30/12/2007

Batman: herói dos seriados, filmes e animações (IV).


Após uma década de séries e filmes de animação acima da média, surgiram rumores sobre o retorno do Homem-Morcego aos cinemas. Mas, antes que Batman Begins fizesse sua estréia mundial, um novo desenho animado chegou aos canais da Warner. E com a forte marca “retrô” deixada por Batman - The Animated Series, os executivos do estúdio norte-americano decidiram que era hora de “zerar o placar” e lançar uma versão supostamente mais de acordo com as tendências deste início de século.

Foi assim que surgiu The Batman, um estiloso desenho animado, com direito a muitas cenas angulosas e figuras tortuosas (além de injustificáveis céus verdes e roxos). Apresentando alguns novos personagens (criados para contemplar telespectadores das chamadas “minorias raciais”), a animação traz também os coadjuvantes e antagonistas de sempre (Comissário Gordon, Alfred, Coringa, Mulher-Gato, etc.). Porém, como a idéia era buscar um visual mais contemporâneo, o próprio protagonista e vilões clássicos como o Coringa ganharam (duvidosas) versões criadas por Jeff Matsuda (o mesmo responsável pelo desenho As Aventuras de Jackie Chan). Embora O Batman conte com um tema de abertura bacaninha (composto por The Edge, da banda U2) e tenha lá seus momentos interessantes, como um todo, a série parece uma idéia ruim que recebeu um orçamento milionário.

Lançado em 2004, o desenho traz um Bruce Wayne pós-adolescente e repleto de brinquedinhos high tech, mas sem a consistência que caracteriza as melhores versões do Homem-Morcego. Com a saída dos produtores principais em 2007, a Warner começou a fazer reajustes na série, aproximando-a de outras mais bem-sucedidas (como o desenho Liga da Justiça). No fim das contas, porém, O Batman não passa de uma cria de estúdio, voltada a disseminar uma imagem mais juvenil e comercial de um personagem que logo apareceria numa produção de milhões de dólares. A busca de uma versão atualizada e dinâmica do Batman era necessária para agradar ao público adolescente masculino, da mesma forma que a escolha de um ator jovem e "bonitinho", como Christian Bale, tinha o objetivo de atrair a parcela feminina do público.

Tendo estreado nos cinemas em 2005, Batman Begins foi mais uma produção multimilionária de Hollywood, baseada num personagem dos quadrinhos. Com um elenco estelar, que inclui Michael Caine, Morgan Freeman e Garry Oldman (além do deslocado Liam Neeson e da inócua Katie Holmes), o filme pretende ser uma abordagem realista do herói, através de uma caracterização contemporânea (afastando-se, por exemplo, da proposta mais interpretativa das produções de Tim Burton). Porém, mesmo sendo tecnicamente elogiável e tendo agradado a muitos espectadores, o filme não se sustenta. Começando com Sete anos no Tibet, roubando cenas de Highlander e Blade Runner, passando por Velozes e Furiosos, o longa traz algum bat-drama e é cheio de cortes bruscos e personagens sem dimensão, resumindo-se a uma grande colagem.

Roteiro fraco, personagens mal aproveitados, visual um tanto inadequado e um Batman que voa (!) são ingredientes que podem até ter agradado a muitos, mas que seguramente não fazem de Batman Begins o melhor filme com o Homem-Morcego (como alguns gostam de alardear). A moral da história? Simples: por si sós, nem mesmo um dos personagens mais populares de nosso tempo e todo o dinheiro de Hollywood fazem um grande filme. Mas, já que a primeira produção rendeu alguns milhões de dólares, Christopher Nolan e Christian Bale ganharam uma segunda chance (de 150 milhões de dólares) para levar o Batman às telas dos cinemas. Agora só resta aguardar a estréia de The Dark Knight, em julho de 2008, para conferirmos se esse será um grande filme do Cavaleiro das Trevas, ou se o Coringa (interpretado por Heath Ledger) roubará a cena. Então, até 2008!

28/12/2007

Batman: herói dos seriados, filmes e animações (III).


Pode-se dizer que os “filhos legítimos” dos filmes de Tim Burton são, na verdade, os desenhos animados produzidos pela Warner Bros., a partir de 1992. Preparada para se seguir ao lançamento de Batman - O Retorno, a nova série de animação do Homem-Morcego superou todas as expectativas, saindo “muito melhor que a encomenda”. Lançada numa época em que a Internet não havia ainda se difundido, ela estreou no Brasil sem muito alarde, numa manhã de domingo. Por isso mesmo, a surpresa foi total! Já na abertura (com seus tons sombrios e desenhos dinâmicos conduzidos por uma música que vai do soturno ao triunfal), Batman - The Animated Series mostrou que os desenhos animados baseados em quadrinhos poderiam ser produções mais adultas e sofisticadas.

Assim como os filmes de Tim Burton, a animação produzida por Alan Burnett, Eric Radomski e Bruce W. Timm partia de uma temporalidade difusa (que misturava componentes da Art Decó dos anos 40 com elementos dos anos 90). Com arquitetura, roupas e carros antigos, além de um clima sombrio e de gângsteres como bandidos, a nova série animada do Batman não escondia a influência dos filmes noir e das animações clássicas do Super-Homem (produzidas pelos irmãos Fleischer entre 1941 e 1943). E se o visual de alguns objetos e personagens (como o Batmovel e o Pinguim) veio das produções cinematográficas de Tim Burton, o visual do Homem-Morcego saiu do herói Space Ghost criado por Alex Toth (para os Estúdios Hanna-Barbera, nos anos 60) e do próprio Batman desenhado por David Mazzucchelli (para a HQ Ano Um, de 1987). Já o trabalho de animação em si ficou a cargo de estúdios orientais, que aplicaram recursos e inovações trazidos pelo longa-metragem Akira (o clássico de Katsuhiro Otomo, de fins dos anos 80). Por fim, a música-tema de Danny Elfman (adaptada de seu trabalho em Batman - O Filme) e um acertado elenco de vozes (que no caso do protagonista é ainda melhor na dublagem do brasileiro Márcio Seixas) contribuíram para o imediato sucesso da série.

Contudo, recursos técnicos e influências visuais não seriam o bastante se a série não trouxesse também boas histórias. Tendo como referência a abordagem “psicológica” e mais racionalista dos quadrinhos dos anos 80 (como Ano Um de Frank Miller e A Piada Mortal de Alan Moore), os roteiristas buscaram o “lado humano” dos personagens (evitando o maniqueísmo ao apresentar suas motivações). O melhor exemplo disso talvez seja o Cara de Barro, que surge como um perigoso monstro capaz de alterar sua forma, mas acaba se revelando um atormentado ex-ator em busca de uma cura. O mesmo acontecesse com o Sr. Frio, vilão de não muito destaque que teve sua origem recontada, ganhando uma dimensão mais trágica (além de um novo visual criado por Mike Mignola). De fato, a começar do próprio Batman/Bruce Wayne, quase todos os coadjuvantes e antagonistas de suas HQs foram reinventados para a série: do Morcego-Humano e do fiel mordomo Alfred (no ótimo episódio-piloto “Asas de Couro”), passando pelo Comissário Gordon e por Robin, até os vilões Duas-Caras, Mulher-Gato, Charada, Hera Venenosa, Pinguim e, é claro, o insuperável Coringa.

Revitalizado e mais espirituoso que nunca, o Coringa chegou como uma das estrelas da série, ganhando uma versão à altura de sua importância (e a dublagem do ator Mark Hamill no original). E o Palhaço do Crime mostrou que não estava de brincadeira, em episódios como “O Natal do Coringa”, “Seja um Palhaço” e “Um favor para o Coringa”. Este último, escrito por Paul Dinni, trouxe a estréia da impagável Arlequina, a namorada do Coringa que conquistou o coração do público (a ponto de saltar dos episódios da tevê para os quadrinhos da DC Comics). Dinni também escreveu o inspirado “Quase o peguei” (no qual os principais inimigos do Batman contam suas histórias de como eles quase o derrotaram) e o original “O homem que matou o Batman” (no qual um bandido chinfrim espanta o mundo do crime com a alegação de ter matado o defensor de Gotham City). A lista de escritores do desenho animado incluiu ainda veteranos dos quadrinhos, como Len Wein, Marv Wolfman e Dennis O’Neil, que garantiram o ótimo nível médio dos roteiros.

Batman - A Série Animada foi um enorme sucesso de público e crítica, ganhando vários prêmios. Com isso, o desenho animado acabou originando uma coleção de brinquedos e a ótima revista em quadrinhos Batman - O Desenho da TV, além do longa-metragem para o cinema Batman - A Máscara do Fantasma, lançado em 1993. No ano seguinte, o título da série foi mudado para As Aventuras de Batman & Robin, marcando uma nova abordagem que valorizava mais o Menino-Prodígio. Tendo se saído tão bem com o Homem-Morcego, Bruce Timm teve a chance de recriar o outro grande super-herói da DC Comics, produzindo em 1996 Superman - A Série Animada. No ano seguinte, o desenho do Homem-Morcego sofreu outra mudança estrutural, passando a se chamar As Novas Aventuras do Batman. Já em 1998, a dupla dinâmica apareceu no longa Batman & Sr. Frio: Abaixo de Zero, enquanto o Homem-Morcego se encontrou com o Homem de Aço em Batman/Superman: Os Melhores do Mundo. No ano seguinte, foi lançada Batman do Futuro, série que originaria o longa O Retorno do Coringa. Mais recentemente, foi lançado em DVD um quarto filme: Batman - O Mistério da Mulher Morcego.

Esse amplo repertório de animações pavimentou o caminho para as séries Liga da Justiça, Liga da Justiça Sem Limites, Jovens Titãs e a recente Legião dos Super-Heróis. Com uma qualidade técnica e narrativa capaz de agradar tanto a uma criança de 3 anos quanto a um adulto de 33, de um modo geral, os desenhos animados lançados pela Warner nos últimos quinze anos são melhores que os quadrinhos publicados pela DC Comics. Recriando os personagens da editora para a linguagem da animação e o público do século 21, essas séries cativaram novos fãs que, em muitos casos, jamais lerão as versões originais em quadrinhos. Mas o fato é que foi a profunda paixão de Bruce Timm e sua equipe pelos heróis das HQs que gerou Batman - The Animated Series, um dos melhores desenhos animados já feitos.

Para quem quiser conhecer ou rever, as animações citadas aqui já foram lançadas no Brasil em DVD. E para quem quiser saber mais sobre os quadrinhos do Homem-Morcego, clique na palavra BATMAN em destaque abaixo.

26/12/2007

Batman: herói dos seriados, filmes e animações (II).


Com a crise de valores dos anos 70, o questionamento dos heróis tradicionais abriu caminho para que Batman reassumisse seu lado mais sombrio. E a partir de sucessos dos quadrinhos nos anos 80 (O Cavaleiro das Trevas, Ano Um e A Piada Mortal), a Warner Bros decidiu levar o personagem para as telas de cinema, numa produção que fizesse jus à sua importância. Foi assim que surgiu Batman - O Filme, sensação cinematográfica de 1989 inspirada nas primeiras HQs desenhadas por Bob Kane e em elementos das graphic novels produzidas por Frank Miller e Alan Moore.

Lançado para comemorar os 50 anos do Homem-Morcego, o longa-metragem chegou com uma gigantesca campanha de marketing, que contava com anúncios na mídia em geral, além da distribuição de material impresso (como pôsteres e panfletos) e instalações cenográficas em lojas de departamentos (onde eram exibidos vídeos, em meio a elementos temáticos e modelos em escala reduzida). Feito numa época em que não havia um novo filme de super-heróis a cada semana, o lançamento de Batman - O Filme foi o que se pode chamar de um acontecimento memorável.

