o herói teve seu passado apagado e reescrito, seus poderes redefinidos ou perdidos, foi dado como morto, mudou de cor, foi dividido em dois, clonado e casou-se com sua “eterna namorada” Lois Lane. O resultado final de tudo isso, é claro, só poderia ser o desgaste e a crescente irrelevância daquele que foi o primeiro e o mais popular dos super-heróis. De qualquer forma, certamente os fãs fiéis encontrarão motivos para celebrar mais este aniversário do (agora setentão) Super-Homem.

15/04/2008

Pondo ordem na casa da Vertigo.


Surgida há dois anos de uma associação entre a Ediouro e a Futuro Comunicação, a Pixel Media chegou com a proposta de publicar HQs de qualidade a preços mais acessíveis. Surpreendendo inicialmente com ótimos lançamentos, como os álbuns da série Corto Maltese e o inédito Curupira de Flavio Colin, a editora estabeleceu-se no último ano com uma seleção de títulos das linhas Wildstorm, ABC e Vertigo. Esta última, em especial, teve uma trajetória acidentada no Brasil, o que está exigindo da Pixel algum trabalho para simplesmente “por ordem na casa”.

No início dos anos 90, as editoras Abril e Globo dividiam a publicação das HQs de terror e suspense da DC Comics, Monstro do Pântano, Hellblazer e Sandman, bem como das minisséries escritas por Neil Gaiman, Os livros da magia e Morte. Mas a trajetória do selo Vertigo no Brasil começou mesmo em 1995, quando foi lançada pela Abril a revista Vertigo, um pacote que reunia as séries Livros da Magia, Sandman: Teatro do Mistério e Hellblazer. A publicação durou apenas um ano, e logo as séries da Vertigo passaram às mãos de outra editora nacional. Era a vez de a Metal Pesado fazer sua tentativa de emplacar a linha de quadrinhos adultos da DC, privilegiando personagens já conhecidos no Brasil, como Monstro do Pântano, Homem Animal e John Constantine. Apesar de alguns acertos, a experiência também não durou muito e os leitores ficaram mais uma vez “a ver navios”.

A partir daí, tudo foi só se complicando, uma vez que as HQs da Vertigo passaram a ser divididas por diferentes editoras, com as mais variadas propostas e periodicidades. Brainstore e Opera Graphica foram talvez as que mais títulos lançaram nesse período, privilegiando séries como Preacher e 100 Balas, mas deixando um legado de confusões na continuidade e edições impressas com qualidade bastante duvidosa. Nos últimos anos, somou-se ao quadro a Conrad com sua luxuosa coleção de Sandman e a Devir com suas coletâneas em formato reduzido de Monstro do Pântano, Hellblazer, entre outras séries. Mas foi aí que entrou em cena a Pixel. Conseguindo um contrato de exclusividade para a publicação no Brasil das linhas Wildstorm, ABC e Vertigo, a editora tem primado por edições bem impressas, a preços mais “camaradas”. Além disso, parte de seu trabalho tem sido organizar e completar a publicação de séries que não haviam recebido um tratamento adequado por outros editores.

Um bom exemplo disso são alguns dos lançamentos mais recentes da editora. Preacher: Guerra ao sol dá continuidade à “saga” do pastor descrente Jesse Custer, de sua namorada Tulipa e de seu amigo vampiro Cassidy. Com direito a algumas cenas escatológicas, um pouco de sexo, muitos palavrões e bastante violência, a edição escrita por Garth Ennis e desenhada por Steve Dillon é uma “dádiva” para os fãs de Preacher. Lembrando muito uma versão mais abismal do seriado Arquivo-X ou do filme Dogma, a série tornou-se um dos carros chefes da Vertigo, conquistando uma legião de fãs também no Brasil. Eu não me incluo entre os admiradores da série, mas é admirável o cuidado da Pixel com sua publicação. Além de seguir o formato utilizado pela editora anterior, Guerra ao sol conta com textos para situar o leitor na história, uma apresentação dos principais personagens, a reprodução das ilustrações de capa originais e a indicação do número da revista e data de publicação nos Estados Unidos.