A princípio, a escolha de Tim Burton para a direção causou controvérsia entre os fãs, embora nada que se comparasse ao espanto geral causado pelo anúncio de Michael Keaton para o papel-título. Mas se a bela Kim Basinger (no papel de Vicky Vale) trouxe algum alívio aos mais descontentes, a escolha de Jack Nicholson para o papel de Coringa (acompanhado dos rumores sobre seu milionário cachê) não deixou dúvidas de que se tratava de uma grande produção. O fato é que o filme foi um estrondoso sucesso de bilheteria, e visto hoje (apesar de algumas limitações técnicas) ele não decepciona.

Podendo também ser chamado de “Batman - O filme que o Coringa roubou”, seu roteiro se concentra na origem do vilão (retirada de A Piada Mortal), relacionando-a com a origem do herói (encenada a partir da versão de Frank Miller). Como esperado, a atuação de Nicholson é insuperável, não deixando muito espaço para Keaton e os demais atores. Apesar de alguns momentos de inverossimilhança, a produção acertou no figurino e na ambientação, criando uma Gotham City que mistura elementos dos anos 40 e componentes atuais. A temporalidade não-fixada colabora inclusive para a “suspensão da incredulidade”, numa história que traz atores fantasiados de morcego-humano e palhaço psicopata, além de uma “mocinha” que não faz muito mais do que ser salvar e emitir estridentes gritinhos.

Um resultado ainda melhor foi alcançado com Batman - O Retorno, que trouxe um Michael Keaton mais convincente no papel principal, além de Danny DeVitto (como um repulsivo Pinguim) e Michelle Pfeiffer (interpretando uma sensualíssima Mulher-Gato). Com uma produção mais bem-cuidada e um roteiro mais original, esse segundo filme, lançado em 1992, foi a chance de Tim Burton mostrar sua versão cinematográfica dos quadrinhos (influenciada por elementos dos clássicos do terror e dos espetáculos itinerantes). Sem os exageros da produção anterior e com uma cenografia mais competente, Batman - O Retorno é ainda (passados quinze anos) um dos melhores filmes já feitos com personagens dos quadrinhos.

Com o sucesso financeiro das primeiras produções, a Warner decidiu investir em duas sequências dirigidas por Joel Schumacher. A primeira foi o pós-modernoso Batman Forever, filminho de 1995 com Val Kilmer, Nicole Kidman e Tommy Lee Jones, dedicado às caretas e trejeitos do excessivo Jim Carey. Já Batman & Robin, lançado em 1997, contou com Arnold Schwarzenneger, Uma Thurman e George Clooney, mas não conseguiu ser muito melhor que o filme anterior. Após essas dispensáveis produções (que incluíram closes no traseiro, mamilos salientes e toda uma abordagem drag queen), passariam dez anos até que um novo ator vestisse o capuz de Batman nos cinemas. Mas antes disso, para felicidade dos bat-fãs, o herói ganharia a melhor de todas as suas adaptações para outra mídia, como veremos a seguir.

Para os interessados, Batman - O Filme, Batman - O Retorno, Batman Forever e Batman & Robin estão disponíveis em DVD, podendo ser encontrados numa caixa com os quatro filmes ou em edições individuais. Existem também edições econômicas com dois ou até três filmes por disco, mas sem extras.

24/12/2007

Batman: herói dos seriados, filmes e animações (I).


A relação do Homem-Morcego com os longas-metragens e séries para cinema e tevê começou há muito tempo, com a própria criação do personagem em 1939. As tiras de jornal do detetive Dick Tracy, as aventuras radiofônicas do misterioso O Sombra, o personagem Sherlock Holmes dos livros de Arthur Conan Doyle, bem como as máquinas voadoras desenhadas por Leonardo Da Vinci teriam influenciado Bob Kane e Bill Finger na concepção de seu justiceiro encapuzado. Mas, sem dúvida, o novo herói (que batizaram com o nome composto “Bat-Man”) não teria sido o mesmo sem a influência visual dos antigos filmes do Zorro e do clássico The Bat. A ponte do cinema para os quadrinhos voltaria a se estabelecer na criação do principal inimigo do Batman, o insano Coringa, idealizado por Jerry Robinson a partir da figura do ator Conrad Veidt no impressionante O homem que ri. Ao longo das décadas, esse caminho também funcionaria no sentido inverso, com os heróis dos quadrinhos passando para as telonas e telinhas.

No início dos anos 40, o sucesso de Batman e Robin nas revistas e tirinhas de jornal lançou os personagens para uma breve carreira no cinema, com um seriado de episódios curtos. No fim da mesma década, o Homem-Morcego e o Menino-Prodígio ganharam um novo seriado de matinê, no qual enfrentavam terríveis gângsteres. Contudo, nos anos 50, com o declínio nas vendas das revistas de super-heróis, Batman e Robin tiveram suas aparições restritas às HQs. Aqueles tempos de “vacas magras” eram também tempos de “caça às bruxas” nos Estados Unidos, quando a perseguição política e a histeria social atingiram em cheio os quadrinhos, após a publicação do nocivo e preconceituoso Seduction of the innocent do psicólogo Fredric Wertham. Passando a atuar pelas regras do vicioso e prejudicial Código de Ética e despojado de seu lado mais sombrio dos primeiros anos, Batman foi transformado em mais um garoto-propaganda de mensagens moralistas (algo como: “Meu jovem, o crime não compensa!”).

Mas o clima mais arejado dos anos 60 trouxe grandes novidades para Batman e Robin. Afinal, em 1966, os defensores de Gotham City ganharam sua adaptação mais famosa: o seriado para tevê estrelado por Adam West e Burt Ward. Em agitados episódios de meia-hora, a Dupla Dinâmica enfrentava os insuperáveis bat-vilões: Coringa (Cesar Romero), Charada (Frank Gorshin) e Pinguim (Burgess Meredith), só para citar os mais carismáticos. Um sucesso imediato, o programa teve mais de 100 episódios e gerou um longa-metragem estrelado pelo mesmo elenco. A popular produção, na verdade, não tinha muito a ver com o espírito original do Batman. Os cenários e figurinos coloridos, os diálogos hilários, as situações cômicas, além do físico nada atlético de Adam West, refletiam a chamada estética camp, no espírito satírico da década de 1960. As representações gráficas das onomatopéias (POWN!, CRASH!) e as impagáveis falas de Robin (“Santa arapuca!”) são marcas registradas dessa bat-série, que transformou o Homem-Morcego num ícone cultural reconhecido internacionalmente.

A repercussão do seriado foi tanta que, mesmo após seu fim em 1968, muitas HQs e as primeiras animações com o Batman, produzidas nos anos 70, traziam características retiradas dele. Várias pessoas, aliás, conheceram e tornaram-se fás da Dupla Dinâmica sem jamais terem lido uma história em quadrinhos sequer. Eu mesmo, quando criança, passei muitas tardes sintonizado “no mesmo bat-horário e no mesmo bat-canal”, torcendo para que, no último instante, o Homem-Morcego conseguisse escapar das sempre ardilosas (mas teimosamente falíveis) armadilhas de seus inimigos. Bons tempos aqueles! Mas a relação de Batman com o cinema e a tevê não parou por aí, como veremos a seguir.

23/12/2007

Uma entrevista com Bryan Talbot.


A 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos, realizada em Belo Horizonte em 1997, foi uma oportunidade única para se conhecer nomes de destaque dos quadrinhos, como Will Eisner ou Paolo Serpieri. Entre os convidados especiais do evento, estava o desenhista inglês Bryan Talbot. Tendo iniciado sua carreira no final dos anos 60, ele é mais conhecido no Brasil por seus trabalhos na minissérie The Nazz, na revista The Sandman e pela graphic novel Coração do Império. Num breve bate-papo no último fim de semana da Bienal, conversamos sobre sua experiência e opiniões sobre o mercado norte-americano de quadrinhos.

Nos últimos anos você tem trabalhado para editoras norte-americanas. Você também trocou a Inglaterra pelos EUA como fizeram outros quadrinistas britânicos?

Não, apesar de ter trabalhado com a DC e de lançar trabalhos pela Dark Horse, eu continuo vivendo na Inglaterra.

O que você pensa da “invasão britânica” dos quadrinhos norte-americanos, que aconteceu nos anos 80?

Foi uma coisa muito boa. Nós revitalizamos o cenário dos quadrinhos norte-americanos, trouxemos um novo estilo, uma nova vida para ele. Autores como Alan Moore e Neil Gaiman são muito cultos e colocam isso em suas histórias, trazendo mais inteligência para os quadrinhos.

Como você vê a “invasão japonesa” que acontece nos anos 90?

Ela está trazendo novos elementos, uma nova forma de contar histórias através de imagens e palavras. O que devemos condenar é o abuso. O único perigo é se as pessoas apenas copiarem esses quadrinhos. Mas se eles os utilizarem para criar algo novo será bom.

O que você acha do tipo de quadrinho publicado pela Image Comics?

Eles não têm o que me interessa nos quadrinhos, não passam de “abuso de testosterona”. Todos os personagens são grandalhões musculosos e superpoderosos. Todo mundo tem uma cabeça pequenininha e músculos incrivelmente desenvolvidos. Esses quadrinhos sacrificam a narrativa em favor de grandes painéis com imagens de impacto.

Sendo um “europeu”, você concorda que Yellow Kid seja o primeiro quadrinho a ser criado, ou você pensa que esta é uma linguagem mais antiga?

Sim, os quadrinhos são mais antigos, eles remontam à Idade Média. Mais tarde, no século XVII, pessoas como o cartunista William Hogarth produziram trabalhos utilizando imagens sequenciais. Depois houve o suíço Rodolphe Töpffer, no século XIX. Em 1886, foi lançada a primeira história em quadrinhos inglesa: Ally Sloper’s Half Holiday que é, portanto, anterior a Yellow Kid.

Qual deveria ser o caminho alternativo para aqueles que querem criar quadrinhos mais sérios que não lidem com super-heróis?

Apenas fazê-los e tentar publicá-los.

Uma entrevista com o criador de Druuna.


Em histórias que misturam erotismo, violência e cenários decadentes, o italiano Paolo Serpieri deu vida a Druuna, uma belíssima morena que em pouco tempo conquistou uma legião de admiradores. Com grande domínio das técnicas de pintura e um estilo inconfundível, Serpieri é um apologista da forma feminina, que não poupa elogios às mulheres brasileiras. Em uma breve visita a Belo Horizonte (MG) em 1997, Serpieri foi um dos principais convidados da 3ª Bienal Internacional de Quadrinhos. Na ocasião, tive a oportunidade de fazer uma entrevista, na qual falamos de seu trabalho, de seus mundos decadentes e de sua paixão pela personagem Druuna, que ele uma vez disse ser “muito brasileira”.

Na década de 70, os quadrinhos europeus de ficção e fantasia conquistaram o mundo, influenciando o surgimento de revistas como a Heavy Metal. Hoje o senhor publica seus trabalhos nessa revista. Qual a relação de seus quadrinhos com aqueles dos anos 70?