Outro lançamento para os fãs da Vertigo é 100 Balas: Dia, hora, minute... man. Reunindo os números 8 a 11 da série original, a revista traz duas HQs completas e outra em duas partes com roteiros de Brian Azzarello e desenhos de Eduardo Risso. Como de costume, tramas criminais, dramas cotidianos e muitos tiros dão o clima para uma edição com um pouquinho de sexo e muito sangue. Melhor mesmo é o número 12 da Pixel Magazine, revista mensal com séries das linhas Wildstorm, ABC e Vertigo. Abrindo a edição, uma ótima história com o Monstro do Pântano, escrita por Will Pfeifer e desenhada por Richard Corben. A seguir, pegamos carona com John Constantine num roteiro escrito por Brian Azzarello e desenhado por Marcelo Frusin. Mas o melhor desse número fica por conta, é claro, do nono capítulo da série Promethea de Alan Moore e J.H. Williams III. Fechando a revista, Warren Ellis e John Cassidy levam os personagens de Planetary numa explosiva visita a um suposto Rio de Janeiro.

Embora os preços da Pixel tenham subido um pouco neste mês, devido ao aumento dos custos gráficos, suas revistas mais simples continuam relativamente baratas. A editora lançará ainda este mês a nova revista mensal Fábulas Pixel, além de ter anunciado para breve os relançamentos de Os Invisíveis e Homem Animal de Grant Morrison, do segundo volume de Monstro do Pântano de Alan Moore e da versão “remasterizada” de Sandman de Neil Gaiman. Com tantos planos e exibindo saúde editorial, seria excelente se agora a editora voltasse um pouco de sua atenção novamente para os quadrinhos europeus e, principalmente, brasileiros. No mais, até aqui, a Pixel tem dado um bom exemplo de competência e respeito pelos leitores. Preacher: Guerra ao sol tem 176 páginas, “formato paraguaio”, como se tem chamado jocosamente, e custa R$35,90. Já 100 Balas: Dia, hora, minute... man e Pixel Magazine n°12 têm 96 páginas e “formato americano”, sendo vendidas por R$9,90.

12/04/2008

Ótimo humor no novo volume de Calvin & Haroldo.


As tiras de jornal já forneceram vários clássicos aos quadrinhos, como Peanuts de Charles Schulz ou Mafalda de Quino. Um exemplo mais recente é a ótima série Calvin & Haroldo do cartunista norte-americano Bill Watterson. Dando continuidade ao projeto de publicar a coleção completa das histórias do incontrolável menino e seu espirituoso amigo felino, a Conrad acaba de lançar Tem alguma coisa babando embaixo da cama. Com 120 páginas de tiras e historinhas dominicais, o livro tem formato 21,5cm x 22,5cm e preço de R$29,90, podendo ser comprado com desconto na loja da editora.

Para quem ainda não conhece a tira, Calvin & Haroldo foi lançada em novembro de 1985 e encerrada em dezembro de 1995, sendo considerada por alguns a melhor tirinha cômica já produzida. Apresentando-nos o impagável Calvin, um hiperativo menino de seis anos, e seu inseparável amigo Haroldo, um tigre de pelúcia com muita “personalidade”, a série traz uma galeria de coadjuvantes que inclui os pais do garoto, sua babá, professora e coleguinhas de escola. Invariavelmente, todos acabam vistos e julgados pela ótica implacável de Calvin, quando não são vítimas de sua fértil e incontida imaginação. Este, aliás, é o elemento que fez da tirinha uma obra-prima dos quadrinhos: as fantasias e a lógica de uma criança apresentadas de forma autêntica.

Terceiro volume da coleção da Conrad, Tem alguma coisa babando embaixo da cama traz a essência do quê fez de Calvin & Haroldo um sucesso internacional. Apesar de várias referências à cultura e ambiente norte-americanos, o livro consegue transpor fronteiras ao retratar de forma lúdica e sem moralismos o universo infantil e alguns temas universais. Se o humor inteligente é presença constante, os desenhos expressivos e cativantes de Watterson garantem uma comunicação intensa com o leitor, conciliando os aspectos intelectuais e emocionais. Com isso, o humor puro e simples divide espaço com reflexões existenciais, ambos manifestando-se ora nos diálogos e situações narrativas, ora no traço cartunístico do autor.

A edição abre com a historinha que lhe dá título, na verdade uma situação menor que volta a aparecer posteriormente, envolvendo o medo do “monstro embaixo da cama”. Mas, em meio a panquecas, tacos de beisebol e muita neve, Tem alguma coisa babando embaixo da cama reserva para o leitor vários clássicos de Calvin e alguns momentos tocantes. As brigas com a amiguinha Susie, as situações desaforadas envolvendo seus pais, o companheirismo e as disputas com Haroldo, além de sua imaginação para lá de fértil, são os principais temas do volume. Destacam-se as páginas dominicais do Astronauta Spiff e a célebre, e muito pirateada, página em que Calvin e Haroldo dançam animadamente, com o som a toda altura em plena madrugada. Outro momento marcante, e emocionante, é a sequência de tiras sobre um esquilinho ferido, que serve de pretexto para uma reflexão acerca do sentido da vida e da morte.

Calvin & Haroldo surgiu nos Estados Unidos num momento em que os quadrinhos autorais se afirmavam e produziam uma fase de altíssimo nível qualitativo, identificada como a revolução das graphic novels. Artista que se recusou a permitir que sua obra fosse banalizada em camisetas, brinquedos e outras bugigangas, após dez anos de produção, Bill Watterson soube o momento de interromper a trajetória de sua tira. Para os milhões de fãs em todo o mundo, Calvin & Haroldo realmente deixaram saudades. Mas, para os antigos ou os novos leitores, essa coleção completa é uma boa oportunidade para rever ou conhecer esse verdadeiro clássico dos quadrinhos.

06/04/2008

Sandman: Entes Queridos em edição luxuosa.


The Sandman foi a melhor série dos quadrinhos norte-americanos nos anos 90. Seu criador, o roteirista inglês Neil Gaiman, afirmou em diversas ocasiões ter se surpreendido com o sucesso de uma revista que ele imaginava durar apenas vinte números. O fato, porém, é que o Mestre dos Sonhos conquistou uma legião de fãs, acumulando prêmios e reedições ao longo dos anos. Agora, com uma ótima produção gráfica, a Conrad lança Sandman: Entes Queridos, o mais extenso e um dos melhores volumes da série.

A HQ que abre a edição é “O Castelo”, história curta em que Gaiman nos convida a um passeio pela morada do Rei dos Sonhos, onde encontramos alguns de seus principais auxiliares. Produzido em parceria com o eficiente Kevin Nowlan e publicado originalmente na revista Vertigo Jam, esse pequeno conto acaba sendo uma introdução bastante adequada para Entes Queridos. Lançado nos Estados Unidos entre 1993 e 1995, The Kindly Ones foi o clímax dramático da série, com sua trama inspirada nas tragédias gregas e fazendo uma espécie de revisita aos demais “arcos de histórias” (termo pelo qual os volumes de Sandman ficaram conhecidos).

Trazendo o primeiro dos treze capítulos da história, The Sandman n°57 foi bastante aguardada pelos leitores, chegando com frisos dourados na capa, um roteiro excelente, desenhos, cores e letras perfeitos (diga-se de passagem, essa talvez tenha sido a revista que mais gostei de ler nos anos 90). Gaiman e seus colaboradores iniciavam ali uma jornada repleta de mitologia clássica, povoada de personagens carismáticos e marcada por diálogos simplesmente precisos. E se os leitores na década de 1990 tiveram que esperar mais de um ano para ler a conclusão dessa verdadeira “saga”, os de hoje têm o benefício de poderem conhecer tudo de uma só vez.

Sandman: Entes Queridos é o que se pode chamar (copiando o título do livro de Gabriel García Márquez) de a “crônica de uma morte anunciada”. Basta lembrar que no volume anterior, Fim dos Mundos, os leitores já haviam presenciado o que parecia ser o cortejo fúnebre do Mestre dos Sonhos. E se Entes Queridos é uma “tragédia”, nada mais apropriado do que apresentar uma história da qual o público já saiba o fim (não deixando por isso de se envolver, emocionar e aprender com o que presencia pelo caminho). Sim, Morpheus morre no último capítulo, cumprindo exemplarmente um “destino trágico”, que é aquele no qual, por mais que atue buscando o contrário, o herói acaba contribuindo para sua trágica sina (exemplo: por mais que tente fugir, Édipo acaba matando seu pai e se deitando com sua mãe).