Nos anos 70, eu trabalhava com quadrinhos de faroeste e pensava que meu desenho não tinha muito a ver com a ficção científica. Eu tinha resistência ao desenho geométrico, certinho, tecnológico da FC. Mas a fantasia e a ficção dos quadrinhos publicados na Metal Hurlant me fascinavam muito. Como eu ainda tinha muitas histórias para contar com o faroeste, comecei a fundir este gênero com a fantasia. Só depois, nos anos 80, eu cheguei à ficção científica. Fiquei muito impressionado com Alien e Blade Runner de Ridley Scott; aí comecei a fazer uma história em que aparece a deterioração do mundo tecnológico. Quando comecei a desenhar essa história não pensei numa personagem protagonista, mas foi aí que surgiu a Druuna.

O que é a Druuna para o senhor? Ela corresponde a seu ideal de mulher?

Enquanto personagem, Druuna surgiu como minha concepção de uma mulher sensual. Ela representa o erotismo e a sensualidade. Mas é como se ela fosse uma mulher que você poderia encontrar, ela é viva, atual, palpável. É como se você pudesse tocá-la, por isso utilizo essa plasticidade nos desenhos e nas formas. Eu a inseri em um mundo em decomposição para criar um contraste entre um corpo perfeito de mulher, que remete à vida e prazer, e o ambiente em decomposição. Em suas histórias, Druuna também aparece em um mundo onírico, realizando uma fuga, da morte e da dor, através do prazer. Meu trabalho responde a uma necessidade pessoal.

Em suas obras o senhor emprega a pintura como recurso técnico. Como o senhor vê a relação entre a arte e os quadrinhos?

Eu faço pinturas há muito tempo, antes de fazer quadrinhos. Uso a cor para criar o ambiente, a atmosfera, o estado da alma. Não me interessa a cor simplesmente como estética, mas a cor como expressão. Há muita polêmica se o quadrinho é, ou não, uma arte. Acho que qualquer atividade criativa pode chegar à arte, mas isso não quer dizer que todos os quadrinhos são artísticos.

Comparado a outros quadrinhos eróticos europeus, Druuna parece uma personagem mais passiva e o ambiente de suas histórias é mais sombrio. Isto tem a ver com sua percepção pessoal do mundo?

Tenho uma visão pessimista do futuro, mesmo quando faço coisas positivas. Druuna parece ser sempre uma vítima, mas na realidade ela sempre vence. Ela representa uma alternativa à morte, representa o prazer.

A discussão sobre o que é erotismo e o que é pornografia é um tema recorrente. O senhor estabelece uma diferença entre eles? As aventuras de Druuna são eróticas ou pornográficas?

Eu penso que a pornografia é a representação do ato sexual. Tanto pode ser chata quanto pode ser excitante. Não entendo quando as pessoas se escandalizam com a representação do ato sexual, que é algo belo. Por sua vez, o erotismo pode ser muito fascinante. Há toda uma série de situações e elementos que se referem ao ato sexual. Chamo de erotismo um olhar de uma bela mulher, um vestido transparente, o movimento dos seios. Para alguns o erotismo é nobre e a pornografia é vulgar; muitas vezes isso é hipocrisia de quem tem medo do prazer. Vou dizer algo perigoso: o erotismo é muito hipócrita e parece muito nobre pois se pensa que o ato sexual é algo vulgar.

A Itália já nos presenteou com brilhantes viajantes e descobridores de novos mundos, como Marco Polo e Hugo Pratt. O senhor acha que nos dias de hoje ainda restam mundos a serem descobertos?

Não, não naquele sentido. Hoje, cada um deve descobrir o seu mundo. Muitas vezes a aventura de buscar novos mundos leva você a descobrir a si mesmo. A idéia da busca por um novo mundo é uma viagem em direção ao incógnito, em busca da felicidade, do paraíso. A conquista do espaço é uma dessas viagens em direção ao incógnito.

22/12/2007

Os quadrinhos com arte pintada (II).


No início dos anos 90, a alta qualidade dos quadrinhos com arte pintada levou à criação de trabalhos em que essa técnica foi empregada de forma bastante criativa. Uma obra-prima daquele momento é Ás Inimigo, uma graphic novel de 120 páginas primorosamente pintadas por George Pratt, que narra os últimos dias de um aviador alemão durante a Primeira Guerra Mundial. Nessa HQ de visual impressionante e um tanto impressionista, o artista trabalha as cores com pinceladas rápidas que dão velocidade às sequências, preservando a ilusão de movimento tão essencial à narrativa em quadrinhos.

É da mesma época a minissérie em quatro partes Os livros da magia, escrita por Neil Gaiman, na qual cada capítulo ficou a cargo de um diferente artista, começando pelo veterano John Bolton e passando por Scott Hampton, Charles Vess e Paul Johnson. Contudo, nos anos que se seguiram, a popularização dos quadrinhos com arte pintada levou ao surgimento de vários trabalhos de qualidade duvidosa, nos quais as técnicas de pintura serviam no máximo para atrapalhar. Assim, num erro que insistem em repetir, as grandes editoras norte-americanas quase destruíram uma boa idéia. Entretanto, viria de uma delas a obra que resgatou e renovou as técnicas de pintura em quadrinhos: a HQ Marvels.

Escrita por Kurt Busiek, a minissérie reconta o passado do “Universo Marvel” através da lente de um fotógrafo. Nada mais pertinente, uma vez que todo o visual da HQ, pintada por Alex Ross, é baseado numa estética foto-realista, inspirada pelas ilustrações de Norman Rockwell. Com a ótima recepção do trabalho, o então desconhecido artista tornou-se, quase da noite para o dia, um dos nomes mais celebrados dos quadrinhos. Mas foi com Reino do Amanhã, escrita por Mark Waid, que Ross estabeleceu de vez seu lugar no mercado norte-americano. Utilizando novamente a fórmula de contar a história do ponto de vista de uma pessoa comum, a minissérie apresenta um apocalíptico futuro para o “Universo DC”, povoado por versões hiperrealistas e “maduras” de heróis como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha.

Aclamado internacionalmente, Alex Ross acabou se tornando uma espécie de “ilustrador oficial” dos super-heróis DC, o que se confirmou na série de especiais com arte pintada escritos por Paul Dini e lançados para comemorar os sessenta anos dos principais personagens da editora. Em seguida, além da minissérie Tio Sam e de capas para os números 1 das revistas da Linha ABC de Alan Moore, o artista trabalharia em inúmeros pôsteres, capas e ilustrações especiais, incluindo a minissérie Justiça, atualmente publicada no Brasil, que traz os heróis clássicos da Liga da Justiça enfrentando a Legião do Mal. É preciso dizer, porém, que em algumas de suas HQs mais recentes a qualidade das páginas internas deixa um pouco a desejar, em especial no que diz respeito à narrativa e dinâmica das imagens, algo fundamental para os quadrinhos.

Aproveitando o prestígio dos trabalhos de Alex Ross entre os leitores, a Panini acaba de anunciar a edição especial Os maiores super-heróis do mundo. O livrão vem em capa dura com 400 páginas, formato 23cm x 31cm, e republica as edições Superman: Paz na Terra, Batman: Guerra ao Crime, Shazam: O Poder da Esperança, Mulher-Maravilha: O Espírito da Verdade, LJA: Origens Secretas e LJA: Liberdade e Justiça, trazendo ainda uma galeria de extras com esboços e fotos de referência utilizadas pelo artista.

Os quadrinhos com arte pintada (I).


Um quadrinho com “arte pintada” é uma HQ em que a maior parte do visual foi produzida com técnicas de pintura, tais como aquarela, acrílica ou óleo. Não se enquadram nessa definição, portanto, aqueles trabalhos em que se utiliza a pintura para apenas preencher os espaços das cores, numa página previamente desenhada e arte-finalizada. Em geral, nos quadrinhos com arte pintada, um leve traço a lápis serve de referência para o trabalho com pincel e tinta, que dá o visual final à página. Tendo chegado ao mercado norte-americano em fins da década de 1970, essa técnica de criação teve seu auge nos anos 80, continuando em voga ainda hoje.

Na Europa, os quadrinhos com arte pintada já eram conhecidos nos anos 70, tendo no iugoslavo Enki Bilal seu principal expoente. Empregando técnicas que demandam uma maior qualidade de impressão, esses quadrinhos chegaram aos Estados Unidos pelas páginas da experimental e inovadora Heavy Metal. Mas foi somente nos anos 80, com o desenvolvimento das graphic novels e minisséries de luxo, que as HQs com arte pintada se difundiram amplamente no mercado norte-americano e daí para o mundo. Vale lembrar que um dos fatores que possibilitaram essa difusão foi a excelente fase dos quadrinhos na época, que permitiu às grandes editoras financiar a produção de trabalhos com técnicas de pintura, que são relativamente mais trabalhosas e demoradas que as utilizadas em revistas convencionais.

O nome de maior destaque daquele primeiro momento foi Bill Sienkiewicz. Com formação em artes visuais, ele já vinha apresentando um trabalho inovador nas páginas e capas da revista New Mutants. Mas foi com a Graphic Novel do Demolidor, escrita por Frank Miller, que o desenhista surpreendeu a todos com suas páginas pintadas sobre um traço que oscilava entre o realismo e a quase caricatura. Em seu trabalho seguinte, a minissérie Elektra Assassina, também escrita por Miller, o artista subverteu a estética dos quadrinhos de super-heróis, misturando técnicas e estilos num visual perfeito para o clima surrealista do roteiro. Após a boa repercussão desses projetos, Sienkiewicz mergulhou na produção de trabalhos ainda mais autorais e complexos, como a graphic novel Brought to Light, em que o roteirista Alan Moore revela as atividades ilegais da C.I.A., e a bizarra minissérie Stray Toasters, uma espécie de coroamento para a significativa influência do artista sobre os quadrinhos da época. Por fim, não poderia faltar uma referência à sua estilizada adaptação de Moby Dick, para a série Classics Illustrated.

Outros artistas também deram contribuições importantíssimas para o sucesso dos quadrinhos com arte pintada, em especial os pioneiros Jon J. Muth e Kent Williams, responsáveis por trabalhos de uma beleza singular. Em parceria, eles produziram a poética minissérie Moonshadow, escrita por J.M. DeMatties, e a dinâmica Wolverine & Destrutor: Fusão, escrita por Walter e Louise Simonson. E Kent Williams ainda voltaria a se unir ao roteirista J.M. DeMatties para criar a intensa minissérie Blood. A excelente repercussão desses trabalhos, na segunda metade dos anos 80, levou à difusão e popularização das técnicas de pintura nas HQs tanto nos Estados Unidos quanto na Inglaterra. Como resultado, nos anos seguintes, novos artistas e trabalhos deram continuidade à boa produção de quadrinhos com arte pintada, muitos deles vindos dos outro lado do Atlântico. Alguns bons exemplos são os britânicos Simon Bisley com a série Sláine, Dave McKean com Orquídea Negra e Duncan Fegredo com Kid Eternity.

Mas a trajetória dos quadrinhos com arte pintada não pára por aí, como veremos a seguir. Para os interessados, todas as edições citadas neste texto valem ser conferidas e podem ser encontradas em sebos e lojas virtuais.

21/12/2007

Quadrinhos em “estilo desenho animado”.


Ao longo dos anos 90, as editoras Marvel e DC Comics perderam uma considerável parcela de seu público para os desenhos animados japoneses, os video games e também para sua maior concorrente, a Image Comics. Para recuperar os leitores perdidos e conquistar o novo público infantil, as duas maiores editoras do mercado norte-americano investiram em revistas que valorizam seus personagens e veiculavam um novo padrão de desenho, que chamei na época de “estilo desenho animado”. Com ele, a narrativa em quadrinhos, que havia sido prejudicada pelo “estilo Image” (que transformou as páginas num amontoado de imagens exageradas), foi retomada por novos autores que souberam desenvolver um trabalho mais interessante e criativo.