As primeiras páginas de Entes Queridos servem como um prólogo, no qual presenciamos um chá de fim de tarde na casa das três Moiras (entidades irmãs responsáveis por tecer os destinos dos homens e dos deuses, também conhecidas como as Parcas). Escritor afeito a metáforas, Gaiman não perde a oportunidade de iniciar aí várias referências ao próprio ato de contar histórias (com isso, o primeiro quadro dos capítulos é uma metáfora visual para o “fio da história”, ora na forma de um novelo, ora como um cabo de energia ou um fio de telefone). Além disso, o roteirista sempre demonstrou uma fascinação por tríades femininas, e acabamos revendo as três damas das primeiras páginas transfiguradas, mais tarde, nas Três Bruxas (de Macbeth) e também nas temíveis Fúrias (da mitologia clássica), entre outras entidades mitológicas. E a mitologia tem, de fato, um lugar central nessa trama.

Quem leu Vidas Breves sabe que o Mestre dos Sonhos tirou a vida de alguém da própria família, o que era considerado uma ofensa gravíssima na Antiguidade. A punição para ela ficava a cargo das Erínias (na versão grega) ou Fúrias (na versão romana), que desencadeavam os mais diversos infortúnios, culminando na destruição de quem praticara o crime de sangue. Não é à toa, portanto, que o título original do penúltimo volume de Sandman refere-se exatamente àquelas entidades vingadoras. Afinal, uma tradução mais apropriada para The Kindly Ones seria “As Benevolentes”. Esse era o eufemismo pelo qual as Fúrias eram chamadas, numa forma de superstição antiga, por se ter medo de nomeá-las diretamente. Aliás, no capítulo 4 da HQ, alguns personagens chegam a ser referir a isso, sugerindo chamá-las de “the kindly ones” (“as bondosas” na tradução da Conrad).

Mas nem só de mitologia clássica se faz Entes Queridos, uma HQ que funde realidade e ficção, terror e fantasia, citações literárias e referências televisivas, tudo costurado com uma narrativa impecável. A história começa de forma corriqueira, com a heroína aposentada Hipolyta Hall passeando com seu filhinho Daniel (que fôra concebido no Reino dos Sonhos). Passamos depois para um irrequieto Corvo Matthew (às voltas com uma crise existencial) e somos reapresentados a alguns dos funcionários do Sonhar (como o faz-tudo Merv, a fada Nuala e o bibliotecário Lucien). Os acontecimentos começam a se acelerar quando Daniel desaparece misteriosamente e entram em cena personagens saídos de volumes anteriores. O que vemos nos capítulos 1 a 5 e 7 (as partes 6 e 8 são interlúdios) é uma escalada narrativa conduzida de forma magistral por Gaiman, que ainda nos presenteia com passagens engraçadas e diálogos brilhantes.

Mas nem só de seu roteiro se faz Entes Queridos, pois para termos uma ótima HQ são necessários desenhos da melhor qualidade. E é exatamente isso que vemos na maior parte das mais de trezentas páginas desse volume (em que se destacam algumas das mais belas da série Sandman). Embora dois capítulos e algumas sequências tenham sido produzidos por outros desenhistas (provavelmente por questões de prazos editoriais), a maior parte do trabalho ficou por conta do talentosíssimo Marc Hempel. Seu traço cartunizado e conciso, conciliado às cores de Daniel Vozzo, dá origem a imagens expressivas e comunicativas, servindo tanto para ressaltar os elementos mais cotidianos do roteiro, quanto os aspectos mais arquetípicos dos personagens (vide as Moiras ou os deuses nórdicos). E pode-se dizer que raras vezes o próprio Mopheus pareceu tão melancólico, exótico ou ameaçador.

A soma de todas essas virtudes é uma belíssima HQ em que o protagonista tem inicialmente uma participação colateral, personagens secundários assumem o primeiro plano e, ao final, temos uma conclusão inteligente e uma emocionada despedida. Para coroar o trabalho, um epílogo em que revemos as damas das primeiras páginas de volta ao papel das Moiras e às voltas com chás da tarde, biscoitos da sorte e metáforas metalinguísticas. Sim, no geral, Entes Queridos é uma obra-prima e provavelmente o melhor volume de Sandman. É também um dos últimos grandes trabalhos de Neil Gaiman, que tem deixado a desejar em seus quadrinhos feitos para a Marvel, isso sem falar em seus roteiros para o cinema (devo confessar que ainda não me interessei por ler sua literatura). De qualquer forma, este penúltimo volume é um clímax mais que à altura de uma das melhores séries dos quadrinhos nas últimas décadas.