Com a publicação de O Cavaleiro das Trevas e Watchmen em 1986, os roteiristas passaram a tentar imprimir mais realismo aos super-heróis. Se isto possibilitou a criação de trabalhos inovadores, também contribuiu para um enfraquecimento no carisma dos personagens (que se afastavam cada vez mais dos ícones dos anos 40 e 50). Em grande parte, o estilo desenho animado foi uma resposta a esse processo de enfraquecimento dos heróis. Com formas bem delimitadas e desenhadas em traço cartunizado, o novo estilo conseguiu resgatar elementos característicos de heróis clássicos como Batman e Super-Homem.

Esse “retorno às origens” começou em 1992, quando foi lançada Batman: The Animated Series, a melhor série de animação já feita com o Homem-Morcego. Trazendo influências do desenho animado do Super-Homem produzido pelos irmãos Fleischer entre 1941 e 1943, além das inovações de animações japonesas como Akira, o seriado produzido por Alan Burnett, Eric Radomski e Bruce Timm causou um verdadeiro furor quando lançado. Acompanhando o seriado da tevê, a DC Comics lançou a revista The Batman Adventures (rebatizada no Brasil como Batman: O Desenho da TV), que tinha temática e visual inspirados na animação.

Entre os desenhistas da nova publicação, Mike Parobeck destacava-se pelo traço dinâmico e pela narrativa precisa, que exploravam as sugestões do roteiro. Seus desenhos lembram as antigas HQs do Capitão Marvel (Shazam!) no estilo cartunizado de C.C. Beck, enquanto sua narrativa traz influências de Frank Miller e John Byrne. Assim, reunindo as soluções criativas de quadrinhos clássicos e as inovações narrativas dos anos 80, Parobeck desenvolveu um trabalho bastante comunicativo. Recuperando o carisma de Batman nos quadrinhos, The Batman Adventures reconquistou antigos fãs e cativou um seguimento que estava sendo negligenciado pelas editoras de super-heróis: o público infantil.

Explorando a qualidade dos trabalhos de Parobeck, a DC Comics lançou outra revista, com HQs, curiosidades e passatempos, voltada especificamente para público infantil. Nas páginas de Superman & Batman Magazine (intitulada no Brasil O Novo Batman), além dos dois principais heróis da editora, outros personagens como Lanterna Verde, Mulher Maravilha e Flash ganharam versões em estilo desenho animado. Com isso, através das revistas desenhadas por Parobeck, a DC Comics deu continuidade nos quadrinhos ao processo de revitalização de seus super-heróis, iniciada nos desenhos animados.

Mas foi nas páginas das revistas dos heróis mutantes da Marvel que atuou o desenhista mais influente do estilo desenho animado. Joe Madureira era um fã de quadrinhos que conseguiu um emprego de auxiliar nos escritórios da editora. Dos desenhos de horários de folga ao título de desenhista mais influente dos quadrinhos norte-americanos foram apenas cinco anos. Estreando na revista Excalibur, ele teve sua grande chance em 1994, quando desenhou sua primeira edição de The Uncanny X-Men. Em pouquíssimo tempo, Madureira tornou-se um dos desenhistas mais cotados dos quadrinhos norte-americanos.

Se em seus primeiros trabalhos os desenhos lembravam o estilo de Arthur Adams, com o crescente sucesso da animação japonesa, Madureira trocou o traço fino e detalhado pelos desenhos mais delineados e marcados. Com isso, suas heroínas e vilãs passaram a lembrar as ninfetas dos desenhos japoneses, seus heróis ganharam um visual mais jovial, enquanto os vilões aproximaram-se dos monstrengos dos animes. O fato é que os desenhos dinâmicos e o traço definido de Madureira fizeram escola; porém, depois de um enorme sucesso como desenhista da The Uncanny X-Men, ele seguiu o exemplo dos criadores da Image Comics, deixando a Marvel para desenhar seus próprios personagens.

De qualquer maneira, devido aos bons resultados alcançados com The Batman Adventures e The Uncanny X-Men, na segunda metade dos anos 90, tanto a DC quanto a Marvel passaram a investir em revistas no estilo desenho animado, recuperando a popularidade e as características originais de seus principais personagens.

“Super-sagas” Marvel: Heroes Reborn.


Como as demais atividades da indústria cultural, o mercado norte-americano de quadrinhos é movido pelo sucesso, prevalecendo a regra de que as experiências bem-sucedidas devem ser copiadas. Entre 1987 e 1992, Todd McFarlane, Jim Lee e Rob Liefeld produziram HQs que alcançaram um enorme sucesso entre os leitores. Seu trabalho nas revistas do Hulk, do Homem-Aranha e dos heróis mutantes aumentaram ainda mais a popularidade desses personagens, criando o padrão visual e narrativo que predominaria nos quadrinhos de super-heróis nos anos 90.

Motivada pelo excelente desempenho das revistas desenhadas pelo trio, a Marvel decidiu criar três novas séries (Spider-Man, X-Men e X-Force) que bateram todos os recordes de vendas do mercado norte-americano. Mas a alegria da editora não durou muito. Em 1992, pouco mais de um ano após o lançamento das novas revistas, McFarlane, Lee e Liefeld deixaram a editora para fundar a Image Comics. Sem seus desenhistas-astros, as vendas caíram e a Marvel teve que lidar com uma posição secundária que a levou à beira da falência.

Depois de ditar os modelos de sucesso durante décadas, entre 1992 e 1995, a editora do Homem-Aranha ficou para trás, tendo que imitar padrões lançados por sua mais nova concorrente, a Image Comics. Para correr atrás do prejuízo, a Marvel lançou a “super-saga” Onslaught (Massacre), ao final da qual os Vingadores e o Quarteto Fantástico desapareceram. Esse foi o pressuposto para o surgimento de uma “realidade paralela”, onde aconteceram as histórias de Heroes Reborn (Heróis Renascem).

Na Marvel pós-Onslaught, porém, nem todos os heróis tiveram sua origem recontada. Era como se o Quarteto Fantástico e os Vingadores tivessem sua primeira aventura nos anos 90, enquanto o resto dos heróis Marvel já atuava há algumas décadas, o que criou uma série de confusões e explicações estapafúrdias. Por exemplo, o Hulk que é acusado de ter colaborado no desaparecimento dos heróis também participa das HQs de Heroes Reborn (ou seja, há dois Incríveis Hulks atuando ao mesmo tempo nas duas realidades em que se dividiu o "Universo Marvel").

O desaparecimento seletivo de personagens evidenciou as motivações da editora, pois foi para passar um “verniz anos 90” em seus velhos heróis que a Marvel convocou dois de seus principais concorrentes: Jim Lee e Rob Liefeld. Com um contrato inicial de um ano (que não se cumpriu integralmente), os fundadores da Image Comics recontaram de forma bastante livre a origem do Capitão América, Homem de Ferro, Vingadores e Quarteto Fantástico. O fato é que Heroes Reborn cumpriu a função de atrair a atenção da mídia e dos leitores para personagens que andavam meio apagados.

Tendo trazido um aumento nas vendas de revistas, após a conclusão de Heroes Reborn (como era previsível), os heróis “renascidos” foram devolvidos ao “Universo Marvel”. E para fazer tudo voltar ao “normal”, a editora optou por uma equipe de desenhistas veteranos, como Alan Davis, George Pérez e John Romita Jr., que em parceria com os roteiristas Kurt Busiek e Scott Lobdell criaram o projeto Heroes Return. Ou seja, no fim, tudo se resumiu a mais uma jogada editorial, para esquentar as vendas e dar um fôlego novo a velhos heróis que andavam em baixa.

“Super-sagas” Marvel: Onslaught.


Desde a publicação de Crise nas Infinitas Terras pela DC Comics em 1985, as grandes editoras de quadrinhos dos Estados Unidos vêm lançando regularmente séries que reúnem seus principais super-heróis na luta contra um misterioso e “invencível” vilão. No final de cada epopéia apocalíptica o vilão é derrotado, um ou outro herói morre ou sofre transformações. Onslaught (Massacre) lançada pela Marvel em 1996, foi um exemplo de uma dessas supostas “super-sagas”.

Onslaught foi anunciada como a maior ameaça jamais enfrentada pelos heróis Marvel ao longo de sua carreira. Mais uma vez, um enigmático vilão surgiu para “transformar definitivamente” o destino do universo. Se na maioria das séries anteriores isso não passou de uma jogada de marketing, em Onslaught as coisas foram ligeiramente diferentes (mas só ligeiramente!). Isso se deveu ao fato de esta série estar diretamente ligada a Heroes Reborn (Heróis Renascem) o projeto de reformulação dos heróis clássicos da Marvel, realizado por Jim Lee e Rob Liefeld.

Os eventos que levaram a Onslaught começaram nas revistas dos heróis mutantes (de longe as mais populares da editora na época). De Uncanny X-Men a Excalibur, passando por X-Force e X-Man, surgiram referências ao nome da série. Em seguida, as demais revistas da editora foram envolvidas, colocando lado a lado heróis como Hulk, Homem-Aranha, Wolverine e Coisa. No final de uma batalha apocalíptica (como não poderia faltar!), os principais heróis Marvel da década de 60 (o Quarteto Fantástico e os Vingadores, incluindo aí Capitão América e Homem de Ferro) simplesmente já não existiam mais.

Como se costuma dizer: “em time que está ganhando não se mexe”; portanto, o fato de a Marvel ter levado adiante um projeto como esse era um claro indício de que a editora ia “mal das pernas”. Em meados dos anos 90, houve uma queda considerável nas vendas das grandes editoras norte-americanas, além da participação de novas editoras, como a Image, que tomaram uma parte considerável de um mercado já restrito. Com isso, apenas os heróis mais populares conseguiram manter ou até ampliar seu público, como foi o caso dos X-Men e de suas crias.

Já para outros personagens, como o Capitão América e o Quarteto Fantástico, os “novos tempos” representaram perda de popularidade e espaço no mercado. Com a saturação das antigas fórmulas e modelos, os “grandes heróis” passaram por uma crise de credibilidade. Suas histórias já não atraíam os leitores, que preferiam o visual, a temática e a ação das revistas dos heróis mutantes. Para contornar um problema semelhante, em 1985 a DC Comics lançou Crise nas Infinitas Terras, um projeto que estabeleceu um novo ponto de partida para seus personagens clássicos (como Super-Homem, Batman e Mulher-Maravilha).

Por incompetência dos editores e por falta de criatividade dos roteiristas, os avanços daquela ótima fase da DC acabaram sendo anulados. Mesmo assim, a maior concorrente da editora inspirou-se em Crise nas Infinitas Terras para tentar “reorganizar a casa”, lançando Onslaught. Afinal, o objetivo dessa série era estabelecer um novo marco zero, a partir do qual surgiria um “Universo Marvel” parcialmente reformulado, que atendesse melhor à demanda da época. Assim surgiu o projeto Heroes Reborn, a reformulação dos heróis clássicos da Marvel: Quarteto Fantástico e Homem de Ferro por Jim Lee, Capitão América e Vingadores por Rob Liefeld.

O exagero visual nos quadrinhos de super-heróis.


Uma das características dos quadrinhos é sua capacidade de estar em frequente transformação, com novos artistas e estilos que surgem. Contudo, nem sempre a qualidade é mantida e, às vezes, acontecem até retrocessos. Quando foi lançada em 1982, a minissérie Wolverine, desenhada por Frank Miller, representou uma inovação na narrativa e na ação dos quadrinhos de super-heróis. As páginas da HQ traziam enquadramentos e sequências revolucionários para a época, mostrando influências cinematográficas e do mangá Lobo Solitário (de Kazuo Koike e Gozeki Kojima).

Algum tempo atrás, ao fazer uma "investigação arqueológica" em minha coleção de revistas, em busca de antigos trabalhos de Miller, encontrei as edições dessa minissérie. Ao folhear as revistas, porém, tive uma surpresa, pois elas não tiveram para mim o mesmo impacto de antes. É claro que as páginas de desenho não haviam se alterado com o tempo. Na verdade, minha percepção dos quadrinhos de super-heróis é que havia se modificado; ou melhor, os recursos utilizados por Miller (que tinham causado tanto impacto anos antes) já haviam sido assimilados, imitados e repetidos, ao ponto do esgotamento, com a avalanche de revistas que vieram depois.

O fato é que, entre os anos 80 e 90, os quadrinhos norte-americanos experimentaram uma intensificação visual, cujas principais características eram as chamadas “imagens de impacto” e a narrativa fragmentada (algo que chegou a um extremo nas publicações da Image Comics). A maioria das revistas de super-heróis da época simplesmente se adaptou para preservar o público e atrair novos leitores. E uma vez que os desenhos e enquadramentos de antes já não impressionavam mais, era preciso buscar meios de causar cada vez mais impacto (devido à deficiência dos roteiros em geral).

Assim, as páginas das HQs transformaram-se então num verdadeiro emaranhado de traços e rabiscos, com poses e figuras exageradas, onde misturam-se hiper-super-heróis, guerreiros de dois metros de altura, vilões "tecnolóides" e alienígenas das mais diversas cores e espécies. Todo esse pandemônio visual teve como uma de suas fontes de influência principais os quadrinhos e desenhos animados japoneses (bem como a velocidade vertiginosa da estética do videoclip). É claro que a influência dos mangás e animes em si não é negativa, tendo sido inicialmente até renovadora (como foi o caso dos trabalhos de Miller nos anos 90). O problema, contudo, estava em como aqueles elementos foram empregados nas HQs de super-heróis.

Os principais responsáveis por essa transformação foram Todd McFarlane, Jim Lee e o pouco talentoso Rob Liefeld, que agitaram o mercado norte-americano, com revistas produzidas para a Marvel. O sucesso desses desenhistas foi tanto que, em 1992, eles deixaram a editora do Homem-Aranha para fundar a Image Comics. Como o próprio nome indicava, em sua fase inicial, a nova editora privilegiava somente as imagens. O principal problema então foi uma crescente padronização de estilos, quando os novos desenhistas que surgiam não traziam nada de novo, sendo apenas cópias de Lee e McFarlane, ou pior ainda: cópias do incompetente Liefeld. Toda aquela superexploração visual levou ao desgaste e a uma profunda crise criativa nos quadrinhos norte-americanos, da qual ainda percebemos efeitos até hoje.

20/12/2007

Flash Gordon no planeta Mongo.


Com a depressão econômica dos anos 30, os quadrinhos assumiram uma função de “válvula de escape” para as tensões cotidianas da sociedade norte-americana. A exótica África de Tarzan e o espaço sideral de Buck Rogers tornaram-se lugares de refúgio para os leitores, que abriam ansiosamente os jornais em busca das doses diárias ou dominicais de aventura. Para a arte dos quadrinhos, aquele foi um momento de forte desenvolvimento e rápida expansão. Não é por menos que, ao longo da década de 1930, as primeiras revistas em quadrinhos e as tradicionais tirinhas de jornal tornariam uma das principais formas de comunicação, ao lado do rádio e do cinema.

Em meio à disputa das grandes distribuidoras de quadrinhos por personagens que rivalizassem com Tarzan e Buck Rogers, o jovem Alex Raymond (que perdera seu emprego de oficeboy em Wall Street) venceu um concurso de desenho e conseguiu lançar Flash Gordon. Essa série clássica dos quadrinhos surgiu em 7 de janeiro de 1934, no New York American Journal e logo tornou-se um grande sucesso junto aos leitores. As páginas dominicais com as aventuras do jovem viajante interplanetário tiveram tanta receptividade junto ao público que, apenas dois anos após seu lançamento, a Universal Pictures já produzia um seriado de cinema baseado nos quadrinhos de Raymond.

As aventuras de Flash Gordon começam quando um meteorito atinge o avião em que ele viajava. Sendo um famoso esportista e aluno da universidade de Yale, Flash salva a bela Dale Arden, uma passageira do avião que se tornaria sua namorada. Caindo próximos a um observatório espacial, eles encontram o Dr. Zarkov, um famoso cientista obcecado pela missão de salvar a Terra da colisão com um cometa. Para tanto, Zarkov construiu um foguete, que acaba levando os três heróis para o desconhecido planeta Mongo. Ali os aventureiros encontram cidades maravilhosas, mares sombrios, paisagens desérticas e florestas exuberantes, onde monstros gigantescos, homens alados, felinos antropomórficos e exércitos de guerreiros lutam pela sobrevivência, enfrentando ou defendendo o império do impiedoso Ming.

Chegando a essa terra inóspita, Flash Gordon, Dale Arden e Zarkov são capturados pelos súditos de Ming, que decide se casar com Dale Arden. Com a ajuda de Aura, filha do imperador (que se apaixonou imediatamente por Flash), o herói consegue escapar, planejando retornar para resgatar sua amada Dale. Assim tem início Flash Gordon no Planeta Mongo, o primeiro volume de uma série de livros que reúne as histórias estreladas por Flash Gordon, desenhadas por seu criador Alex Raymond. Flash Gordon tornou-se um clássico dos quadrinhos, contribuindo para o desenvolvimento dessa arte e influenciando muitas outras séries de quadrinhos ao longo das décadas e chegando a originar também seriados de animação para a tevê (que faziam minha alegria nas manhãs de domingo, lá pelos anos 80).

19/12/2007

Tarzan e Buck Rogers, as primeiras tirinhas de aventura.


Entre o final do século 19 e início do século 20, a imprensa passou por um processo de amplo desenvolvimento nos Estados Unidos, o que levou à criação de “impérios jornalísticos” como os de Hearst e Pulitzer. Na disputa pelo público, as histórias em quadrinhos tornaram-se um importante elemento para a atração de leitores. Nas tirinhas diárias ou páginas dominicais, crianças e adultos divertiam-se com as travessuras de endiabrados garotos (Os Sobrinhos do Capitão), com um jogo de gato e rato (Krazy Kat) ou com os sonhos de uma criança (Little Nemo in the Slumberland), entre outras séries de sucesso.

As primeiras histórias em quadrinhos norte-americanas eram cômicas e traziam o estilo cartunístico. Foi em 1929 que surgiram as primeiras séries de tiras com histórias de aventura. Baseada nos romances de Edgar Rice Burroughs, Tarzan tornou-se uma das mais populares tirinhas de quadrinhos, consagrando definitivamente seu criador, o desenhista Harold Foster (que anos depois criou a também clássica série Príncipe Valente). Mostrando uma África misteriosa e inóspita, repleta de ferozes animais, as histórias de Tarzan refletem o espírito aventuresco e empreendedor da década de 1920.

Ao mesmo tempo, outra série de histórias de aventura foi lançada, inaugurando a temática da ficção científica. Era Buck Rogers, que trazia a saga de um astronauta no século 25. Podemos dizer que o contexto social dos anos 20 inspirou o surgimento desse personagem. Essa década assistiu a um processo de desenvolvimento industrial, acompanhado de crescente urbanização, sem precedentes. A isso se somam as inovações na tecnologia e nos transportes, que propiciaram o desenvolvimento das comunicações. Tudo isso levou à circulação de novas idéias, entre as quais se destacam a organização racional da produção e princípios pseudocientíficos, como as teorias de eugenia.

Como um complemento do desenvolvimento econômico, baseado no aumento da produtividade, criou-se a idéia de que se vivia um período “dourado” de prosperidade (após os terríveis anos da Primeira Guerra Mundial). Nos anos 20, a idéia de uma “Nova Era” de paz e prosperidade não era algo abstrato, mas uma realidade presente na vida de uma considerável parcela da população norte-americana. O crescimento das indústrias de automóveis, aviação e eletrodomésticos difundiu a imagem de uma sociedade tecnológica, próspera e moderna. Embora os aspectos negativos da vida urbana já se fizessem sentir, os confortos e ícones da vida moderna surgiam como uma forma de compensação, exemplificados pelos astros do cinema ou esporte, e idealizados nos heróis dos quadrinhos.

Logo, pode-se dizer que, na verdade, os vôos espaciais de Buck Rogers não começaram em 1929 quando foi lançada sua tirinha, mas dois anos antes, em 1927, quando Charles Lindbergh atravessou o Atlântico, reforçando o modelo do norte-americano destemido e empreendedor. O desenvolvimento econômico e o envolvimento na Primeira Grande Guerra levaram ao fim do isolacionismo daquele páis. Porém, o contato com outros povos promoveu o recrudescimento de tendências etnocêntricas, baseadas numa suposta superioridade da raça branca. Desta forma, o racismo contra minorias étnicas (negros, orientais, latinos) que fôra marcante na sociedade norte-americana do século 19, aflorou nos anos 20 e 30, justificado por teorias pseudocientíficas e representado em vilões do cinema e dos quadrinhos.

18/12/2007

Alguns dinossauros dos quadrinhos.


Muito populares entre crianças e adolescentes, os dinossauros são antigos frequentadores dos quadrinhos. Em suas aventuras, Tarzan geralmente enfrentava leões, gorilas ou nativos africanos; porém, em algumas HQs, ele se deparou com ferozes tiranossauros. Essas feras saídas do passado habitavam Pal-ul-don, uma terra escondida no coração da África, na qual os dinossauros sobreviveram até os tempos modernos. Mesmo valendo-se apenas de sua destreza e de armas rudimentares, é claro que o homem-macaco sempre conseguia domar ou vencer esses fantásticos animais.

Flash Gordon, outro herói clássico dos quadrinhos de jornais dos anos 30, também teve que encarar criaturas baseadas nos monstros pré-históricos. Em suas aventuras no planeta Mongo, o herói criado pelo desenhista Alex Raymond lutava contra gigantescos lagartos inspirados em estegossauros ou brontossauros. E apesar de ter acesso à tecnologia futurista (como armas de energia), às vezes Flash Gordon acabava também enfrentando os enormes monstrengos apenas com sua coragem e força física.

Mas foi com as aventuras de Brucutu que os quadrinhos mergulharam de vez no mundo dos dinossauros. O personagem é um habitante do Reino de Mu, uma terra em que homens das cavernas e dinossauros coexistiam (algo que, na realidade, jamais aconteceu, pois milhões de anos separam a extinção dos dinossauros e o surgimento dos humanos). Lançado em 1933, Brucutu foi criado pelo desenhista V.T. Hamlin, que imaginou o Reino de Mu após encontrar fósseis de dinossauros em um campo de petróleo no Texas.

Nos anos 50 e 60, criaturas vindas do espaço sideral ou criadas a partir de acidentes científicos tornaram-se comuns no cinema e nos quadrinhos. Algumas delas não passavam na verdade de versões modernizadas ou estilizadas dos dinossauros então conhecidos. Nessa onda, os quadrinistas Jack Kirby, Steve Ditko e Stan Lee fizeram sucesso com suas HQs de ficção científica da chamada “Era dos Monstros Marvel” (cujo sucesso lançou as bases para o universo de super-heróis que surgiria em 1961).