Sandman: Entes Queridos é um livro “de peso” (tanto em termos literários, quanto literais). Além das quatorze HQs, o volume traz as capas originais criadas por Dave McKean, um pertinente prefácio, um pequeno posfácio e uma detalhada seção de notas (embora algumas importantes citações literárias e referências a personagens da série tenham passado despercebidas pelos editores). Impresso em tamanho estendido (19xm x 28cm), com capa-dura e trezentas e sessenta páginas de miolo, a edição chega às lojas custando R$94,00. Embora o preço seja meio “salgado”, a qualidade artística da HQ e a boa produção gráfica do livro devem garantir a satisfação dos novos e antigos fãs de Morpheus. E mesmo para quem não acompanhou a série desde o início, mas gosta de boas histórias com muitos elementos mitológicos, esse volume é uma ótima pedida. Você na certa vai encontrar em Sandman muito mais valor literário e até mesmo “magia” que em qualquer livro de Harry Potter.

05/04/2008

Duas versões de Sandman, num teatro da meia-noite.


Lançada no Brasil pela editora Metal Pesado em 1998, Sandman: Teatro da Meia-Noite foi relançada em 2007 pela Pixel como parte do álbum em capa-dura Dias da Meia-Noite. Escrita por Neil Gaiman e Matt Wagner e ilustrada por Teddy Kristiansen, essa HQ especial da Vertigo surgiu como uma edição comemorativa para marcar o encontro das duas principais versões de Sandman.

A história de Teatro da Meia-Noite tem como fio condutor uma trama envolvendo sexo e criminalidade, elementos comuns nas aventuras de Wesley Dodds, o Sandman detetive. Entretanto, são as sequências representando sonhos, a exemplo das que aparecem na série The Sandman, que servem para sobrepor as figuras do Mestre dos Sonhos e do herói clássico dos anos 30 e 40. Além do roteiro de qualidade, merecem destaque nessa HQ as páginas produzidas por Teddy Kristiansen, que utiliza técnicas de pintura para reforçar o clima de suspense e mistério da história.

Embora Wesley Dodds tenha aparecido na primeira história do Mestre dos Sonhos, publicada em The Sandman nº1, os dois personagens não haviam se encontrado pessoalmente, o que justificou essa edição especial. Fazendo parte da cultura popular e da literatura germânica, o Sandman, ou Homem de Areia, seria o responsável pelo sono e pelos sonhos dos mortais, os quais ele adormeceria utilizando sua areia mágica. Inspirando-se nesse folclórico personagem, o roteirista Gardner Fox e o desenhista Bert Christman criaram, em 1939, o primeiro Sandman dos quadrinhos.

Chamando-se Wesley Dodds, o primeiro Sandman não possuía super-poderes, valendo-se de uma máscara e uma arma de gás sonífero para combater o crime. Embora tenha alcançado um razoável sucesso, o personagem passou algum tempo esquecido, até ser recriado pelos quadrinistas Joe Simon e Jack Kirby em 1974. Contudo, essa nova versão do herói, que tinha como identidade secreta o nome Garrett Sanford, teve vida breve. A verdadeira consagração do nome Sandman viria através de um personagem completamente diferente, lançado no fim de 1988.

Criado pelo roteirista inglês Neil Gaiman, o novo Sandman é o Mestre dos Sonhos, a entidade que personifica o universo onírico e o ato de sonhar, aproximando-se mais da figura mitológica original. Durando setenta e cinco edições lançadas entre 1988 e 1996, a revista The Sandman alcançou sucesso de público e reconhecimento da crítica. Isso se deveu principalmente aos bons roteiros de Gaiman, embora também tenham se tornado a “marca registrada” da revista as capas criadas pelo artista Dave McKean, utilizando técnicas de pintura, colagem e computação gráfica.

Os bons resultados da revista The Sandman incentivaram a editora DC Comics a criar o selo Vertigo, dedicado a quadrinhos de terror e suspense. Além disso, o sucesso do trabalho de Gaiman & Cia motivou uma reformulação do Sandman original, que ganhou em 1993 as páginas da revista Sandman Mystery Theatre. Com histórias escritas por Matt Wagner, as HQs envolviam crime e mistério, sendo ambientadas na Nova York clássica dos anos 30 e 40, e tendo como protagonista, é claro, Wesley Dodds, o Sandman detetive. No Brasil, essas HQs foram publicadas inicialmente na revista Vertigo da editora Abril.