Do outro lado do mundo, os filmes de Godzilla e as HQs de Astroboy (personagem criado pelo mestre Osamu Tezuka) deram origem à linhagem de monstros que tornou-se a marca registrada dos desenhos, seriados e quadrinhos japoneses. No Ocidente, foi na passagem para os anos 70 que os clássicos dinossauros disseminaram-se de vez. Tiranossauros, estegossauros, brontossauros ou pteranodontes tornaram-se as estrelas de filmes, desenhos e revistas, em que contracenavam com homens das cavernas ou aventureiros modernos.

A Terra Selvagem das aventuras de Kazar e o desenho O Vale dos Dinossauros lembram muito a terra de Pal-ul-don das HQs de Tarzan, que por sua vez é baseada no Mundo Perdido da literatura de Arthur Conan Doyle (o criador de Sherlock Holmes). Na mesma época, os trabalhos de desenhistas como Joe Kubert (Tor), Steban Maroto (Wolff), Moebius (Arzach) e Richard Corben (Den) mostraram realidades fantásticas, em que bárbaros e exuberantes mulheres convivem com monstros baseados nos dinossauros (neste sentido, estes mundos fantásticos seriam uma versão heavy metal do Reino de Mu).

As feras pré-históricas fazem parte da cultura contemporânea, e nos últimos anos inspiraram interessantes HQs. Aparecendo como monstros ameaçadores ou amigos cordiais, os dinossauros povoam nosso imaginário e têm um apelo especial junto ao público infanto-juvenil. Partindo desta idéia, o cartunista Bill Watterson criou sequências inusitadas nas tirinhas de Calvin e Haroldo. Assim, a visita a um museu de História Natural, uma fantasiosa viagem ao tempo dos dinossauros ou imaginar-se transformado em um tiranossauro rex são algumas das situações vividas pelo incontrolável Calvin.

A série Love and Rockets, estrelada pelo grupo de apaixonantes heróinas criadas pelos irmãos Hernandez, misturou questões cotidianas com a temática de HQs de super-heróis e ficção científica. Em uma das histórias, lançada em 1983, a mecânica de foguetes Maggie viaja para Pellucidar, uma floresta habitada por tiranossauros, braquiossauros e brontossauros (outro Mundo Perdido!). Nesta história, as sensuais personagens dos irmãos Hernandez são as protagonistas e os dinossauros aparecem como coadjuvantes (um deles acaba até se apaixonando por uma das integrantes da expedição!).

Em 1994, foi lançado por uma pequena editora norte-americana a revista Tyrant, escrita e ilustrada por Steve Bissette (desenhista de Monstro do Pântano, que já entrevistei para este blog). Publicada em preto e branco, a série narrava a vida de uma tiranossauro rex, colocando em primeiro plano a luta pela sobrevivência nas florestas do período Cretáceo. Em Tyrant, Bissette mostra toda sua expressividade artística e habilidade técnica, criando um ambiente em que plantas, dinossauros, insetos e as primeiras aves e mamíferos interagem formando um verdadeiro ciclo vital.

Os quadrinhos brasileiros também têm seus representantes do mundo jurássico. Nosso dinossauro mais famoso é sem dúvida o Horácio, personagem cartunístico criado por Maurício de Sousa. Vivendo em uma paisagem composta por vulcões e escassa vegetação, Horácio é um pequeno tiranossauro verde, que geralmente aparece envolvido em reflexões existenciais. Nas revistas da Turma da Mônica surgiu ainda Piteco, um homem das cavernas que enfrenta problemas cotidianos e dramas pessoais bastante modernos.

Nos anos 70, a influência das HQs de ficção científica e fantasia norte-americanas e européias, bem como as influências dos desenhos animados e quadrinhos japoneses, originaram algumas versões nacionais de monstros pré-históricos. O desenhista Watson Portela foi um dos principais representantes dessa fase. Um pouco mais recentemente, o quadrinista Ofeliano deu vida ao Leão Negro, um bárbaro com feições de felino que viajava sobre um réptil voador (seguindo o exemplo de Tarzan e Arzach).

17/12/2007

Livro reúne as primeiras tiras de Calvin e Haroldo.


Nesta semana que antecede o Natal, ruas e lojas estão lotadas de pessoas engajadas na maratona da escolha e compra de presentes. E se você ainda não conseguiu encontrar o presente ideal para uma pessoa querida, uma boa opção pode ser o livro Calvin e Haroldo - E foi assim que tudo começou. Lançado recentemente pela Conrad, o volume traz as primeiras tiras e páginas da saudosa série criada por Bill Watterson, no formato 21,5cm x 22,5cm, com 128 páginas e preço de R$29,90, podendo ser comprado com desconto na loja da editora.

Tirinhas envolvendo personagens infantis são um lugar-comum na longa trajetória dos quadrinhos. Podemos dizer que os pontos altos dessa tradição são as séries Peanuts de Charles Schulz e Mafalda de Quino. Enquanto na primeira Charlie Brown e sua turma servem de pretexto para o cartunista norte-americano discutir questões existências e a psicologia humana, na outra o cartunista argentino utiliza a intelectualizada protagonista e seus amiguinhos para apresentar questões sociais e também existenciais. Os dois trabalhos tornaram-se clássicos dos quadrinhos e leituras obrigatórias para os amantes dessa arte. A eles se somou, nos anos 80, a série Calvin and Hobbes de Bill Watterson, que inovou na representação do universo infantil.

Lançada em novembro de 1985 e encerrada em dezembro de 1995, Calvin e Haroldo é considerada por alguns a melhor tirinha cômica já produzida. Apresentando-nos o impagável Calvin, um hiperativo menino de seis anos, e seu inseparável amigo Haroldo, um tigre de pelúcia com muita “personalidade”, a série traz uma galeria de coadjuvantes que inclui os pais do garoto, sua babá, professora e coleguinhas de escola. Invariavelmente, todos acabam vistos e julgados pela ótica implacável de Calvin, quando não são vítimas de sua fértil e incontrolável imaginação. Este, aliás, é o elemento que fez da tirinha uma obra-prima dos quadrinhos: as fantasias e a lógica de uma criança são apresentadas de forma incrivelmente autêntica.

Colecionando algumas centenas de tiras e páginas dominicais, E foi assim que tudo começou é publicado no formato e características de sua edição original, lançada há dez anos nos Estados Unidos. O livro é o segundo editado pela Conrad em seu projeto de relançar toda a série no Brasil, no ritmo de dois volumes por ano. Como o subtítulo indica, essa nova edição reúne o começo do trabalho de Bill Watterson, que parte da apresentação do elenco da tira, passando ao estabelecimento das personalidades e interações entre os diversos personagens. Sendo uma obra em construção, alguns pontos destoam da qualidade geral. Por exemplo, a solução visual no fim de algumas tiras deixa um pouco a desejar, e em um ou dois momentos as falas de Calvin parecem um tanto inverossímeis. No todo, porém, o livro é o “velho e bom” Calvin e Haroldo, com os dinâmicos desenhos, a narrativa eficiente e o humor inteligente e caloroso.

Se por si sós os desenhos já valeriam a leitura, sobram motivos quando nos deliciamos com as acaloradas discussões dos protagonistas, ou nos sentimos tocados por suas reflexões sobre o sentido da vida. Em outros momentos, são os desabafos dos pais de Calvin ou as broncas de sua amiguinha Susie. Muitas vezes a imaginação toma conta e somos envolvidos pelos devaneios de um faminto tiranossauro ou pelas aventuras do sempre dramático e encrencado Astronauta Spiff. Certamente os fãs da série reencontrarão no livro alguns momentos favoritos e muitas imagens inesquecíveis. Para este leitor, nada se compara à emocionante tirinha em que Calvin entra em casa gritando desesperado que um “cachorrão” tinha roubado o Haroldo; no quadro seguinte, agarrado à perna de sua mãe seu rosto traz a expressão do desolado desespero de alguém que acabara de perder seu “melhor amigo”.

Calvin and Hobbes surgiu nos Estados Unidos num momento em que os quadrinhos autorais se afirmavam e produziam uma fase de altíssimo nível qualitativo e grande reconhecimento social. Artista que se recusa a permitir que sua obra seja banalizada em camisetas, canecas e outras bugigangas, após dez anos de produção, Bill Watterson soube o momento de interromper a trajetória da tira. Para os milhões de fãs em todo o mundo, Calvin e Haroldo realmente deixaram saudades. Mas temos, é claro, a compensação de podermos reencontrar esses velhos amigos nas várias coletâneas e reedições de seus quadrinhos. Para quem ainda não conhece a série, este lançamento pode ser um ótimo ponto de partida e um bom pedido para o Papai Noel!

16/12/2007

As Célticas traz o melhor da poética em quadrinhos de Hugo Pratt.


Num mercado com crescente concorrência, espera-se que as empresas trabalhem para cada vez mais oferecer produtos de qualidade a preços acessíveis. Infelizmente, na história do mercado de quadrinhos no Brasil, essa nem sempre é a regra. Por isso mesmo, merece nosso aplauso a iniciativa da Pixel de levar ao grande público os álbuns do Corto Maltese de Hugo Pratt, uma das melhores séries de quadrinhos de todos os tempos. O volume mais recente é Corto Maltese - As Célticas, com 138 páginas, formato 21cm x 28cm, ao preço de R$33,00.

Trazendo seis aventuras que se passam entre 1917 e 1918, nos momentos finais da Primeira Guerra Mundial, As Célticas nos levam de Veneza à Irlanda, passando por Stonehenge até os campos de batalha na França. Com títulos tão belos quanto a poética simbolista de “O anjo da janela do Oriente” ou tão inventivos quanto o jogo modernista de “Concerto em ‘O’ menor para harpa e nitroglicerina”, as HQs misturam fatos históricos com referências literárias, pessoas reais com personagens fictícios. Não faltam homenagens ao escritor norte-americano Ernest Hemingway ou referências à obra do inglês William Shakespeare e do espanhol Miguel de Cervantes. E, se um dos capítulos tem o temido Barão Vermelho como personagem principal, não raras vezes o Corto Maltese se vê levado pelo ritmo dos acontecimentos, reconhecendo ironicamente que nessa história toda ele não passou de um mero observador.

Com cenas de ação e lutas do início ao fim, as páginas de As Célticas são repletas de intrigas políticas e golpes de espionagem envolvendo a guerra e as disputas nacionalistas do século 20. Mas o roteiro dinâmico de Pratt deixa espaço também para conversas amenas e paixões humanas, para músicas cantadas num bar ou apresentações de teatro de sombras. No traço conciso e rápido do quadrinista italiano, ambientes, objetos e personagens ganham identidade e presença física, convidando-nos a viajar no tempo e no espaço, a conhecer e nos envolver com seus dramas e motivações. Mistura de quadrinho e poesia, literatura e realidade, não falta neste álbum nem mesmo uma sequência em que Corto Maltese é convocado pelo rei dos elfos e fadas Oberon a salvar a Inglaterra de uma invasão alemã.

História em quadrinhos incomum, na qual sentimos até o soprar do vento, a criação de Hugo Pratt deixa-nos perceber, desde o primeiro instante, o verdadeiro “sopro” que a motiva: um profundo e autêntico humanismo, que desponta na denúncia da insensatez da guerra e se reafirma na falibilidade dos personagens, a começar de seu protagonista. Em outras palavras, Corto Maltese - As Célticas traz todos os elementos de um verdadeiro quadrinho-arte. Um clássico absoluto e uma leitura saborosíssima!

Para saber mais sobre Hugo Pratt e o Corto Maltese, clique nas palavras em destaque abaixo.

12/12/2007

Há 110 anos...


Planejada para ser um monumento aos novos tempos que se anunciavam no fim do século 19, Belo Horizonte é hoje uma grande cidade e, como tal, guarda suas contradições. Há exatos dez anos, no dia do Centenário de BH, publiquei um texto (agora atualizado e adaptado para este espaço), no qual relaciono o aniversário da cidade a duas obras em quadrinhos: a série Os Sobrinhos do Capitão e o álbum O Homem de Canudos. Espero que gostem, e parabéns a Belo Horizonte, pelos 110 anos!

Os Sobrinhos do Capitão.

No dia 12 de dezembro de 1897, enquanto se festejava a inauguração da nova capital da província de Minas Gerais, estreava no New York Journal a série The Katzenjammer Kids, que recebeu no Brasil o título Os Sobrinhos do Capitão. Criada por Rudolph Dirks, jovem alemão que se mudara para os Estados Unidos em busca de novas oportunidades, a HQ fôra idéia dos editores do jornal, que queriam publicar uma história inspirada numa das primeiras séries de sucesso dos quadrinhos: Max und Moritz do artista alemão Wilhelm Busch. Publicada no Brasil com o título Juca e Chico, a série de livrinhos contava as traquinices e confusões de dois meninos encrenqueiros.

Com a missão de repetir o sucesso de Juca e Chico, Dirks (na época com apenas 20 anos) criou Hans e Fritz, duas pestinhas que infernizavam a vida dos adultos, em especial da Mamãe e do Capitão. No início, os desenhos e roteiros aproximavam-se bastante do trabalho inspirador de Busch. Porém, Dirks logo definiria melhor a personalidade e as características visuais de seus personagens, que sempre tentavam roubar as tortas feitas pela Mamãe ou armar travessuras para o Capitão. Por tabela, com Os Sobrinhos do Capitão consumava-se o trabalho iniciado com Juca e Chico: a construção de um dos tipos mais recorrentes nos quadrinhos e desenhos animados, o das crianças endiabradas.

Brincando com o sotaque e as peculiaridades da cultura alemã, as páginas dominicais e tiras diárias produzidas por Dirks conquistaram o público norte-americano e os próprios imigrantes que chegavam aos milhares na época. E além de influenciar o imaginário popular, Os Sobrinhos do Capitão também representou um avanço na linguagem dos comics. Sendo um dos primeiros a definir a estrutura dos quadrinhos (como os conheceríamos ao longo do século 20), Dirks foi ainda um dos responsáveis pela consolidação do estilo de desenho cartunístico (de formas arredondadas e proporções reduzidas), uma vez que, até então, predominavam traços mais caricaturais.

Com a enorme popularidade de seus personagens, Dirks envolveu-se num processo judicial em 1914, quando tentou transferi-los para um jornal concorrente. Apesar de ter mantido o direito de desenhar os personagens que criara, o desenhista perdeu os direitos sobre o nome da série, passando a publicá-la com o nome The Captain and the Kids. Isso deu origem a uma situação incomum, pois enquanto Dirks desenhava Hans e Fritz para outro jornal, Harold Knerr assumiu seu lugar, o que fez com que duas séries distintas, mas com os mesmos protagonistas, fossem publicadas ao mesmo tempo.

A competição entre os desenhistas era um duelo de talentos que enriqueceu ambas as séries. Além das tradicionais travessuras de Hans e Fritz, os autores exploraram viagens a fantasiosas ilhas povoadas por piratas e nativos hostis (algo bem ao gosto do imaginário colonialista ocidental). Assim, motivados pela rivalidade criativa, Dirks e Knerr aprimoraram seus estilos, contribuindo para o desenvolvimento da arte e também da indústria dos quadrinhos.

O Homem de Canudos.

Cada cidade tem uma alma própria. Nos prédios que lhes dão forma e nas pessoas que lhes dão vida, as cidades refletem sua História. Logo, ter domínio sobre a História de uma cidade é muito mais que estabelecer monumentos e datas comemorativas; é influenciar a própria vida das pessoas. Por isso, às vezes, para apagar o que representa uma indesejável cidade, não basta destruir seus prédios; é necessário também eliminar aqueles que os construíram, como aconteceu há 110 anos, no povoado de Canudos no norte da Bahia.

Ao contrário do que muitos pensam, os monumentos históricos não são apenas as estátuas ou os prédios erguidos em comemoração a algum feito ou pessoa notável. Um acontecimento, por si só, pode tornar-se um monumento histórico, sobre o qual se constrói uma nação (como é o caso da Revolução Francesa, por exemplo). Assim como a construção da moderna Belo Horizonte, a destruição da sertaneja Canudos deveria ser um “monumento” à República do Brasil, que há pouco fôra proclamada. Mas isso se fez, é claro, às custas do sangue da população que esta mesma república deveria representar. Parte dessa história de contrastes, que marca o nascimento da república brasileira em fins do século 19, é contada em O Homem de Canudos, HQ desenhada pelo mestre Jô Oliveira.

Publicada na Itália em formato álbum, com o título L’uomo di Canudos, e ainda inédita no Brasil, a HQ é o amadurecimento de um trabalho de pesquisa e recriação em quadrinhos, iniciado nos primeiros anos da década de 1970 pelo ilustrador e quadrinista Jô Oliveira. A história começa algum tempo antes da destruição de Canudos, quando um jovem sertanejo chamado Francisco vê sua família ser assassinada pelos homens do coronel local. Para vingar a morte de seus pais e irmã, ele se junta a um grupo de cangaceiros. Vingado, Francisco parte para o interior do sertão, onde encontra peregrinos que se dirigem ao povoado de Canudos, onde vive um “homem santo”. Chegando à cidade prometida, Francisco acaba nomeado comandante das forças de defesa, pelo próprio Antônio Conselheiro.

Trazendo uma boa reconstituição de época, os desenhos de Jô Oliveira reproduzem ícones da cultura nacional, como o cangaceiro, o coronel, o beato e a própria seca do sertão. Contudo, se em seus primeiros quadrinhos os personagens e ambientes valorizavam a dimensão mítica do sertão, em O Homem de Canudos a reconstituição histórica do tema e o maior realismo dos desenhos ficam em primeiro plano. Tendo incorporado o grafismo da literatura de cordel (que tornou seus trabalhos aclamados nos anos 70), Jô Oliveira mostra um outro estilo nesse álbum, que se adequa perfeitamente à função de representar o cenário e os acontecimentos históricos retratados.

A história em quadrinhos é um importante veículo na formação da consciência e imaginário nacionais. Infelizmente, o mercado brasileiro é ainda muito pouco favorável aos autores locais, dificultando que obras brasileiras ocupem o merecido espaço nas bancas e livrarias. Se nos últimos anos nossos quadrinhos têm recebido mais atenção por parte das editoras, a situação ainda está longe de ser a ideal. Ter uma indústria de quadrinhos que privilegie a produção nacional e ofereça ao público temas e traços brasileiros deveria fazer parte de nossa formação como povo e nação. Não faltam qualidade e criatividade a nossos autores, e há ainda muitas obras por se produzir e outras que aguardam inéditas ou fora de catálogo. A HQ O Homem de Canudos é um bom exemplo!

11/12/2007

Crimes de guerra num documentário em quadrinhos.


Variando na linguagem e na ambientação, desde A Ilíada, narrativas sobre guerras envolvendo cidades sitiadas e o massacre de seus habitantes têm sido uma constante na História ocidental (lembremos da Jerusalém arrasada pelos cruzados ou da Canudos pulverizada por nosso exército republicano). Área de segurança Gorazde, álbum do quadrinista Joe Sacco, faz parte dessa tradição narrativa, num relato contemporâneo e impressionante das atrocidades cometidas contra a população muçulmana durante a Guerra da Bósnia.

Nascido em Malta e naturalizado norte-americano, o repórter e desenhista Joe Sacco surgiu em edições independentes e começou a ganhar notoriedade com a série de revistas Palestine, posteriormente reunidas em livros premiados internacionalmente. Em Palestina: uma nação ocupada e Palestina: na Faixa de Gaza, o autor (que sempre é personagem em suas reportagens e não raramente faz piada de si mesmo) retrata a situação nos territórios ocupados por Israel, realizando o que se tem chamado de “jornalismo em quadrinhos”. Com o excelente Área de segurança Gorazde, Sacco deu um passo à frente nesse novo gênero narrativo.

Localizada na Bósnia Oriental, Gorazde era uma cidade de alguns milhares de habitantes, onde uma maioria de muçulmanos convivia pacificamente com a minoria de sérvios. Porém, com as ambições nacionalistas sérvias e os conflitos ligados à desintegração da Iugoslávia, em 1992 a convivência relativamente harmoniosa transformou-se num sangrento embate, em que vizinhos próximos se revelavam assassinos sádicos. Isolada, atacada e bombardeada ao longo de três anos, a população muçulmana da cidade resistiu, entre privações e solidariedade, tragédias individuais e laços afetivos. Ausente dos principais noticiários (que privilegiavam a capital Sarajevo, cenário do livro seguinte de Joe Sacco), Gorazde foi declarada “área de segurança” pela ONU, porém continuou abandonada à própria sorte e à mercê da limpeza étnica objetivada pelas lideranças sérvias.

Essa é a história que Sacco nos conta em Área de segurança Gorazde, sem maniqueísmos ou heroísmos hollywoodianos, conjugando atrocidades bárbaras e hegemonia política. Tendo passado um total de 40 dias em Gorazde, entre 1995 e 1996, o repórter-desenhista entrevistou sobreviventes e refugiados, visitou hospitais e locais de conflito. Partindo de uma pesquisa sobre o passado recente da ex-Iugoslávia, de fragmentos de histórias pessoais e das ruínas dos prédios da cidade, o quadrinista compôs uma narrativa que tem como características marcantes a diversidade discursiva e a fidelidade documental.

Foi na HQ “Natal com Karadzic” (publicada originalmente na antologia Comic Book: o novo quadrinho norte-americano) que Sacco abordou pela primeira vez a guerra nos Balcãs, descrevendo um breve encontro com o então líder sérvio Radovan Karadzic. Em Área de segurança Gorazde, o autor deixa de lado a excessiva ironia e os maneirismos de quadrinista underground, desenvolvendo uma capacidade de reproduzir em detalhe ambientes e pessoas, acontecimentos e depoimentos. As 230 páginas do livro trazem o amadurecimento de sua proposta estilística (a fusão de duas formas de narrativa modernas: HQ e reportagem), constituindo o que se pode chamar de um documentário em quadrinhos.

Alternando entre tons de cinza e contrastes de luzes e sombras, os elaborados desenhos correspondem perfeitamente à intenção jornalística de seu autor. Enquanto os ambientes são representados detalhadamente, reafirmando os relatos de destruição e violência do roteiro, a retratação expressiva e mais aproximada dos personagens reforça os traços de diferentes trajetórias e personalidades. As divisões de página seguem um padrão regular, explorando a interação de imagem e texto. Legendas e balões de diálogo sucedem-se e se completam num fluxo narrativo através do qual os depoimentos dos personagens alternam-se com a narração do jornalista (que, por sua vez, varia entre textos de contextualização histórica ou simples notas sobre incidentes cotidianos).