03/04/2008

Antes do Incal chega a seu último volume.


Escrita pelo chileno Alejandro Jodorowski e desenhada pelo francês Moebius, Incal foi uma das mais cultuadas séries dos quadrinhos europeus nos anos 80. Uma mistura de ficção científica e esoterismo, a saga do improvável herói John Difool alcançou grande sucesso internacional, dando origem mais tarde a HQs que contavam fatos ocorridos antes dos álbuns desenhados por Moebius. Esse é o caso de Antes do Incal, série escrita por Jodorowski e desenhada pelo iugoslavo Zoran Janjetov, que teve seu último volume lançado agora pela Devir.

Antes do Incal - Volume Três começa com um John Difool mais jovem e heróico prestes a tomar parte em uma rebelião de “anarquistas psicóticos”. Em sua companhia está a bela e destemida Luz de Garra que vê em toda essa situação uma oportunidade de revelar a todo o planeta um “segredo terrível”. No entanto, uma conspiração orquestrada por Tecno-Papa, Prez e Cybo-Comandante detém os planos do apaixonado casal. A partir daí, a sucessão de eventos leva à separação de John e Luz, ao mesmo tempo em que abre caminho para entrar em cena o Incal e toda a mística em torno dele. Sobra ainda espaço para a ação de piratas galácticos e uma trama envolvendo aristocratas decrépitos (tudo envolto no linguajar e com os toques de absurdo que caracterizaram a série original).

Basicamente, o terceiro volume de Antes do Incal serve a um único propósito: encerrar a história iniciada nos volumes anteriores, montando o cenário de onde parte o álbum “Incal Negro” (publicado pela Devir junto com “Incal de Luz”, em Incal - Volume Um). Na verdade, as páginas finais desse último volume são recriações das primeiras páginas da HQ original desenhada por Moebius, cumprindo plenamente a função de estabelecer a ponte retroativa entre uma obra e outra. Mas por isso mesmo, por ter que “emendar” duas histórias bastante diferentes, Jodorowski acaba utilizando alguns truques baratos (como uma amnésia induzida a John Difool para deixá-lo mais próximo do personagem lançado nos anos 80). Em contrapartida, há todas as referências a elementos mais atuais que dão a Antes do Incal sua marca particular (apesar dos diálogos repletos de lugares-comuns).

E se o roteiro de Jodorowski é diretamente ligado à série original, a cada quadro os desenhos de Janjetov fazem referência ao traço de Moebius (talvez com alguns detalhes mais ao estilo de Richard Corben). Literalmente reverenciando a arte do mestre, o desenhista iugoslavo consegue um bom resultado técnico, sem alcançar, é claro, a clareza e a força inimitáveis do gênio francês. Mas é provável que a maior deficiência no visual de Antes do Incal não esteja no desenho, mas sim na colorização muito escura e manchada feita por Valérie Beltran. Diga-se de passagem, a colorização por computador também interferiu negativamente no visual da reedição do próprio Incal (uma rápida comparação com os primeiros álbuns lançados pela Meribérica deixa evidente que os efeitos de computador aplicados nas novas edições mais prejudicaram do que contribuíram para o estilo linear e iluminado de Moebius).

Publicada originalmente em seis álbuns que chegaram primeiro ao Brasil na edição portuguesa da Meribérica, Incal ganhou sua primeira edição norte-americana nos anos 90, na forma de três volumes. Esse mesmo modelo foi utilizado em 2006 na primeira edição da obra clássica no Brasil, bem como para a publicação de Antes do Incal. Isso trouxe o benefício do barateamento da coleção, porém, a opção de recolorir os primeiros álbuns desenhados por Moebius (possivelmente para estabelecer uma homogeneidade entre as duas séries), pode ter “atualizado” o trabalho, mas acabou gerando uma obra artisticamente mais pobre. Uma curiosa coincidência é que a produção de Incal e Antes do Incal numa ordem temporal inversa à das histórias, somada à sua publicação na forma de duas coleções de três volumes cada, lembra muito outra série envolvendo ficção científica e esoterismo: as duas trilogias Guerra nas Estrelas/ Star Wars.

Antes do Incal - Volume Três tem formato 21cm x 28cm, capa cartonada com impressão especial e miolo de 96 páginas, sendo vendido ao preço de R$ 42,00.