Numa história sem “mocinhos”, na qual a “cavalaria” não chegou a tempo de impedir que milhares de pessoas fossem massacradas, Joe Sacco nega a insipidez do discurso de neutralidade (da ONU ou do jornalismo). Sem fazer sensacionalismo com o sofrimento humano (tão afeito à mídia em geral, mas ineficiente nos quadrinhos) e evitando a exploração da violência (quase uma marca das HQs norte-americanas, mas indigna do verdadeiro jornalismo), o quadrinista narra histórias que teriam se perdido ou jamais viriam a público. Área de Segurança Gorazde é um livro importante, uma obra crítica que amplia os horizontes tanto dos quadrinhos (como linguagem artística) quanto do documentário (como forma de narrativa contemporânea).

Na linha de Maus, obra em que o desenhista Art Spiegelman aborda de forma surpreendente o Holocausto, a obra de Sacco partiu da experimentação underground para inovar a linguagem dos quadrinhos. Todos os livros do autor citados aqui foram lançados no Brasil e estão disponíveis pela Conrad. Numa época em que novas guerras se fazem e preparam à sombra do medo e da ignorância, muitos crimes de guerra permanecem impunes ou encobertos. Gorazde é uma das inúmeras histórias de atrocidades das últimas décadas, que com a contribuição de Joe Sacco talvez não seja esquecida. Cumprindo uma função histórica do jornalismo, ele denuncia a barbárie humana, pois negá-la ou esquecê-la é ser cúmplice nos crimes.

10/12/2007

Maus, a história de um sobrevivente do Holocausto.


Uma fábula é uma história infantil com uma lição de moral, na qual animais representam comportamentos e características humanas. Em Maus - A história de um sobrevivente, vemos gatos e ratos vivendo como pessoas. Contudo, longe de ser uma história para crianças, na obra escrita e desenhada pelo cartunista Art Spiegelman, os ratos representam os judeus, enquanto os gatos são nazistas. Produzido a partir das gravações de conversas que o autor teve com seu pai, Maus levou treze anos para ser concluído e narra as atrocidades do Holocausto. Lançada originalmente em capítulos na revista Raw e depois em dois volumes, a obra causou enorme impacto quando lançada, ganhando vários prêmios internacionais e contribuindo para mostrar que os quadrinhos são uma arte madura, capaz de abordar temas sérios.

Um relato detalhado e impressionante da violência e crueldade sofrida pelos judeus durante a Segunda Guerra Mundial, Maus conta a história de Vladek Spiegelman, um polonês que sobreviveu ao campo de extermínio de Auschwitz, e de sua mulher Anja. Com quase trezentas páginas, a obra se divide em duas linhas narrativas principais. A primeira se passa no momento em que o autor começa a trabalhar no projeto da HQ, e mostra as visitas que ele fez a seu pai, numa sempre difícil convivência. A segunda linha é a narrativa histórica em si, que vai de 1935, quando Vladek conhece sua futura esposa Anja, até 1945, quando ambos saem de Auschwitz e se reencontram na cidade em que viviam antes da guerra.

Nascido em Estocolmo em 1948 e professor de artes visuais em Nova York, Art Spiegelman participou de revistas alternativas no início da carreira e, por isso mesmo, prefere que sua obra não seja chamada de graphic novel. Para ele, Maus é um genuíno exemplo de “comix”, ou seja, uma mistura de textos e desenhos que privilegia a narrativa. E, de fato, ao contrário dos quadrinhos norte-americanos em geral, nos quais o visual é a grande atração, em Maus o roteiro e a narrativa são os pontos altos. Desde a primeira página, a luta pela sobrevivência, no contexto da perseguição nazista aos judeus e outras minorias étnicas, impõe-se à amizade e às relações pessoais. Nem o protagonista Vladek, e em especial ele, escapa à visão crítica e à narrativa realista de seu filho. Além disso, em momento algum há uma visão condescendente dos judeus, tampouco heróis nessa HQ, exceto talvez por uma mulher que se arrisca para ajudar os prisioneiros sem pedir nada em troca.

Conciliando um estilo cartunístico a uma reconstituição histórica detalhada, Maus apenas aparenta simplicidade em seus desenhos. É óbvia a influência das criações de Walt Disney na concepção de um mundo povoado por animais humanizados, e o próprio autor chega a sugerir o motivo para ter utilizado esse recurso. Entretanto, no caso da obra de Spiegelman, há um lirismo visual e uma força de expressão que faltam aos desenhos mais padronizados dos Estúdios Disney. Sem heróis e muito menos super-homens, a obra segue a linha mais autoral de artistas como Will Eisner e Robert Crumb. Relato direto das atrocidades do Holocausto, Maus contribuiu para expandir os limites da arte dos quadrinhos. Atualmente disponível no Brasil em volume único, se fosse uma fábula, provavelmente sua moral seria: prudente é aquele que se lembra dos erros do passado, para não cometê-los novamente.

O Sistema enriqueceu a arte dos quadrinhos.


Publicado originalmente nos Estados Unidos como uma minissérie em três edições, e como uma edição única no Brasil, The System traz como epígrafe uma citação de William Blake: “Preciso criar um sistema para não ser escravizado pelo sistema de outra pessoa”. Aprofundando o sentido estético e as implicações histórico-sociais dessa frase, Peter Kuper produziu uma obra originalíssima. Dividido em três capítulos, somando pouco menos de cem páginas, O Sistema traz uma boa estrutura narrativa, com diagramações de página diversificadas, que seguem o ritmo do roteiro.

Mas se estes elementos são comuns no quadrinho-arte em geral, são outros os componentes que tornam a obra de Kuper uma história em quadrinhos incomum. Primeiro, a total ausência de balões de fala ou pensamento (característica que, por si, já elimina um signo gráfico de fácil reconhecimento). Nesta HQ, as únicas representações de som aparecem na forma de símbolos (como as “notas musicais”) ou de alusões visuais (como “ondas de choque”). Até mesmo os pensamentos expressam-se visualmente, através de sequências narrativas (nas quais vemos o que um personagem está “pensando”). Contudo, o que de fato estabelece a originalidade de O Sistema, uma história que se passa em Nova York nos anos 90, é a adequação temática do visual. Nesta obra, Peter Kuper (que já se mostrara um autor muito criativo no álbum Desista!, em que adapta para os quadrinhos contos de Franz Kafka) produz um visual que remete ao grafitismo: por suas formas de traços marcados e cores esfumaçadas que imitam o spray dos grafiteiros.

Sem heróis impolutos ou damas virginais, O Sistema representa (no estilo do humor político, com personagens tipificados) o cotidiano da metrópole contemporânea, com seu apelo ao consumo (do sexo à política institucionalizada), sua criminalidade (do tráfico de drogas à corrupção policial) e suas pequenas histórias cotidianas (das relações de amor e amizade à exploração alheia). Os verdadeiros “heróis” da história (num sentido baudeleriano) são uma strip-girl e um velho detetive alcoólatra, um casal gay, um mendigo e seu cachorro, uma skatista-hacker e um jovem grafiteiro. Outsiders e marginais, os personagens conquistam nossa simpatia, enquanto convivem com os poderosos, conspiradores, corruptos, corruptores, fanáticos e psicopatas que tornam A Grande Cidade vista liricamente por Will Eisner (autor que muito influenciou Kuper em suas soluções narrativas e escolhas temáticas) uma metrópole em que a vida está em risco a cada momento e o perigo à espreita em cada esquina.

Para além da crítica social, o roteiro de O Sistema é um entrelaçamento de histórias, um mosaico narrativo nada óbvio, em que vidas e ações, ambientes e acontecimentos encontram-se, sugerindo um grande “sistema” social do qual é quase impossível escapar. Se a alienação, a conivência ou a participação ativa da maioria dos personagens só vêm compor o quadro corrompido da grande metrópole, por outro lado, as contravenções de um outsider, as formas expressivas criadas por um artista anônimo e as relações afetivas autênticas assumem a condição de uma revolucionária contestação do sistema de produção-consumo predominante. Crítico e criativo, Peter Kuper realizou muito mais que uma história em quadrinhos tecnicamente inovadora. Em O Sistema, cada elemento do enredo, da narrativa e do visual constitui-se como um componente de uma obra, de um "sistema simbólico" que pode ser interpretado como uma alegoria da vida contemporânea. Alegoria esta que também não traz exatamente um happy ending.

08/12/2007

Fun Home, um retrato de família nada comum.


Dando continuidade à proposta de publicar quadrinhos autorais numa linha mais alternativa, a Conrad está lançando Fun Home - Uma Tragicomédia em Família. Escrito e desenhado por Alison Bechdel, o livro é um relato autobiográfico sem muitos pudores ou meias-palavras. Ganhador do Eisner Award de Melhor Não-Ficção, com 240 páginas, formato 16cm x 23cm, o livro tem o preço de R$ 42,90 e pode ser comprado com desconto na loja da editora.

Filha de professores de literatura, Alison e seus dois irmãos passaram os primeiros anos de vida numa casa do século 19, que seu pai compulsivamente reformava e decorava. Havia também a residência dos avós paternos, a Casa Funerária que dá título ao livro, na qual as crianças tinham contato direto com cadáveres e apetrechos de embalsamamento. Crescendo num ambiente familiar sem muito carinho ou atenção, a autora identificava-se com a Vandinha da Família Addams e, desde cedo, começou a notar que seus gostos e comportamento não correspondiam aos padrões esperados de uma menina. Já na juventude, quando finalmente escapou do ambiente sufocante de seu lar, Alison descobriu sua homossexualidade, mas acabou arrastada de volta à sombra de seu pai. Morto em circunstâncias não completamente explicadas, Bruce Bechdel deixa para trás uma velha casa em estilo neogótico e muitos segredos envolvendo sua própria homossexualidade.

Com um texto elaborado e repleto de referências literárias, detalhados desenhos em um estilo próximo ao cartum e aquarelados em tom verde, Fun Home revela-se um trabalho de fôlego e coragem. Em alguns pontos, a identificação visual dos personagens poderia ser mais marcada e no geral a obra segue divisões de página muito regulares, o que às vezes dá a impressão de se tratar mais de uma “história ilustrada” do que propriamente uma história em quadrinhos. Apesar disso, a reconstituição de diferentes décadas e ambientes, a representação de fotografias, mapas, diários e páginas de livros dão à HQ o caráter de autêntico retrato de uma família e sociedade. Partindo de referências à mitologia grega, passando Albert Camus, Oscar Wilde, Marcel Proust e James Joyce, o relato autobiográfico de Alison Bechdel é uma vida que se conta através de personagens e citações literárias. Esta característica, aliás, só reforça a autenticidade do livro, uma vez que a autora se refere à sua vida na antiga casa como: “uma natureza morta com crianças”.

O subtítulo Uma Tragicomédia em Família, parece mais uma opção editorial que realmente uma escolha autoral. Quadrinho escrito para um público adulto, com uma abordagem direta de temas considerados tabus, Fun Home não tem muito de “tragédia” e certamente quase nada de “comédia”. Definível como um “drama” sem sentimentalismos, o livro nos lembra que as aparências enganam e que amor e dedicação não são complementos inseparáveis dos termos “família” e “pai”. Seguindo a linha dos quadrinhos autobiográficos, gênero que tem Robert Crumb como um de seus expoentes e Maus de Art Spiegelman como obra-prima, Fun Home é uma história para gente grande, que fala de temas sérios sem rodeios. O trabalho de uma autora corajosa, feito com amor e dedicação.